O que é identidade regional? A identidade regional é apresentada como essencialista, natural, e desterritorializada de poder, ou seja, corpos, mentes e paisagens fixas. O que isto quer dizer? Iniciamos o nosso artigo com esta citação acima, retirada do texto, “O poder Simbólico de Pierre Bourdieu”, de 1989, não por acaso, mas por acreditarmos que ele carrega em si o peso das transformações paradigmáticas e teóricas de seu contexto, e que nos ajudará a demarcarmos em nosso artigo uma análise historiográfica que de forma sistematizada e epistemológica articule a relação entre identidade regional e o nosso objeto temático do seminário referente a terceira unidade da disciplina “Construção da história regional e local”, o filme “Vidas Secas” de Nelson Pereira dos Santos de 1963. Pois só a partir dos anos 1980 e 1990 é que surgem as primeiras abordagens no campo simbólico e cultural que passam a reconfigurar e resignificar tanto o conceito de identidade regional quanto a produção fílmica, como objetos de estudo das ciências humanas, principalmente no campo da história. Encerramos o nosso artigo com está nossa proposta, perceber “Vidas Secas” e sua relação com a idéia de identidade regional como constructo do contexto da década de 1960, que nasce nos fins do século XIX, e que é reconfigurado como “documento monumento” a cada contexto. Palavras – Chave: Vidas Secas – Historiografia - Identidade regional.

A intenção de submeter os instrumentos de uso mais comum nas ciências sociais a uma crítica epistemológica alicerçada na história social da sua gênese e da utilização encontra no conceito de região uma justificação particular. Com efeito, aqueles que vissem neste projecto de tomar para objecto os instrumentos de construção do objecto, de fazer a história social das categorias de pensamento do mundo social, uma espécie de desvio perverso da intenção científica, poder-se-ia objectar que a certeza em nome da qual eles privilegiam o conhecimento da <<realidade>> em relação ao conhecimento dos instrumentos de conhecimento nunca é, indubitavelmente, tão pouco fundamentada como no caso de uma <<realidade>> que, sendo em primeiro lugar, representação, depende tão profundamente do conhecimento e do reconhecimento. (BOURDIEU, 1989, p. 107 – 108)

Iniciamos o nosso artigo com esta citação acima, retirada do texto, "O poder Simbólico de Pierre Bourdieu", de 1989, não por acaso, mas por acreditarmos que ele carrega em si o peso das transformações paradigmáticas e teóricas de seu contexto, e que nos ajudará a demarcarmos em nosso artigo uma análise historiográfica que de forma sistematizada e epistemológica articule a relação entre identidade regional e o nosso objeto temático do seminário referente a terceira unidade da disciplina "Construção da história regional e local", o filme "Vidas Secas" de Nelson Pereira dos Santos de 1963. Pois só a partir dos anos 1980 e 1990 é que surgem as primeiras abordagens no campo simbólico e cultural que passam a reconfigurar e resignificar tanto o conceito de identidade regional quanto a produção fílmica, como objetos de estudo das ciências humanas, principalmente no campo da história.

Ainda no contorno da citação acima, podemos ir mais além, pois perceber as ciências humanas como parte integrante das relações e conflitos sociais, é compreendê-la como instituição de poder, saber, inclusão e exclusão de falas de discursos que tornam dizível e visível dentro de uma posição de privilégio até as últimas do século XX, o que é região e o que a constituem enquanto tão, seja cultural, política, econômica, geográfica, étnica, lingüística e etc. Ou seja, é como se as ciências humanas estivessem em uma posição supralunar, mas na perspectiva do poder simbólico ela desloca-se para uma posição sublunar, logo epistemologia destituída do lugar de verdade, essencialismo e naturalismo construídos desde o catersianismo do século XVII, passando pelo positivismo do século XIX, até chegar ao século XX onde passa por transformações profundas como observamos na citação.

