AS REPRESENTAÇÕES DA MEMÓRIA FARROUPILHA: CRONISTAS, HISTORIADORES E SUAS “PÉROLAS” 1935

Luciano Braga Ramos[1]

Resumo

A presente comunicação tem por proposta apresentar a análise dos artigos produzidos no I Congresso de História e Geografia do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul realizado durante as comemorações do Centenário da Revolução Farroupilha no ano de 1935. Durante tais comemorações observou-se por meio da referida documentação, o trabalho de memória realizado pelo IHGRGS, contribuindo com os interesses do governo do estado do Rio Grande do Sul, na reelaboração da memória e da história da Revolução Farroupilha e de seus vultos. Para a compreensão de como atuou o Instituto, busquei analisar os artigos produzidos pelos intelectuais do próprio instituto, assim como, os participantes que tiveram seus artigos aceitos para participarem do evento. A referida documentação, foi publicada no ano de 1936, a mesma documentação foi encontrada na biblioteca da UNISINOS em São Leopoldo. Os artigos em questão nos dão mostra das necessidades de memória para aquele determinado período, mostrando como aqueles intelectuais tiveram papel preponderante, como uma espécie de arcabouço intelectual e teórico da memória que se materializaria nas comemorações do centenário da Revolução Farroupilha em Porto Alegre no ano de 1935.[2]

Palavras-chave: História – Memória – Comemoração – Revolução Farroupilha.

 

INTRODUÇÃO      

            No Rio Grande do Sul, durante os anos 30 do século XX, observou-se um empenho de significativo número de intelectuais gaúchos procurando meios de reelaborar a memória da Revolução Farroupilha. Objetivava-se manejar um discurso que tinha como evidência exaltar o caráter brasileiro do gaúcho e o caráter não separatista da Revolução Farroupilha. Era a história colaborando com a política, vivificando, edificando e perpetuando o caráter mítico da Revolução Farroupilha e de seus “heróis”.

            O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul buscava por meio da história tradicional fazer uma associação entre os mortos e os vivos.  Esse fator foi bem trabalhado considerando o momento social pelo qual passava não somente o Rio Grande do Sul, mas o Brasil, e o centenário da Revolução Farroupilha veio a colaborar para a apropriação daquele “passado glorioso”. A analogia de seus vultos e feitos, com os feitos daquela conjuntura, foram estrategicamente explorados pelos políticos e intelectuais, que se ajuizavam herdeiros diretos dos “centauros farroupilhas”.

            O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) [3] teve importante papel na reelaboração da memória da Revolução Farroupilha e, sobretudo, de seu “líder máximo” – Bento Gonçalves. A instituição foi atuante em tal trabalho de memória justamente durante o ano do Centenário da Revolução Farroupilha, quando intelectuais e historiadores conectaram suas obras a partir dos anais do “Primeiro Congresso de História Comemorativo do Centenário da Revolução Farroupilha”. Ieda Gutfreid chamou atenção para a importância que foi dada à história também por parte do Estado do Rio Grande do Sul.

 

O estado sulino assume um compromisso com a história, e financia as pesquisas, delegando responsabilidades a seus funcionários para a execução de trabalhos. O compromisso a que se alude é o de resgate da história do Rio Grande do Sul, em especial o período da Revolução Farroupilha, nos documentos oficiais, guardados nos arquivos nacionais, tarefa que Aurélio Porto realizou com apoio estadual. Observa-se nessa atitude um esforço para criar uma imagem do Rio Grande do Sul que se assemelhe à do Brasil. (GUTFREIND, 1992, p 20).

               

                A produção historiográfica de Aurélio Porto, que foi em boa parte dirigida para temas da Revolução Farroupilha, foi relevante para o trabalho de reapresentar a Revolução Farroupilha como uma revolução brasileira. (ALVES. F, 2004). A história produzida por historiadores a serviço do Estado do Rio Grande do Sul virou ferramenta de uso político das elites no poder.

 

O instrumento de poder é a história, e os seus manipuladores, os historiadores e os políticos gaúchos.

 Após as pesquisas de Aurélio Porto, que resgatam as condições brasileiras da Revolução Farroupilha, historiadores (...), passam a repetir, cada vez com maior profundidade e extensão, o que se tornou essência da historiografia no período: a brasilidade sul-rio-grandense, desde sempre em sua história. (GUTFREIND, 1992, p 20).

