Por: Laércio Becker, de Curitiba-PR

(Texto elaborado com base nas notas preparadas para entrevista no programa “Nossa História”, da Rádio Educativa do Paraná, comandado pela jornalista Zélia Sell, em 28.09.2014.)

Uma das maiores vítimas da campanha difamatória republicana (primeiros passos do que Paulo Napoleão Nogueira da Silva chama de "desmonte") foi o conde d’Eu. A vítima preferencial porque, na condição de príncipe consorte, não podia revidar. Como poderiam atacar D. Pedro II, que era visto como um “pai” (e ainda assim o chamaram de “Pedro Banana”)? E D. Teresa Cristina, que era como uma “mãe”? E D. Isabel, “a redentora” (mesmo assim chamada de “carola”)? Sobrou para seu marido estrangeiro, prato cheio e irrestrito para o nativismo.

As principais acusações contra ele são as seguintes (poderia catar outras em Taunay, mas não lhe darei o gosto):

  • é estrangeiro – porém naturalizado, abriu mão dos títulos franceses e lutou pelo Brasil como poucos brasileiros natos fariam, como veio a ser reconhecido por militares experientes;
  • fala mal o português – mentira, ele aprendeu muito bem a língua, tanto que sua primeira ordem do dia foi elogiada pelo visconde de Taunay, que além de literato era insuspeito (já remoía rusgas em relação ao conde); o que ele tinha era um forte sotaque, especialmente na letra “r” (rotacismo);
  • é surdo – de fato, tinha dificuldades de audição; um problema genético dos Orléans, agravado pelos tiros da artilharia; mas transformar isso em “acusação” é o fim da picada;
  • é descortês – por um lado, a aparente distância que tinha em relação às pessoas e às conversas era decorrência de sua pouca audição; por outro, de fato, ele desprezava um artigo muito valorizado entre políticos brasileiros: a bajulação;
  • é deselegante – quando elegância passa a ser critério, bem se vê o nível do debate político;
  • é pretensioso, ambicioso, reinaria de fato no lugar da esposa – improvável; D. Isabel tinha personalidade forte, era geniosa e teimosa, chegava a lhe dar ordens em público; ademais, colocava-se sempre em segundo plano, sendo às vezes até humilhado, proibido de tomar lugar nos atos em que tinha direito e de decidir no que podia; teve seus pedidos recusados inúmeras vezes e D. Pedro II não lhe dava ouvidos para quase nada;
  • é carola – de fato, sempre foi muito religioso, assim como a esposa; se isso é defeito...
  • explora cortiços – mentira, não há nem uma prova sequer disso;
  • na guerra do Paraguai, foi um comandante fraco e praticou genocídio – é o que veremos.

A experiência

Louis Philippe Marie Ferdinand Gaston, Príncipe de Orléans e conde d’Eu, nasceu em Neuilly, em 28.04.1842, filho do duque de Nemours, que era um homem muito rigoroso e severo. Ainda criança, em 1848, seu avô, o rei Luís Filipe, foi deposto e exilado com a família, em Londres. Lá, o jovem conde recebeu educação rigorosa: intelectual, moral, religiosa, física (ginástica, equitação, vertigem, banho gelado, natação em rios gelados). Em Edimburgo, fez a high school.

Os Orléans produziram gerações de guerreiros pela honra (um Orléans não foge à luta) e pela pátria (na guerra da Argélia), inclusive alheia (o duque de Penthièvre e o conde de Paris lutaram na guerra civil americana). Dizia-se que os Orléans não têm medo e têm o diabo no corpo. (Aliás, seguindo essa tradição familiar, os filhos de Gastão, no exílio, também seguiram carreira militar na Europa, sendo que dois deles lutaram na 1ª Guerra Mundial.)

O tio de Gastão, o duque de Montpensier, cunhado da rainha da Espanha, conseguiu para o sobrinho uma vaga na academia militar de Segóvia, onde entrou como alferes de cavalaria. Segundo o jornal El Horizonte: “veste com desenvoltura o uniforme espanhol. Monta bem, cavalga com graça e parece possuir grande severidade e firmeza”.

