Por: Laércio Becker, de Curitiba-PR.

Está consagrado, em inúmeros livros e manuais de História do Brasil, o termo “Inconfidência Mineira”, para designar o movimento mineiro de independência que levou à morte do testa-de-ferro, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Ou de outro em seu lugar, como diz Martim Francisco (p. 193 e ss.).

Mas não é essa a única forma de designar esse movimento. Joaquim Manuel de Macedo (p. 267 e ss.) fala em Conspiração Mineira. Já Hélio Vianna (p. 174) prefere falar em Conjuração Mineira. Qual é a diferença?

Antenor Nascentes (p. 193) explica:

  • Conspiração é o “desígnio formado secretamente por muitas pessoas para se livrarem de certos personagens ou certos corpos importantes do Estado, por meio de um grande golpe”; p.ex., a conspiração de Brutus, contra Julio Cesar.
  • Conjuração, “precedida sempre de uma conspiração, é um desígnio secreto para operar uma revolução no Estado, feito por pessoas ligadas por juramento mais ou menos solene ou por compromissos próprios para prevenir traições”; p.ex., a conjuração de Catilina contra a república romana.

Como se vê, a conspiração tem objetivos mais limitados, p.ex., operar um golpe palaciano. Já a conjuração é mais pretensiosa.

Apesar da feliz distinção, Antenor Nascentes (p. 101) fala em “Conspiração Mineira”. Respeitosamente, parece ter se equivocado o grande filólogo. Porque os mineiros não queriam apenas trocar um rei por outro, mas realizar a independência do Brasil, como república. Ou seja, o movimento tinha um caráter mais de conjuração que de conspiração.

E a palavra “inconfidência”?

Hélio Vianna (p. 174) explica que, na época dos fatos, quem tramava contra a coroa era julgado por traição ao rei, por uma alçada especial chamada “Juízo de Inconfidência”. Daí ser considerado “inconfidente”. Essa é a razão histórica da persistência desse nome.

Mas nunca é tarde para corrigir. De fato, de acordo com o Houaiss (p. 1.597), as palavras “inconfidência” e “inconfidente” têm relação com dois campos semânticos relacionados, porém sutilmente distintos:

1.      Idéias de indiscrição, revelação de segredo, quebra de sigilo, vazamento de informação.

2.      Idéias de deslealdade, traição, infidelidade, especialmente para com o Estado ou um governante.

Como se vê, dentro do campo semântico nº 2, da deslealdade, é possível realmente chamar o citado movimento de Inconfidência, porque foi uma deslealdade para com o rei de Portugal.

Só que, salvo engano, na sua origem, a palavra inconfidente guarda relação de antinonímia com a palavra confidente, que é a pessoa a quem são confiados segredos, enfim: confissões (Houaiss, p. 796). Se partirmos desse pressuposto como verdadeiro – e, francamente, não há motivos para pensar o contrário, dada a notória semelhança entre essas três palavras –, podemos deduzir que o campo semântico original dessa palavra é o nº 1, da indiscrição.

Nesse sentido, havemos de deduzir que ao campo semântico nº 2, da deslealdade, a palavra “inconfidência” chega por extensão. Vale dizer: a inconfidência é uma indiscrição e, por extensão, uma deslealdade. O inconfidente revela um segredo a si confiado e, por conseqüência, é desleal para com quem lhe confiou o segredo.

Em outras palavras, inconfidência significa indiscrição e, por extensão, deslealdade. Com a evolução da língua, a deslealdade do inconfidente abstraiu da causa original (indiscrição), assim como um uma duplicata emitida ganha vida própria e abstrai da compra e venda que lhe deu causa. Ou seja, se num primeiro momento a deslealdade do inconfidente decorria da revelação de um segredo, com o tempo ela não dependeu mais disso: qualquer deslealdade passou a ser chamada de “inconfidência”.

No caso do movimento mineiro de independência, seus líderes foram inconfidentes em relação à coroa apenas por deslealdade (campo semântico nº 2), não por revelação de segredo do rei (campo semântico nº 1). Já seus delatores foram inconfidentes em relação aos demais participantes pelos dois motivos: revelaram o segredo do movimento às autoridades (campo semântico nº 1) e, por isso, foram desleais em relação aos demais participantes (campo semântico nº 2).

Sendo assim, os delatores, mais que os demais participantes, foram “inconfidentes” no duplo sentido da palavra. Foram inconfidentes no sentido mais original dessa palavra. Conclui-se, com isso, que, a rigor, Silvério dos Reis foi mais “inconfidente” do que o próprio Tiradentes, que permaneceu “confidente” até a morte (dele ou do laranja).

Por isso, João Ferreira Durão (p. 34-5) entende que, a rigor, os verdadeiros “inconfidentes” foram apenas os três delatores: Joaquim Silvério dos Reis, Inácio Corrêa Pamplona e Basílio de Brito Malheiros do Lago. Que fique claro: Silvério não foi traidor, mas delator (Corrêa, p. 81 e ss.). Daí que chamar o movimento de Inconfidência Mineira significa dar-lhe o nome em razão da indiscrição de Silvério dos Reis, e não em razão do que eles planejavam fazer.

Outra crítica é destacada por Hélio Vianna (loc. cit.): chamar o movimento de Inconfidência Mineira parece o rótulo dado por quem parte do ponto de vista de Portugal. Seria como chamá-lo de Traição Mineira. Cá entre nós, foi justamente o que aconteceu. Os “inconfidentes” traíram a confiança do rei. No entanto, a propaganda republicana precisava de um herói que desbancasse D. Pedro I (ver Silva e Almeida, p. 239-43). Tiradentes, o traidor, foi alçado pelos republicanos ao posto herói nacional e patrono da polícia. Mas a idéia de heroísmo se coaduna com a de traição? A traição há de ser valorizada por uma instituição – polícia militar – que se pauta na lealdade?

Segundo Sir John Harrington, “a traição nunca prospera, qual a razão? porque, se ela prospera, ninguém ousa chamá-la de traição” (apud Rodrigues, p. 114). A traição de Tiradentes à coroa não prosperou. Por isso, antes da Independência, era justificável chamá-lo de traidor, ou seja, inconfidente. Contudo, depois do Ipiranga, os pólos se inverteram e Silvério, fiel ao rei, passou a ser o traidor. Daí que, a partir de então, o título de “Inconfidência” passou a ser um anacronismo.

De qualquer modo, por todos esses motivos, conclui-se que, com efeito, o melhor termo para designar o movimento mineiro frustrado em 1789 é: “Conjuração Mineira”.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Adjovanes Thadeu Silva de. O regime militar em festa. Rio de Janeiro: Apicuri, 2013.

CORRÊA, Viriato. Baú velho. 3ª ed. Rio de Janeiro: G. Costa, 1941.

DURÃO, João Ferreira. Pequena história da maçonaria no Brasil: 1720-1882. São Paulo: Madras, 2008.

FRANCISCO, Martim. Contribuindo. São Paulo: M. Lobato, 1921.

HOUAISS, Antônio et alii. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

NASCENTES, Antenor. Dicionário de sinônimos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SILVA, Weder Ferreira da. Entre o mártir e o imperador. História Viva, São Paulo, a. 9, nº 135, p. 32-6.

VIANNA, Hélio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1972. v. 2.