 

             Dessa forma, o IHGRGS direcionou seus trabalhos para a elaboração de uma história da Revolução Farroupilha voltada para o discurso de brasilidade do gaúcho. Boa parte dos historiadores ligados à instituição foram, em muitos aspectos, responsáveis pela representação criada em torno da imagem de “herói” que se atribuiu ao líder da Revolução Farroupilha durante o centenário da revolução. [4]

A historiografia exercia um papel crucial nesta elevação do status histórico da guerra civil, elegendo heróis romantizando acontecimentos e enaltecendo feitos, os quais deveriam ser utilizados como exemplo para as gerações vindouras. Num processo de constantes recorrências, muitos dos elementos constitutivos desse arcabouço historiográfico viriam a ser encarados como absolutas verdades históricas, contribuindo decisivamente para a criação mítica da Revolução Farroupilha. (ALVES. F, 2004, p. 45).

           

            O Jornal da Manhã em outubro de 1935 anunciava na imprensa a abertura do Primeiro Congresso de História do Rio Grande do Sul realizado pelo HIGRGS. O mesmo afirmava os propósitos do evento, que incidia em dar continuidade, sem descanso, ao:

 

(...) trabalho iniciado há três lustros, de modo a comemorar o glorioso centenário farroupilha, com a iniciação do primeiro congresso de História Sul-Rio-Grandense instalado, ontem nesta capital, com a sessão preparatória realizada em sua sede provisória, no edifício do Museu Júlio de Castilhos. (...). A mesa do congresso terá como presidente de honra  exmo, Sr. Governador do Estado Gal. Flores da Cunha: presidente efetivo o exmo. Sr. Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grane do Sul, Dr. Leonardo Macedônia; o exmo. Sr vice-presidente Otelo Rosa; e o exmo. Sr. secretário perpétuo Dr. Eduardo Duarte, que será auxiliado por dois subsecretários, os membros efetivos do Instituto, Sr. prof. Tupi Caldas e o ten. De Paranhos Antunes. Fazem ainda parte da diretoria do instituto o Dr. Adroaldo Mesquita da Costa, como orado; o prof. Afonso Guerreiro Lima, como tesoureiro, e o prof. Valter Spalding, como bibliotecário. (JORNAL DA MANHÃ, 1º de outubro de 1935, p.15).

 

             Sobre esse trabalho de culto e celebração que se realizava no ano do centenário fazia parte dele como membros do Instituto, intelectuais que tiveram grande influência na teorização da memória farroupilha, pois, além de participarem do trabalho intelectual dentro do Instituto, estes colaboraram na imprensa porto-alegrense com os artigos que tencionaram a memória rio-grandense para o rumo por eles desejado.

 

1. OS ANAIS DO PRIMEIRO CONGRESSO DE HISTÓRIA SUL RIO-GRANDENSE DO IHGRGS E O CENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA.

 

Nomear os ausentes da casa e introduzi-los na linguagem escriturária é liberar o apartamento para os vivos, através de um ato de comunicação, que combina a ausência dos vivos na linguagem com a ausência dos mortos na casa. Dessa maneira, uma sociedade se dá um presente graças a uma escrita histórica. A instauração literária desse espaço reúne, então, o trabalho que a prática histórica efetuou. (CERTEAU, 2011, p. 110).

           

            O Congresso de História do IHGRGS comemorativo ao centenário da Revolução Farroupilha, teve seus artigos publicados no ano de 1936, esses anais eram compostos pelos trabalhos apresentados no congresso, os quais tinham por intento reescrever a história do Rio Grande do Sul, cujos idealizadores se viam como representantes de uma história rio-grandense de matriz lusa rejeitando assim toda a aproximação com trabalhos e teses que versassem sobre a possibilidade de aproximação entre gaúchos rio-grandenses com platinos. Tal expectativa buscava escrever uma história rio-grandense que atrelasse as origens do gaúcho e do Estado sulino à história do Brasil.

 

Para a comemoração do 1º Centenário da Revolução Farroupilha, de 1835 a 1845, contribuiu o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, organizando e realizando de 1 a 9 de outubro de 1935, um Congresso de História e Geografia, o primeiro reunido em terra rio-grandense. E os anais constituem, sem dúvida alguma, um novo monumento erguido pelo Instituto à glória dos nossos maiores os intrépidos farroupilhas, que, durante um decênio, foram abnegados e inexcedíveis nos serviços prestados à liberdade, ao Rio-Grande e ao Brasil. (ANAIS IHGRGS, 1936, p. 03-04). 