Pelo exército espanhol, foi à guerra contra Marrocos, como ajudante de ordens do comandante em chefe, general O’Donell, com quem muito aprendeu. Carregou consigo a ordem do pai: “meu filho, faça teu dever e jamais esqueça o nome que carregas”.

Nessa guerra, participou de cinco batalhas e combates. Na batalha de Tetuan, cf. Cascudo, “fez prodígios de coragem, de audácia fria, de impassibilidade que fizeram recordar a memória” de seu tio duque de Aumale na Argélia: de sabre em punho (muito elogiado presente do pai), seguiu com os cavaleiros contra os mouros. Um soldado tentou dissuadi-lo mas ele recusou: “deixem-me, deixem-me”. (Algo semelhante aconteceu na batalha de Campo Grande, no Paraguai.) Também venceu a guarda do sultão no combate de Guad-el-Gelú e participou da batalha de Samsa. Segundo ele mesmo, ficou “suficientemente exposto” ao fogo inimigo.

Pelas demonstrações de coragem em campo de batalha, ganhou da rainha espanhola a Cruz de São Fernando e foi promovido a tenente por mérito de guerra. Mas o pai não se contentou, achou a recompensa desproporcional: “alegria em família, mas não soemos a trombeta; seria de mau gosto de nossa parte cantar glórias por uma ação honrosa, mas que perde seu mérito quando não acompanhada de modéstia e mérito”.

Ao fim da guerra, segundo o próprio Gastão, as tropas foram recebidas em Madrid por uma multidão “tão compacta que não nos deixava avançar. Ficamos cobertos de buquês, de coroas de louros que tentávamos pegar com a ponta de nossos sabres, e havia pedaços de papel com inscrições em versos por toda parte”.

De aprendizado, entre outras coisas, percebeu que a guerra demorou a terminar por um problema logístico: culpa da falta de comboios de abastecimento, que causava lentidão nas marchas – problema semelhante teve de enfrentar no Paraguai; há uma tese de Braz Batista Vas sobre o assunto.

Seu pai, sempre insatisfeito e exigente, o queria um oficial da artilharia (o mesmo que Gastão quis para seu filho Luís), o melhor e mais rapidamente possível. Por isso, Gastão voltou a Segóvia, concluiu o curso de capitão de artilharia, recebendo a patente.

Como se vê, sua carreira militar foi decidida pela família. Seu casamento também. (Definitivamente, ele não era senhor de seu próprio futuro.) E foi justamente o casamento com D. Isabel que o impeliu para o posto mais alto do Exército Brasileiro: o de marechal.

Lei nº 1.252, de 08.07.1865

Art. 1º Fica aprovado o artigo adicional ao Contrato de Matrimônio de Sua Alteza Imperial a Senhora Dona Isabel Cristina com Sua Alteza Real o Senhor Príncipe Luís Filipe Maria, Conde d’Eu, na parte em que o Governo Imperial se obrigou a conferir a Sua Alteza Real o Senhor Conde d’Eu o posto efetivo de Marechal de Exército, debaixo das condições no mesmo artigo estipuladas, e sem prejuízo da disposição do artigo primeiro da Lei numero quinhentos oitenta e cinco, de seis de setembro de mil oitocentos e cinqüenta, e do quadro do Exército.

O voluntário

Logo que estourou a guerra do Paraguai, o conde d’Eu foi a Uruguaiana, onde vestiu-se de “voluntário”, estudou a artilharia paraguaia e as estratégias de ataque.

Insistentemente, pediu ao sogro que o autorizasse lutar. Afinal, era um marechal. D. Pedro II sempre recusou. Ironia do destino: os “Voluntários” da Pátria eram coagidos, enquanto o príncipe Voluntário era proibido.

Depois, nomeou-o comandante-geral da artilharia e presidente da Comissão de Melhoramentos do Exército – mas nada de ir ao front. Os príncipes de Joinville (i.e., o tio de Gastão e a irmã de D. Pedro II) escreveram ao imperador:

“Parece ser inveja tua não deixar teu genro cobri-se de glórias, deixa ir o moço! É teu desejo teres teus genros ao pé de ti, sem fazerem nada? O moço pode ir sem licença dessa sociedade de caducos, velhos medrosos. Certamente quiseste para marido de vossa filha um homem de valor e não um simples fazedor de filhos. É necessário utilizar-lhe as qualidades, mandá-lo lutar onde há luta”.