Esta breve contextualização se faz necessária para não cometermos o temível anacronismo de querermos cobrar do passado o que não lhe é de direito, ou seja, cobrarmos durante a análise de nosso artigo certos posicionamentos teóricos ou metodológicos da produção de Nelson Pereira. Primeiro porque trata-se de um diretor e cineasta, que tem uma linguagem e olhares diferentes de um(a) historiador(a). Segundo, porque o seu lugar social é um, o dá década de 1960, e o nosso que estarmos a analisá-lo com o olhar de historiador(a) é outro, contexto 2009. Mas mesmo levando em consideração essas duas observações importantíssimas, acreditamos que ao partimos do presente enquanto historiadores(as), ao nos propormos a analisar "Vidas Secas" enquanto tal, tomaremos o seu texto como "documento monumento" que é e deve ser reconfigurado e relido sob o víeis das abordagens atuais do presente de quem se dispuser ao ler. Daí a importância dos textos estudados na disciplina e das discussões realizadas em sala de aula, que serão utilizados em nossa pesquisa como ferramentas metodológicas possíveis a nossa fabricação e ofício. Sendo assim, procuraremos a pós este esclarecimento, dá seqüência a nossa pesquisa de forma coerente com a proposta da apresentação do nosso grupo, na abordagem, da película em sala, pois do contrário nos contradizeríamos com tudo aquilo que foi articulado anteriormente. Primeiro discutiremos o lugar social de Nelson Pereira. Segundo a produção fílmica de "Vidas Secas", como representação e construção de imagens e paisagens de um Nordeste que dói nos olhos e nas mentes de quem o ouve e o ver. E o terceiro e último ponto será uma análise da relação do filme com o conceito de identidade.

Toda produção prescinde primeiramente de um lugar. Nelson Pereira do Santos nasceu em 22 de Outubro de 1928 na cidade de São Paulo. Em 1952 com o I congresso Paulista de Cinema Brasileiro, Nelson Pereira já havia deixado para trás a carreira de Direito e iniciara suas produções cinematográficas. Durante o congresso aproxima-se e troca informações com produtores como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, e etc, e dão início ao chamado Cinema Novo, um movimento cinematográfico brasileiro influenciado pelo Neo-realismo italiano, que após a Segunda Guerra Mundial, produtores cinematográficos fazem enormes críticas às desigualdades sociais da Europa, bem como a aversão xenofóbica dos regimes nazi-fascistas que levaram a Segunda Guerra Mundial. O Cinema Novo influenciado pelo Neo-realismo tem como características, produções fílmicas de baixo custo e valores agregados, atores e atrizes anônimos, cenários gigantescos a céu aberto, e principalmente uma busca contundente de seus diretores em quererem representar de forma verossímil a realidade das desigualdades sociais do Brasil. Esta busca sedenta por justiça social leva a sinopse do filme "Vidas Secas", a representar o Nordeste Brasileiro na entrega do "Oscar" de melhor filme no ano de 1963, no festival de canes como, (no paupérrimo Nordeste Brasileiro). Dentro desta conjuntura, podemos dizer que "Vidas Secas" traz as marcas sociais e ideológicas do contexto de seu Diretor, tomado pela influência da teoria marxista, onde conceitos como opressor, oprimido, ideologia, dialética, sistema, exploração, e etc permeiam os códigos sociais e culturais estabelecidos em torno da produção fílmica de 1963. Mas,

Os filmes, assim com as cartas, os livros, os comerciais de televisão, são feitos para alguém. Eles visam e imaginam determinados públicos. Entretanto, os diretores de cinema, os roteiristas, os produtores e os proprietários de salas de cinema estão, com freqüência, distanciados dos espectadores "reais" ou "concretos". As distâncias podem ser econômicas, temporais, sociais, geográficas, ideológicas, de gênero, de raça. ( ELLSWORTH, 2001, p. 13)