           

            Seguindo por esse viés, a narrativa mostra que os farroupilhas eram a vanguarda da liberdade no Brasil. Pretendia-se, como diziam os historiadores defensores de tais ideias, desmanchar a “lenda” do separatismo do gaúcho rio-grandense do restante da federação brasileira, que ocorreu durante a Revolução Farroupilha. Ao que parece, havia a necessidade de se “limpar o terreno” para a reconstrução da memória farroupilha e de seus “heróis”.

            De acordo com os historiadores, o congresso seria a oportunidade que estes tinham de “cortar o umbigo da lenda”. J. Egon Prates afirmava que os movimentos brasileiros, como o a Confederação do Equador, no ano de 1824, eram de inspiração republicana. Porém, segundo o historiador, foi somente em 1835, no Rio Grande do Sul, “onze anos passados, surge, o movimento encabeçado por Bento Gonçalves da Silva”. (PRATES, 1936, p.16-17), que conseguiu, pela constância e empenho, realizar a obra do republicanismo que fracassara no restante do Brasil durante a primeira metade do século XIX. Pensavam os historiadores que caberia a eles, no centenário da Revolução Farroupilha, pôr às claras as causas da revolução.

 

Comemora o povo gaúcho, no corrente ano, o Centenário da Revolução dos farrapos. A iniciativa, que tomou o governo estadual, de fazer conhecer, por meio de publicações, ao resto do Brasil não só as causas e origens, como, também, a verdade histórica daquele movimento, é altamente patriótica e merecedora de francos e calorosos aplausos.

Seguindo o exemplo oficial, grande número de homens bem intencionados trabalha ativamente revolvendo arquivos, consultando documentos, decifrando manuscritos, no intuito são e honesto de cooperar para completa elucidação da Revolução Farroupilha, até hoje tão desfigurada, tão pouco conhecida pela massa que constitui o povo brasileiro. (PRATES, 1936, p.16-17).

 

             Assim, desfazer a “lenda do separatismo” envolveria o trabalho dos historiadores que levariam ao conhecimento das massas brasileiras, o que diziam ser a “verdadeira” história farroupilha. Podemos intuir que, nas narrativas daqueles intelectuais a história farroupilha, naquele momento, era ignorada pela população brasileira, podendo não ser um elemento constitutivo da memória coletiva brasileira, e nem mesmo uma unanimidade entre os sul-rio-grandenses. Poderia ser antes de qualquer coisa, uma memória da elite, que revolvia e turvava uma memória de acordo com os propósitos para aquela circunstância do centenário da revolução. Então de acordo com Prates:

           

Raríssimos são os que estão a par da história e da finalidade no aludido movimento.

Tirantes estes, que se dedicam à pesquisa, ao estudo desapaixonado, o resto, a grande massa, ignora ainda essa página brilhante da história nacional, esse gesto máximo de brasilidade, aceitando o movimento de 1835 tal qual “El cuento” oficial de cem anos atrás.

Perdura, pois, no espírito do povo, o velhíssimo e claudicante truque do qual, em desespero de causa, lançou mão o governo de então, para afastar ou, mais acertado, para jogar contra os sul-rio-grandenses o resto do país: – a separação violenta, a desintegração da comunhão nacional com o auxílio estrangeiro e, finalmente, o repúdio aos demais brasileiros. (PRATES, 1936, p. 17).

 

            Para os intelectuais do IHGRGS, justificavam o desconhecimento do que seria a história da Revolução Farroupilha por parte do povo brasileiro culpando o governo imperial de criar, com o discurso do separatismo um afastamento do povo sulista em relação ao restante do país. Aqueles historiadores pretendiam mostrar que a Revolução Farroupilha fazia parte da história nacional como um período de brasilidade do povo sul-rio-grandense, inserindo a Revolução Farroupilha como um dos principais lances republicanos em prol do Brasil.

 

Hercúleo será o trabalho de propaganda para desfazer a lenda. E, se não houver muito esforço, muita constância, muita tenacidade, por parte do Rio Grande e de seus dirigentes, o nacional continuará, para o futuro, na mesma ignorância, preso ao umbigo da lenda, olhando sempre com desconfiança o sulista, uma vez que, pelos processos super técnicos, ultramodernos, etc., o estudo da “História do Brasil” – acompanha o mil réis na queda, foi mais vertiginoso e foi mais além – caiu completamente, desaparecendo dos estabelecimentos de ensino. E, em seu lugar, surgiu a “História da Civilização’, nas páginas do qual o Brasil, perdido, “deitado eternamente” aguarda impassível, no dolce far niente, que um outro “almirante” Pedro Álvares, também perdido, o venha descobrir por acaso”. (PRATES, 1936, p.17-18).