Detalhe, Gastão não queria ir para comandar, mas para lutar, ainda que sob o comando de Caxias ou quem estivesse no comando. Pediu diretamente ao Ministério da Guerra e ao Conselho de Estado – as marionetes do sogro derrotaram sua pretensão por  12 votos a 11.

Dirigiu-se até a Caxias, num jantar na corte: “Marechal, consentiria que eu fosse servir no Paraguai sob suas ordens?” Ao que Caxias respondeu: “Oh, senhor, isso é muita honra para mim. Eu é que desejava ir às ordens de Vossa Alteza. Entretanto, como Vossa Alteza sabe, isso depende do governo” (cf. Hermes Vieira).

Dizem que as más línguas espalhavam o receio de que Gastão poderia se transformar num vice-rei do Prata – mas Gustavo Barroso rebate: o vice-rei acabou sendo o visconde do Rio Branco.

A convocação

Em 1969, as tropas regulares do Paraguai já haviam sido debeladas. Faltava Lopez, que havia fugido. Caxias não queria caçar Lopez. Mas D. Pedro II estava obcecado com “o extermínio do bárbaro tirano”. Com a desistência de Caxias e o desânimo das tropas brasileiras, o imperador precisava de alguém apto a reanimá-las nessa fase inglória. E pensou no genro.

Se a intenção era de animar as tropas, em tese, a escolha era correta. O barão de Cotegipe chegou a dizer a Gastão: “Sua Alteza precisará antes de quem o contenha, do que de quem o estimule”. Futuramente, criou-se o mito de que ele era muito beligerante, a ponto de a propaganda republicana acusá-lo de querer uma guerra com a Argentina no Terceiro Reinado.

Em entrevista à revista História Viva nº 135, Regina Echeverria diz que D. Pedro encontrou no genro a única pessoa disposta a caçar Lopez. Mas em seu livro A história da princesa Isabel admite que ele não queria ir nessa fase. De fato, suas correspondências deixam claro que ele não queria servir de capitão-do-mato. (Aliás, é curioso isso. A história louva Caxias por se recusar a caçar Lopez, mas Gastão é criticado por fazer a mesmíssima coisa.)

Gastão desconfiava que a missão de caça seria um fracasso retumbante. Desconfiança compartilhada com o diplomata inglês, sir Richard Burton: “muitos acreditavam que o valente, simpático e jovem príncipe, ainda com apenas 27 anos, fosse uma vítima da política e fadado a fracassar”.

Por essas e outras, quando seu pai convocou Gastão, D. Isabel o criticou o pai pela mudança de opinião:

“Pelo amor de Deus, não me mande meu Gaston para o Sul, pois Papai sabe que tem uma bronquite crônica. Se é bom para o Caxias não estar lá por causa de sua dor de cabeça, ainda é pior mandar para lá meu Gaston que pode apanhar alguma doença de peito.” (De fato, ele sofrera da garganta no ar seco da Espanha e Marrocos.)

Poucas vezes se a viu tão rebelada contra o pai, a quem acusou de querer matar o genro. Ameaçou segui-lo até o inferno. Chorou muito, rezou na capela e, no final, se conformou.

Para compensar a dor e a saudade, escreveu cartas diárias com relatos detalhados: “desejo de todo o meu coração que essa carta te encontre como partiu: com boa saúde, bonito de corpo e de rosto. Quando terei a felicidade de dormir com você em nossa pequena cama de Laranjeiras. Beijos na boquinha, nas duas faces, nos belos olhos. Sua pombinha, sua bonitinha, sua engraçadinha.” (Os relatos são unânimes: o amor do casal era notório e recíproco.)

A chegada

Quando chegou em Luque, a maioria se entusiasmou, até doentes e generais mais velhos. Entre eles, Osório, que Gastão fez questão que estivesse ao seu lado, apesar da mandíbula esmagada e só comendo papinha. Se a intenção do envio dele era revigorar o ânimo das tropas, parece que funcionou.

Sua primeira ordem do dia foi escrita por ele mesmo – que sabia francês, inglês, espanhol (ótimo para argentinos e uruguaios, bem como interrogatório de presos), latim, alemão e agora português.