Tomando esta observação de Elizabeth Ellsworth e a pergunta presente em seu texto, "Modo de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também", "quem este filme pensa que você é?". Teremos. Este filme pensa que eu sou nordestino , explorado pelo Estado, condenado pelo sol castigante que resseca o solo, mata o gado e as pessoas de fome e sede, que sou alienado, mas mesmo assim, um cabra macho ou mulher forte que resiste a todas a estas dificuldades. Como vimos na citação acima do texto "Modo de Endereçamento", o diretor pode errar o seu alvo de endereçamento por vários motivos, mas isto será retomado mais adiante, agora problematizaremos o segundo ponto destacado na introdução.

As paisagens compõem-se "tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas", portanto, podemos dizer na trilha de Michel Foucault que as paisagens carregam consigo formas de visibilidade e regras de dizibilidade, as paisagens são construções do olhar humano sempre orientado por valores, costumes, concepções políticas, éticas e estéticas, interesses econômicos e sociais, e são ditas a partir de conceitos, metáforas, tropos lingüísticos, palavras que pertencem a uma dada trama histórica a uma dada temporalidade, a lugares de sujeito, a lugares sociais. (MUNIZ, 2001, p. 1)

Sob esta citação após discutirmos o lugar social de Nelson Pereira, nos aprofundaremos nas paisagens representadas na película vista em sala de aula. As percebendo como construções perceptíveis de espaços em imagens que se pretendem tornar dizível e visível o que é o sertão nordestino, ou seja, elas querem atingir o seu alvo. Mas como vimos na citação, as paisagens não são uma percepção do devir nem tão pouco do transcendental que nos irrompe saberes atemporais. Como construções as paisagens sustentam-se do acúmulo de valores, costumes, tramas políticas, jogos econômicos, relacionamentos de gênero, cultura, linguagem, e etc, enfim, construções que emergem de disputas e relações sociais ao longo da história, portanto, mais uma vez como vimos na apresentação da película. A caminhada inicial, longa e dramática de Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos, a cachorra Baleia e o seu papagaio em meio ao sol castigante e flamejante ao som da gemedeira ao fundo, ou a morte do papagaio para saciar a morte da família, os leitos secos dos rios rachados, a morte do gado de fome e sede, o cinza predominante da vegetação, a chuva que cai de forma repentina e logo se evapora, e o próprio fim do filme com a mesma caminhada dolorosa dos retirantes ao som da gemedeira, enfim, tais imagens como ratifica a citação acima, "são construções do olhar humano sempre orientado por valores, costumes,...".

A obra literária de Graciliano Ramos publicado em 1938 é reconfigurada por Nelson Pereira em 1963, e serve de um ótimo exemplo em percebermos como o olhar sobre o Nordeste e sua paisagem processam-se por um acúmulo de valores e costumes, concepções políticas e lugares de sujeito, intersubjetivados nas produções referentes ao Nordeste desde o fim do século XIX, como vimos no livro a "Invenção do Nordeste" de Durval de Muniz, que é um historiador atualizado com as propostas historiográficas de seu tempo, que passa a pensar tanto a região quanto a idéia de paisagem como lugares de conflito e disputas sociais.

O espaço não preexiste a uma sociedade que o encarna. É através das práticas que estes recortes permanecem ou mudam de identidade, que dão lugar à diferença; é nelas que as totalidades se fracionam, que as partes não se mostram desde sempre comprometidas com o todo, sendo estetodo uma invenção a partir destes fragmentos, no qual o heterogêneo e o descontínuo aparecem como homogêneo e contínuo, em que o espaço é um quadro definido por algumas pinceladas. ( MUNIZ, 1999. p. 25)

Quanto ao terceiro e último ponto a ser problematizado, a produção cinematográfica e sua relação com a identidade regional, podemos voltar a citação inicial, onde o poder simbólico passa a desconstruir discursos de lugares antes inquestionáveis. A literatura, música como vimos em seminário realizado na sala, cordel, foto, construções de mitos políticos, religiosos, artísticos e etc... fazem parte da teia de significados que componhõe tanto o discurso regionalista quanto o fortalecimento de noções de identidades referentes ao Nordeste, a própria produção cinematográfica como percebemos em "Vidas Secas", faz parte desta teia de significados que remete a região como espaço que carrega em si, um radical indivisível de essência.