 

            Nesse sentido, o juízo do autor é contrariar a ideia separatista a partir dos documentos, que eram “provas incontestáveis” dos episódios da revolução. Os historiadores do IHGRGS pensavam estarem arrancando das trevas às massas brasileiras desavisadas das supostas “verdades” sobre a Revolução Farroupilha, o rio-grandense e também sobre a representação de seu líder Bento Gonçalves. Podemos considerar o movimento do historiador em relação à memória sobre Bento Gonçalves e procurar desvendar quais seriam seus princípios, de acordo com o historiador, que cita o chefe farrapo:

 

 A questão é de princípios, e não de interesses. Fez-se a revolução para garantir os direitos e liberdades do Rio-Grande, conspurcados pelo Império, depois de 7 de abril”, e, mais adiante, frisa a posição vexatória do brasileiro, colocado num plano inferior, sem liberdade, sem direitos de espécie alguma: “uma opressão acintosa pesava sobre o Rio-Grande; a influência lusitana, que devia acabar com o glorioso 7 de abril, dominou por toda a parte. Empunhamos as armas para resistir à opressão. (GONÇALVES, apud. PRATES, 1936, p. 19).

           

            Para o historiador Bento Gonçalves era antisseparatista, assim, o mesmo afirmava em sua narrativa os princípios que haviam modelado a representação de “herói”, despido de interesses próprios preocupado com as afrontas a que rio-grandenses e brasileiros eram sujeitados pelo governo do Império do Brasil. A história, nesse aspecto, tinha como pretensa mostrar uma luta, que se desencadeou pela defesa do Brasil contra a opressão do sistema imperial. E continua Prates:

 

Um ano depois, em 1837, Alegrete, no outro extremo do Rio-Grande, pela sua Câmara, repetia ao país o objetivo dos revolucionários.

(...) a província do Rio-Grande deve constituir-se em Estado livre, constitucional e independente, com a denominação de Estado Rio-Grandense, podendo ligar-se por laços de federação às províncias do Brasil que, como é de esperar, vierem a adotar a mesma forma de governo, querendo elas esta união.

Não procedem, ainda, as insinuações do governo, imputando ao gaúcho leal e patriota, o crime da alta traição, de lesa-pátria, quando aponta como agenciador de elemento estrangeiro, numa aliança maquiavélica com o inimigo de ontem, que combateu em defesa da integridade nacional, a fim de, auxiliado por ele, levar adiante seus propósitos. (GONÇALVES, apud. PRATES, p. 20).

           

            Separatismo ou não, era uma questão de ponto de vista, pois Bento Gonçalves, na citação, assegurava a separação do Rio Grande do Sul, compondo um Estado livre que poderia se ligar ou não por laços de federação a alguma província que, por acaso, viesse a se separar do Império do Brasil. A citação de Bento Gonçalves pode ser compreendida como uma hipótese e sabe-se que a posteriormente, as outras províncias não se desligaram do Império do Brasil, não constituíram uma federação republicana. Segundo o trabalho da Maria Medianeira Padoin, nem toda elite farroupilha possuía:

 

(...) os mesmos ideais políticos, especialmente no que tange à formação de um estado republicano, separado e independente do Brasil. Nesse sentido, teremos, especialmente a partir da Assembleia Constituinte de 1842, a divisão clara em dois grupos ou facções: a maioria e a minoria.

Portanto, quando falamos em projeto político federalista da elite farroupilha estamos nos referindo ao projeto político defendido pelo grupo da maioria, representado nas figuras de Bento Gonçalves da Silva e Domingos José de Almeida, que permaneceram no comando da Revolução e da República Rio-Grandense até meados de 1843. (PADOIN, 2001, p. 78).

            Padoin entende que a elite farroupilha dividia-se quando o assunto era federalismo, porém Prates usou a correspondência de Bento Gonçalves como documento na tentativa de desfazer o “mal entendido” do separatismo que “rondava” a sociedade rio-grandense e brasileira.[5] A banca do congresso, composta por Afonso Guerreiro Lima, F. R. Simch e Jorge Bahlis, avaliou o texto como perfeito para apresentação em um congresso de história nacional pelo conteúdo de nacionalidade que nele abordou a Revolução Farroupilha.