Um de seus primeiros – e mais louváveis – atos foi interceder junto ao novo governo paraguaio para que abolisse a escravidão naquele país. Diante desse ato, que antecipou em dezenove anos a Lei Áurea, Duque Estrada, em Abolição, disse que o conde d’Eu “era o único membro da família imperial declaradamente abolicionista”. Com efeito, ao partir, ele havia para dito para D. Isabel: “quanto à escravidão, se voltar vencedor vamos acabar com isso, a despeito de todos os conservadores da terra”.

Em seu ofício ao governo provisório do Paraguai, ele escreveu o seguinte:

“Se concedeis a liberdade, que eles imploram, rompereis solenemente com uma instituição que foi desgraçadamente legada a vários povos da livre América por muitos séculos de despotismo e de deplorável ignorância.”

Observe-se que essa crítica era perfeitamente aplicável ao próprio Brasil. Isso fez com que Câmara Cascudo dissesse que, no Brasil, “nenhum abolicionista, até então, fora mais radical nem chegara a enunciar esta fórmula condenatória. Ninguém fora mais explícito e claro na exposição leal de suas idéias”. Na realidade, o conde d’Eu, como um bom Orléans, tinha francas tendências liberais e não perdeu a oportunidade de as exercer nesse ato humanitário.

A dedicação

Desde a viagem de lua-de-mel à Europa, o príncipe consorte já havia demonstrado grande interesse em visitar e examinar detalhadamente as fortificações. Na campanha de Uruguaiana, que descreveu com clareza e sobriedade em Viagem militar ao Rio Grande do Sul, ele mostrou-se preocupado com: acomodações, deslocamento de pessoal, instalação de casernas, cozinhas militares, fardamentos, pousos para cavalos, instrução de recrutas etc. Na realidade, ele havia se revelado um grande estudioso da geografia física e humana: o gaúcho, os costumes, a família, a hospitalidade, o chimarrão, o churrasco etc., nada escapou ao olhar arguto do comandante em chefe.

Pois bem, chegando no Paraguai, enquanto a logística impedia o avanço das tropas, estudou, de abril a julho, um plano estratégico. Curioso, detalhista e de prodigiosa memória, o conde d’Eu se dedicou denodadamente à geografia local, mediante contínuos e minuciosos estudos de terreno e seus acidentes. Detalhe: de uma região sem mapas nem estradas, só trilhas, ladeiras e canhões escondidos. Sintetizava as notas feitas pelas patrulhas de reconhecimento, fazia estudos exaustivos e dava instruções detalhadas para as missões, especialmente as mais arriscadas. Também fazia questão de participar do interrogatório dos presos, para poder haurir diretamente da fonte as informações mais importantes, sem correr o risco de que detalhes se perdessem nos relatórios.

Dedicado e sempre pronto a dar o bom exemplo, era o primeiro a acordar e acompanhar todas as atividades. Era tão vigilante que se criou em torno de si uma lenda, de que dormia com um olho aberto e quase sempre vestido, pronto para levantar a qualquer momento e entrar em combate.

Segundo Câmara Cascudo, “nunca a tropa se fez em marcha sem que a seguisse por algumas horas”. Investigava pessoalmente o estado sanitário das tropas. Não recuava diante dos piores serviços. Sua tenda era atravessada pela chuva; enfrentou lamaçais e outras situações extremas. Comia uma vez ao dia, alta noite e sumariamente. Tudo isso, apesar de contínuos problemas de saúde: respiratórios, calos, frieiras etc.

A justiça

O comandante em chefe tratava oficiais e soldados com polidez notória. E recebia a todos que o procuravam, sem distinção de patente. Para ouvir a todos sem comprometer seus trabalhos, instituiu audiências semanais, a que acorriam desde o mais graduado oficial ao mais humilde soldado.

E não fazia ouvidos de mercador: intercedia por todos que pedissem, sem distinção. Só não atendia a certos pedidos, p.ex., de promoção por ato de bravura que não o fosse. Era do seu feitio. Tanto que, na Comissão de Melhoramentos, queria conceder pensão aos militares feridos e discutir as dificuldades de recrutamento, mas o gabinete conservador não atendia – ver Hélio Vianna.