Para concluímos o nosso artigo, podemos perceber que "Vidas Secas" de Nelson Pereira tem em sua produção um acúmulo histórico de códigos culturais, que de forma aparente, a identidade regional é apresentada como essencialista, natural, e desterritorializada de poder, ou seja, corpos, mentes e paisagens fixas. Mas

O grupo cria e conserva linguagens, códigos, imagens, eventos e personagens históricos, datas históricas; relaciona-se de uma forma particular com o meio ambiente, com outros grupos; estabelece o que o caracteriza, o que são as suas referências internas externas. O grupo constrói discursivamente a própria imagem, inventa-se e passa a conviver com esse "espelho externo" como se fosse a própria essência. É a sua própria vida. Os termos "invenção", "imaginário", "construção narrativa" não querem dizer que a nação seja irreal. Pelo contrário, querem dizer que é uma realidade profunda, que envolve as mais vicerais paixões de um indivíduo. ( REIS, 2006, p. 17)

Fizemos questão de expor esta última citação para esclarecermos um ponto importantíssimo. Existem homossexuais homofóbicos, mulheres maxistas, negros racistas, políticos corruptos e etc. O que isto quer dizer? Voltemos, quem este filme pensa que eu sou? Dentro das discussões de modo de endereçamento feita em sala e em nossas leituras anteriores, nos promos a refletir. "Para Foucault nós somos diferenças: nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história é a diferença dos tempos, nosso eu é a diferença das máscaras". (REIS, 2006, p. 12), ou seja, tomando o conceito de pulverização das identidades de Derridá, temos que, "Ei, você aí!", "Quem, eu?", "Sim. Você", "Eu não!", "Sim, eu(1) e eu (2) e eu(3) e...", "Nós... quem?".Isto estabelece que eu, você e nós, somos aquilo que nos tornamos e mudamos constantemente, nunca o que permanecemos em essência, logo eu posso me identificar ou não com a fome, seca, mendicância, brutalidade e a rusticidade da paisagem de "Vidas Secas", pois entre o meu eu é o que me é apresentado existe uma enorme lacuna aos olhos das ciências humanas e das produções cinematográficas por exemplo. Pois eu sou dotado de sentidos pessoais, códigos culturais indeléveis do meu ser, de minha psicologia, percepção sobre os objetos, enfim, eu sou eterna diferença daquilo que se pretenda unanimidade, essência, naturalidade e verdade, pelo contrário somos diferença e alteridade.

Encerramos o nosso artigo com está nossa proposta, perceber "Vidas Secas" e sua relação com a idéia de identidade regional como constructo do contexto da década de 1960, que nasce nos fins do século XIX, e que é reconfigurado como "documento monumento" a cada contexto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

  • ALBUEQUERQUE JR. Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: FJN/Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.
  • ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Nordeste: uma paisagem que dói nos olhos e nas mentes. São Paulo: Editora do SESC/São Paulo, 2003 (Cordel).
  • BOURDIEU, Pierre. " Capítulo V: A identidade e a representação – Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região". In.: "O poder simbólico". Lisboa, Difel/Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989. pp. 107 – 132.
  • ELLSWORTH, Elizabeth. Modo de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. IN: SILVA, Tomaz Tadeu da. Nunca fomos humanos – nos rastros do sujeito/ organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
  • REIS, José Carlos. As identidades do Brasil 2: de Calmon a Bonfim: a favor do Brasil: direita ou esquerda?. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.