            Mais um autor que, dentro dos trabalhos do Congresso do IHGRGS no ano de 1935, apoiou a ideia de desfazer a “lenda do separatismo” foi Luiz Fernando Osório, na tese: “A Ação e os Propósitos Orgânicos dos Farrapos”, para o Congresso de História, em que o autor dizia:

 

Será elevado em Praça Pública do Estado, um monumento à memória de Bento Gonçalves, e de seus gloriosos companheiros da cruzada de 1835, logo que os cofres públicos o permitam, si antes a iniciativa particular não houver satisfeito esse patriótico tributo. (Artigo 8 da Constituição Rio-Grandense de 14 de julho de 1891, indicação do deputado Fernando Osório, pai). (OSÓRIO, 1936, p. 45).

           

            O fragmento do documento acima iniciava o artigo apresentado por Fernando Osório, procurando fazer alusão à proposta que teria partido de seu pai para a produção de um monumento que comemorasse a memória da Revolução Farroupilha tendo como expoente o general Bento Gonçalves. Tal ideia que ia ao encontro dos propósitos daquele congresso de trabalhar a memória dos farroupilhas salientando a “heroicidade” de Bento Gonçalves. A tese demonstrou a intenção de seguir na mesma linha de estudos na tentativa de “esclarecer o mal- entendido” sobre a história da Revolução Farroupilha que se “contou” à população brasileira. O autor menciona um artigo de Júlio de Castilhos, em que este dizia:

 

(...). Júlio de Castilhos, em artigo (...) “A Federação”, de 29 de setembro de 1889, denunciou a obra dos fabricadores de narrativas cortesãs e de crônicas palacianas que empreenderam nas suas memórias inspiradas pela cortesania áulica, a falsificação calculada da história do nosso passado revolucionário, deprimindo os heróis e o sentido imaculado da revolução rio-grandense, descrita como uma estrepitosa expansão de caudilhagem turbulenta e viciosa.  (OSÓRIO, 1936, p. 47).

           

             Sobre a existência dos caudilhos, Osório faz um comparativo importante sobre a formação étnica da população rio-grandenses, em comparação à população do Prata em 1833, procurando justificar como antisseparatista a Revolução Farroupilha. O autor assinalava que o acampamento de Rosas era composto quase totalmente de pessoas de origem negra e índia. No entanto A origem do gaúcho brasileiro foi “representada pelo português, com o privilégio de ter sido o Rio Grande colonizado pelos casais açorianos – que trouxeram as qualidades e feições puras de sua estirpe engrandecidas no devassamento do oceano e conquista das terras longínquas”. (OSÓRIO, 1936, p. 53). Era por esse caminho que se formaram, segundo as estimativas historiográficas dos componentes do IHGRGS, os círculos étnicos do gaúcho rio-grandense que possibilitaram diferenciá-lo do gaúcho platino. Osório, estabelecendo apontamentos sobre os propósitos federativos da Revolução Farroupilha dizia:

 

A visão de conjunto é a condição filosófica da Sociologia. E para dar a sentir a jornada de 35, permanecendo fiéis á lógica dos acontecimentos que determinaram e condicionaram tão soberbo empenho regenerativo, na América de origem lusa, o que mais importa realçar – retumbante a fama da falange Farrapa, – é o sentido sociológico, o seu timbre oriental, na vera história democrática do Novo-Mundo; são os seus traços culturais, para que todos os bons brasileiros conscientemente, possam bendizer e exaltar, no estrelário da glória nacional, os reais intentos, os propósitos orgânicos, o amplo descortino, os supremos objetivos, as diretrizes efetivas, a que se voltaram, com inteireza moral, pelas armas e pelo coração, subordinando a espada à inteligência – os evidentes paladinos de Piratini, Gigantes maltrapilhos, descendentes de Troia, que, das coxilhas visionárias, para não serem escravos de sua própria casa, batalharam dez anos pela unidade federal da Pátria. (OSÓRIO, 1936, p.45-46).