Dedicava especial atenção aos “voluntários” da pátria – que de voluntários só tinham o nome. Os abusos cometidos por militares de alto coturno contra os soldados mais rasos o deixavam ainda mais “revolucionário”.

Talvez por piedade cristã, quem sabe pelo temperamento liberal, não permitia a aplicação da pena de morte. Nos processos de crimes militares que passavam pelas suas mãos, sempre pedia ao ministério a diminuição da pena; em caso de pena de morte, pedia comutação em prisão simples.

Pelos mesmos motivos, tinha pena das multidões de paraguaios famintos com que se deparava: mandava recolhê-las dar alimento (quando tinham!), abrigo e segurança.

Com todas essas características, o general Paulo de Queiroz Duarte concluiu que, “de um modo geral, sua personalidade conseguiu despertar o respeito e a consideração e, até, amizades entre os subordinados de todos os graus hierárquicos”.

O estrategista

As estratégias traçadas pelo comandante em chefe foram tão vitoriosas que receberam até o elogio de um dissimulado desafeto, como Taunay: “um dia após o outro mostrou o príncipe grande habilidade estratégica, paciência de experimentado capitão”.

Em Sapucaia, convenceu Osório; em Peribebuí, demoveu Mitre. Porque eles preferiam os ataques frontais, assim como Caxias, cujos ataques frontais foram vitoriosos, mas acarretaram muitas baixas para as tropas aliadas. Já o conde d’Eu preferia flanquear – sim, era mais trabalhoso, mas rendia menos baixas. Por isso, na batalha de Peribebuí, simulou ataques frontais (tática diversionista), que distraíram as tropas paraguaias, enquanto flanqueava. O êxito foi total.

Espírito descentralizador, confiava em seus subordinados. Dava-lhes ampla liberdade na aplicação do plano geral, diante das circunstâncias. Mas assumia toda responsabilidade (“se erro houve, o erro foi só meu”), então seus generais contavam com seu respaldo, daí o prestígio deles – Mena Barreto, Câmara, Polidoro e, é claro, Osório.

A coragem

Seu estilo corajoso, já percebido no Marrocos, reacendeu no Paraguai. A ponto de correr risco de vida em Peribebuí e Campo Grande. Taunay teve de reconhecer, a contragosto: o conde d’Eu tinha “indiscutível coragem e notável sangue-frio”.

Enfrentou pessoalmente ciladas, escaramuças e outras táticas de guerrilha. Valente, quase temerário, simplesmente não temia a morte, pois achava que acima de sua vida estava o dever para com a nova pátria.

Em Ascurra, aproximou-se tanto das tropas inimigas que era possível distinguir as feições dos paraguaios, que tinham nove canhões; bastava um disparar para liquidar, tanto ele quanto Taunay. Noutras oportunidades, as balas zuniam, a raspar a cabeça. Em vez de susto ou medo, recebia os sons da guerra como uma homenagem – que o ensurdeceu de vez.

Ao seguir por uma picada, foi surpreendido por tropas inimigas, a linha de frente debandou mas ele não recuou: enfrentou-os sacando a espada e indo em frente. Além disso, enfrentou pessoalmente o fogo que os paraguaios tocavam nas planícies secas (política de terra arrasada). Atos de bravura como esses conquistaram a admiração dos soldados: “Sua Alteza mostrou ainda desta vez que era descendente de raça valente e entusiasta conservando-se o dia todo ao alcance dos tiros inimigos”.

A mentira

Mais de um século de propaganda republicana e três décadas de doutrinação ideológica transformaram um herói de guerra num genocida.

Em Peribebuí, Gastão pediu que os civis fossem entregues, para serem poupados. Mas o comandante paraguaio, em obediência a Lopez, recusou. Depois da batalha, apareceu o cadáver de Mena Barreto e os soldados brasileiros exigiram que o paraguaio fosse fuzilado. No entanto, até hoje, a responsabilidade recai exclusivamente sobre os ombros do conde d’Eu? O episódio continua a merecer esclarecimentos.