 

            Osório nos dá pistas do entendimento dos intelectuais daquele grupo sobre a formação do sul-rio-grandense: foi nesse “luso americano” que se criou o gaúcho que se consolidou na Revolução Farroupilha e também de seus líderes, “dignos dos contos homéricos”. Elaborava-se, assim, um imaginário de gaúcho, ligado à ideia de que os propósitos dos farroupilhas eram federativos, mas federalismo no século XIX, poderia não significar sinônimo de república. Conforme Padoin:

 

A ideia de federação, no século XIX, não estava exclusivamente ligada à ideia de república, pois existiram facções que defenderam propostas federalistas vinculadas à monarquia constitucional, como se observou da Assembleia Constituinte brasileira de 1823, dissolvida por D. Pedro I e que, em carta Outorgada em 1824, privilegiou a adoção de um regime centralizado. (PADOIN, 2001, p. 92).

 

            A ideia de federalismo, pensada pelos historiadores do IHGRGS foi ligado à ideia de república para, assim, tentar atender aos princípios daquele trabalho de memória na época estreitando os vínculos entre os diferentes tempos e “seus homens”. Assim, também, era Bento Gonçalves representado pela e para a geração de 1935, como exemplo de “brio” e “pundonor”, homens que tinham verdadeiro apreço no empenho da palavra, além de um profundo respeito pelas virtudes morais. Ainda sobre a honestidade dos farrapos, o autor dizia que

 

Foi límpida a honestidade dos homens de 35 cujos principais chefes entraram para a revolução abastados e saíram paupérrimos. Bento Gonçalves e João Antônio “morreram na miséria, cercados de respeito e de bênçãos”! Neto e Canabarro foram mais tarde ricos, porém, – a custa do seu trabalho. O primo chefe do novel Estado, Vasconcelos Jardim, evangélica figura, outrora abastado proprietário, acabou quase reduzido à penúria, e, por seu devotamento à causa, lhe decretou o governo uma mesada de 30 mil réis. (OSÓRIO 1936, p. 54).

               

                No texto fica evidente o trabalho de memória idealizado por esses historiadores, determinando: um gaúcho o que seria um modelo de gaúcho idôneo aos olhos dos brasileiros: um gaúcho que pertence à nação. Na citação acima, Bento Gonçalves aparece representado como “mártir”, pelo fato de ter abdicado de sua riqueza, em nome da causa do “povo” rio-grandense. Bento Gonçalves era idealizado como republicano representado como precursor das gerações de 1935. Osório cita no seu trabalho uma proclamação de Bento Gonçalves, numa analogia, ao que deveriam ser os predicados do gaúcho brasileiro para aqueles congressistas do IHGRGS.

 

 A moral é a base da felicidade pública e privada, e a nós que temos por norte estes objetos sagrados, cumpre o dever de sustentá-la. Virtuosos patrícios que, mal favorecidos dos bens de fortuna em serviço da Pátria sofreis toda classe de privações com uma resistência digna de admiração, recebeis os encômios devidos à vossa honrosa pobreza. Constância, valor e moralidade, e salva será a Pátria; cobertos então de bênçãos volvereis a vossas famílias, e saberei inspirar-lhes o amor da virtude... (proclamação de 24 de março de 1836, Campo em marcha no Passo-do-Barreto). (GONÇALVES, apud OSÓRIO, 1936, P. 54-55).

           

            Bento Gonçalves é representado por Osório como homem portador de um incrível espírito de renúncia e sacrifício. Era o general que seguia à frente de seus comandados para o campo de luta, ao encontro do inimigo.  De acordo com o autor suas tropas, praticamente nuas, nunca pensaram em deserção, mesmo quando precisaram comer couro molhado e raízes de árvores, andando a pé e fracos, completamente em farrapos. (OSÓRIO, 1936). A narrativa visava à representação dessa memória da “epopeia” farroupilha e de seus vultos, como feitos dignos de comemorar-se pelas gerações afora, até mesmo considerando-os como os “eleitos”.

 

O mais interessante, o mais empolgante e instrutivo, por sua imponência e grandeza, o mais completo dos movimentos cívicos operados no Brasil, em exemplos de estoicismos e largueza de descortino em favor da democracia, foi o que impeliu a ação regenerativa daqueles homéridas do Rio-Grande, – terra cheia de vitalidade, “estremecida de civismo ardente”. Eles primorosamente, definiram, gravaram, em tábuas de bronze, a compreensão que tinham do sistema republicano e que se universalizou na “Jerusalém dos eleitos”, como o mais puro e alto “tabernáculo” de liberalismo, província cujas fronteiras José do Patrocínio dizia serem os alicerces da liberdade. (...) (OSÓRIO, 1936, p. 76).

           

            O discurso mostra o Rio Grande como a “Jerusalém dos eleitos”, então, entendam-se os farroupilhas como povo eleito, num forte tom de ufanismo, que assumia o discurso historiográfico dos anos 1930. O gaúcho, como eleito, já estava supostamente um patamar acima de seus irmãos brasileiros. Subjacente a isso, intui-se que está o regionalismo, que marca a diferenciação desse gaúcho por “opção”. No parecer da tese de Fernando Osório, apreciada por Manuel Duarte, Gaston Hasslocher Mazerom e Adroaldo Mesquita da Costa, ficava evidente a maneira como esses historiadores se viam diante da história da Revolução Farroupilha. Eles se percebiam como portadores de uma missão, uma espécie de “destino manifesto” da história feita por eles. Segundo os intelectuais participantes do congresso, o próprio Bento Gonçalves havia “profetizado” sobre a vinda dos homens que “cortariam o umbigo da lenda” do separatismo farrapo.

 

E o próprio Bento Gonçalves, o campeador máximo e a figura central da epopeia nacionalista de 35, apelaria para a justiça da longínqua posteridade, quando exclamara profeticamente: – ‘Ah! Nem eu nem os rio-grandenses desejamos desligar-nos absolutamente do Brasil. Tempo virá, talvez, em que por fatos possa convencer-vos desta verdade. (OSÓRIO, 1936, p. 76).

               

                No trabalho de Osório, Bento Gonçalves é mencionado como o “campeador máximo”: é nesse sentido que é feito o trabalho de memória que precede a materialização desta memória no bronze. Sua tese é vista por seus pares como uma das mais “belas” obras de contribuição para o “exercício” de abrasileirar o gaúcho. Mas, afinal de contas, para aqueles historiadores, não restava dúvida quanto à brasilidade do gaúcho, já que tal obra trazia para os seus contemporâneos os feitos dos farrapos mostrando estes como predestinados. Tentava-se, como já foi visto, de tentar reforçar os laços de identidade entre o presente e o passado.

 

Destacava Osório que não podia deixar de ser a epopeia dos farrapos o reflexo dos dotes da alma de todos os ‘ínclitos guerrilheiros do Pampa’, isto é, da ‘alma brasileira’ dos rio-grandenses, de modo que o movimento não perdera nunca o seu

caráter eminentemente nacional, apoiando-se em elementos e em política essencialmente brasileiros. (ALVES. F, 2004, p. 105).

           

            No parecer de sua tese, os relatores resumiam o “sentido do ser gaúcho”, trabalhando os fenômenos para a formação deste sujeito social que se arquitetava para aqueles dias de rememoração do passado farroupilha. Iteravam o que seriam os desígnios dos farrapos:

Revela-lhes o alto sentido de disciplina social, o instintivo respeito da justiça, o nobre anseio de inviolável honestidade administrativa: “acima dos delegados do poder, está a própria Nação que o criou”. Salienta-lhes o desvelo crescente pela instrução do “povo, cuja dignidade é preciso que seja realçada consciente ao fim de seus direitos e deveres.” Encarece-lhes o vaticínio do voto livre e a descoberto; a batalha pela redenção dos escravos; pela absoluta inteireza moral; pelo espírito de renúncia e sacrifício que esmaltavam a couraça de ânimo perene dos Farrapos. Evidencia-lhes a convicta confiança no credo republicano-federativo, na unidade moral da Pátria, sob cristalinas bases amplamente vinculadas à genuína brasilidade. (OSÓRIO, 1936, p.81).

           

            No discurso de Osório, é possível analisar o que supostamente seria a escrita do historiador influenciada pela realidade deste. Muitos apontamentos, como voto livre, nação, instrução do povo e república federativa, eram pautas apreciadas e defendidas por Flores da Cunha em 1935. Esses elementos teriam contribuído mais tarde para o rompimento de Flores da Cunha com Getúlio Vargas. Esse indício também colabora para o entendimento do uso da memória na legitimação do presente. E por isso, para aqueles historiadores, por assim dizer tradicionais, que se debruçavam no documento oficial, o trabalho de Osório constituiu-se como uma história com um fim em si, baseada na documentação que falava por si mesmo. Era “um trabalho seu, conclusivo, de que o magnífico ensaio é índice fundamental à promissora construção definitiva”. (OSÓRIO, 1936, p. 81). Assim, aquela sociedade de 1935, por meio de seus intelectuais foi, para a primeira metade do século XX, um meio de comunicação importante para o reflorescimento da memória farroupilha.