A principal acusação recaiu sobre o massacre do hospital. Explica Doratioto – que visivelmente não nutre simpatias pelo conde – que o hospital foi destruído pelo fogo em conseqüência de um bombardeio à distância, não por ação deliberada da tropa, muito menos do seu comandante. Considerando as limitações técnicas da precisão da artilharia do séc. XIX, não surpreende o lamentável dano colateral.

Quanto à batalha de Campo Grande, acusam o marechal de ser responsável por atear um círculo de fogo que massacrou as tropas inimigas. No entanto, consta que os próprios paraguaios queimaram o mato para se ocultar na fumaça mas o fogo saiu de controle.

Fato é que tantos séculos de campanha difamatória transformaram Gastão no equivalente do “bicho-papão” para as crianças paraguaias, como conta Vasco Mariz. No entanto, quem usava mulheres, crianças e velhos como escudos humanos? Quem colocava crianças para lutar? Quem matou a própria população de fome? Gastão ou Lopez?

O desânimo

Até Taunay teve de admitir, em Gastão, qualidades de administrador, “tomando e ordenando providências adequadas em todos os sentidos”. Pedia homens, meios de transporte, munição e cavalos. Mas não era atendido pelo gabinete conservador, a ponto de Nemours ter de pedir intercessão de D. Isabel.

Como é sabido, “a logística define o limite de uma campanha”. Pois Lesica e Lanus, a firma argentina que desde Caxias tinha o monopólio das provisões, procrastinava descaradamente a guerra (cf. John Schulz). Para se livrar dessa “tutela”, pediu uma licitação. O problema é que os vencedores não atuaram a contento. Como resultado, as tropas ficaram paralisadas pela fome: tiveram de recorrer a laranjas amargas, palmitos e frutos do mato – que causaram diarréia – e até mesmo cavalos.

Nas crises de suprimento, o marechal ajudava a distribuir comida. Emagreceu, envelheceu, não dormia e teve crescente depressão – dizia-se reduzido à imbecilidade. Depressão alimentada pelo cenário de terror deixado por Lopez: aldeias abandonadas, com velhos, mulheres e crianças famintas se arrastando, com feridas abertas cobertas de moscas e vermes.

Caxias já havia declarado a guerra acabada e “desde o último tiro não quero estar aqui nem mais um dia” – apesar disso, D. Pedro pedia “mais um sacrifício”. Gastão exigia – com o apoio de D. Isabel – que se declarasse o fim da guerra, pois Lopez só fugia, não governava:

“Estou resolvido, por um sentimento de honra e de companheirismo, a ficar enquanto aqui houver Voluntários da Pátria; mas, depois disso, considerar-me-ei moralmente livre.”

A recepção

Depois de morto Lopez, finalmente D. Pedro aceitou o fim da guerra e autorizou o retorno do genro. Que, ao chegar de navio, foi arrebatado de bordo como um herói e atravessou a multidão. Segundo Rebouças, “não foi entusiasmo, foi delírio”. Nas palavras de Gastão, “a recepção foi soberba, um magnífico espetáculo. Duvido que em algum país, talvez a Inglaterra, se possa encontrar uma semelhante unanimidade nas manifestações”.

Quebrando o protocolo, D. Isabel se atirou em seus braços diante de todos. Em sua homenagem, foram erguidas galerias de flores em seu caminho, escravos foram alforriados e peças de teatro reproduziam as batalhas. Contudo, no baile da Guarda Nacional em homenagem ao comandante em chefe, D. Pedro “fingia uma indiferença soberana”.

Gastão queria um retorno glorioso para todos os voluntários em cortejo triunfal, como seu pai (Nemours) e tios (Orléans, Aumale e Joinville) tiveram ao retornar da anexação da Argélia, um glorioso desfile de bandeiras e hinos, sob aplausos da multidão. Todavia, o ministério conservador não queria que chegassem batalhões organizados devido a seu prestígio e “idéias revolucionárias” (identificadas com os liberais). Apenas em grupos de 1.600 homens (há quem alegue o receio de um golpe militar), “sem um viva, sem um foguete, sem um versinho, os desvalidos que voltaram trazendo em seus mutilados corpos” as marcas da dedicação à pátria. Os oficiais foram recebidos com “ingratidão cruel” e esquecimento pelo governo.

Por pressão do conde, o imperador, que era um “fraco organizador de eventos patrióticos solenes” (cf. jornal Ba-ta-clan – ver Gilberto Freyre), organizou uma parada de boas-vindas. Mas foi um fiasco. D. Pedro II chamou os soldados de assassinos legais e ordenou que se afastasse a “turba” que não foi convidada a assistir.

Claro que essas desfeitas não ficaram sem reação. Gastão, o “protetor dos soldados”, reclamou do desprezo pelos “campeões da luta pela pátria”. Militares passaram a pedir a dissolução do gabinete conservador. O casal d’Eu foi mandado à Europa para esfriar o ânimo liberal: era o começo de seu desprestígio, paralelo ao crescente descontentamento dos militares com a monarquia.

Aliás, é curioso o paralelo histórico:

  • Em 1870, termina a Guerra do Paraguai e o governo não prestigia as tropas brasileiras; 19 anos depois, golpe com participação militar. Em 1945, termina a 2ª Guerra Mundial e o governo não prestigia a FEB; 19 anos depois, golpe com participação militar.
  • Na noite do dia 14 para o 15.11.1889, o ministro da Guerra, visconde de Maracaju, passou mal. Na noite do dia 31 para o 01.04.1964, o ministro da Guerra, general Jair Ribeiro Dantas, estava hospitalizado – há uma semana. Em ambos os casos, a ausência do ministro foi fundamental para a participação dos militares do Exército.
  • Em 1889, o visconde de Ouro Preto tentava implementar um programa de reformas liberais, que enfrentavam muita resistência dos setores civis que apoiaram o golpe. Em 1964, João Goulart tentava implementar um programa de reformas de base, que enfrentavam muita resistência dos setores civis que apoiaram o golpe.

O elogio

De Osório, que dispensa apresentações, em duas ocasiões:

“Comanda-nos um príncipe tão patriota, tão devotado à causa do Brasil quanto o melhor brasileiro, ilustre por sua ascendência ilustre por suas virtudes.”

“Brindo o senhor conde d’Eu, meu companheiro d’armas, pelo seu valor, pela sua coragem e pela justiça com que administrou o Exército: brindo-o porque no Paraguai deu sempre provas de amar o Brasil e se devotou d’alma ao seu serviço como os brasileiros que lá serviram.”

Do general Dionísio Cerqueira:

“Se revelou um dos nossos melhores generais, não só pela bravura peculiar à raça de Henrique IV, como por elevadas qualidades de comando, entre as quais destacavam-se a rapidez dos movimentos e a certeza dos golpes estratégicos.”

De Taunay, que tinha diferenças em relação ao conde:

“Enfim, o conde d’Eu justificou o favor excepcional que lhe haviam feito [título de marechal], prestando excelentes serviços nos último ano da Guerra do Paraguai. Não assim o duque de Saxe, que, na qualidade de almirante honorário, passou o tempo a pedir licenças e prorrogações de licença para ir à Europa ou lá ficar.”

De sir Richard Burton, diplomata inglês no Brasil: tinha “devotamento aos interesses de seu país de adoção”.

Do general José Luís Rodrigues da Silva: “credor da estima e consideração geral, conquistava também a confiança ilimitada na sua ação”.

Do general Paulo de Queiroz Duarte: “moço de maneiras corteses e afáveis, justo e suficientemente enérgico e destemido, pôde suprir, com vantagem, as deficiências que porventura a sua pouca idade e nenhuma experiência dos problemas dos altos escalões de comando pudessem aflorar”.

Do general J.S. Torres Homem: “revelou por sua inteligência, energia e atividade possuir as verdadeiras qualidades de um chefe de exército”

Os jornais da época o adjetivaram como “glorioso general”. A rainha Vitória, da Inglaterra, ficou sensibilizada. Até Caxias, do Partido Conservador, no senado, votou a favor de moção “que contém bem merecidos elogios ao augusto príncipe que comandou o Exército na última fase da guerra”.

O herói

Depois do golpe republicano, como é sabido, a família imperial foi covardemente banida do território brasileiro pelo Decreto nº 78-A, de 21.12.1889. Vivendo na França, já septuagenário, o conde d’Eu envergou novamente um uniforme militar durante a 1ª Guerra Mundial. Com baioneta, fazia a ronda noturna no vilarejo de Eu. Também atendeu a dezenas de soldados feridos no front, enquanto D. Isabel cuidou das “cozinhas econômicas”, que alimentavam os pobres.

O Decreto nº 4.120, de 03.09.1920, revogou o banimento e autorizou o traslado dos restos mortais de D. Pedro II e de D. Teresa Cristina. Em 1921, o conde d’Eu veio no mesmo navio, acompanhando os despojos imperiais. Foi recebido como herói de guerra, inclusive pelos militares, que lhe prestaram todas as honras: na chegada, por marinheiros veteranos da guerra do Paraguai, depois pelo Exército na Vila Militar, onde proferiu emocionante discurso.

Convidado a participar da cerimônia do centenário da independência, o conde d’Eu faleceu no navio, em 28.08.1922. Para as cerimônias do sesquicentenário da Lei Áurea, um decreto determinou que seus despojos fossem sepultados na Catedral de Petrópolis, com honras de ministro de Estado marechal do Exército Brasileiro:

DECRETO Nº 68.495, DE 12 DE ABRIL DE 1971.

Concede honras de Chefe de Estado e de Ministro de Estado à Princesa Isabel e ao Marechal Conde d’Eu, por ocasião da transladação de seus restos mortais.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 81, item III, da Constituição, e

CONSIDERANDO que o Governo Brasileiro propiciou, já há um quarto de século, a trasladação dos restos mortais da Princesa Isabel e do Conde d’Eu, para terem sepultura condigna neste País, como era de estrita justiça história;

CONSIDERANDO que para cumprir este alto desígnio foram destinadas verbas, através do Ministério da Educação e Cultura, à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, necessárias à construção, no Panteon dos Imperadores, na Catedral de Petrópolis, dos túmulos em que repousarão;

CONSIDERANDO que para dar especial significado cívico à remoção dos restos mortais da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, para Petrópolis, a Comissão Nacional, designada para elaborar o programa das cerimônias, fixou o dia 13 de Maio, data da assinatura da Lei Áurea; e

CONSIDERANDO que cumpre, nesse ensejo, dar as honras devidas à ilustre Senhora que, como Princesa Imperial Regente, três vezes governou o Brasil, ligando o seu nome às Leis que reduziram e aboliram a Escravidão, e ao bravo Soldado, o Marechal Conde d’Eu, que comandou em chefe as Forças Armadas na Campanha da Tríplice Aliança,

Decreta:

Art. 1º Serão prestadas honras de Chefe de Estado e de Ministro de Estado à Princesa Isabel e ao Marechal Conde d’Eu, respectivamente, por ocasião da trasladação de seus restos mortais para o Panteon, na catedral de Petrópolis, a 13 de maio de 1971.

A leitura

Quem quiser buscar uma versão menos contaminada pelos detratores do conde d’Eu (em suas quatro levas: conservadores, nativistas, republicanos e revisionistas), precisa recorrer às suas biografias, infelizmente fora de catálogo há muito tempo. Especialmente, Alberto Rangel e Câmara Cascudo. Em textos mais curtos, porém incisivos, Hélio Vianna e Vasco Mariz.

Biografias de D. Isabel não costumam ser injustas com o consorte. As principais são as de Lourenço Lacombe, Roderick Barma e Hermes Vieira. As de D. Pedro II exploram o conflito com o genro: Heitor Lyra, Pedro Calmon, Roderick Barman etc.

Sobre a guerra em si, ver Tasso Fragoso e Paulo Duarte. Doratioto, apesar de uma visão geral negativa sobre a participação de Gastão, desmente algumas acusações falsas, especialmente a do massacre do hospital.

O conservador visconde de Taunay foi um observador privilegiado da Campanha da Cordilheira – essa última fase da guerra, de caça a Lopez. O problema é que tinha diferenças pessoais e políticas em relação ao liberal Gastão. Para não perder espaço no Exército e na política, adotou um comportamento falso. Nos textos publicados em vida (Diário do Exército, crônicas e cartas), elogios. Já nas Memórias publicadas postumamente, todo o rancor represado. Enfim, a gosto do freguês.