 

CONCLUSÃO

            O Congresso de História, naqueles dias do mês de outubro de 1935, pode ser compreendido como o arcabouço teórico da história do Rio Grande do Sul. O Congresso não só estruturou e deu base para as práticas e representações, em torno da memória farroupilha, como também estreitou a ligação entre o passado e o presente entre os gaúchos da Revolução Farroupilha e os representantes da Revolução de 30. O trabalho do IHGRGS em 1935, além de poder ser compreendido, então, como a parte teórica do plano de construção da memória do gaúcho associada à Revolução Farroupilha, pode ser definido como promotor do discurso da brasilidade. Foi a maneira encontrada por esse intelectuais para se construir um imaginário de unidade regional para o Rio Grande do Sul sem que este perde-se sua marca regionalista e para, ao mesmo tempo, promover a inserção da elite política rio-grandense no discurso nacional.

 

 

Fontes

 

ALVES, Francisco das Neves. Revolução Farroupilha: Estudos Históricos. Rio Grande: Fundação Universidade Federal do Rio Grande, 2004.

 

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. – Rio de Janeiro; Forense, 2011.  

 

DOCCA, Souza. O Sentido Brasileiro Da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1935.

 

GUTFREIND, Ieda. Historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992.

 

JORNAL DA MANHÃ, 1º de outubro de 1935, p. 15.

 

OSÓRIO, Luiz Fernando. A Ação e os Propósitos Orgânicos dos Farrapos. in: Anais do Primeiro Congresso de História e Geografia Sul Rio-Grandense Comemorativo do Centenário da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Livraria do Globo, Vol. II, 1936. Pp. 45-81.

 

PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2001.

 

PRATES, J. Egon D’ Abreu. O Trono da Grécia, a Casa de Bragança e a Revolução de 1835. In: Anais do Primeiro Congresso de História e Geografia Sul Rio-Grandense Comemorativo do Centenário da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Livraria do Globo, Vol. II, 1936, p. 5-25.

 

 

[1] Graduado em História pela Universidade Luterana do Brasil ULBRA; Especialista em História do Rio Grande do Sul pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS; Mestre em História com área de concentração em Estudos Históricos Latino-Americanos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS. Professor de História da rede estadual do Rio Grande do Sul.

[2] O presente artigo foi elaborado a partir de um capítulo referente ao tema trabalhado na minha dissertação de mestrado defendida em 2015.

[3] O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul foi fundado em uma sessão realizada a 5 de agosto de 1920. A sessão, realizada no Arquivo Público do Estado, contou com a presença de grande número de historiadores e intelectuais. Nomes como: Eduardo Duarte, Aquiles Porto Alegre, Aurélio Porto, Afonso Guerreiro Lima, João Maia, Luiz Fernando Osório, entre outros, ocuparam-se em escrever seus artigos para o Primeiro Congresso de História do Rio Grande do Sul para as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha. (JORNAL DA MANHÃ, 1º de outubro de 1935, p. 15).

[4]Também coube àqueles historiadores reforçar a ideia da historiografia de matriz lusa, que visava convencer a opinião pública de que a Revolução Farroupilha havia sido uma revolução que objetivava a federação das províncias do Brasil. Também os intelectuais pretendiam desfazer a tese de historiadores que insistissem em provar a tese de separatismo da Revolução Farroupilha ou a aproximação de sua história com a matriz historiográfica platina.

[5] Souza Docca, em sua tese – já citada – “O sentido Brasileiro da Revolução Farroupilha”, saiu em defesa da brasilidade dos farroupilhas. Afirmando num tom romântico: “Eles amaram, amaram muito ao Rio Grande, mas nunca esqueceram o Brasil, que souberam, sempre, colocar acima de todas as competições.

Eram idólatras do fogão gaúcho, mas sempre comungaram, com lealdade, na ara sagrada da Pátria.

Na defesa desta, por nenhum dos filhos das outras províncias foram excedidos. Os mais bravos, os mais dedicados, precisaram subir muito alto, em afeições e serviços ao Brasil para com eles ombrearem.

A história não se funda em juízos temerários e, por isso, não averbará como justo, como verdadeiro, o que disse Saturnino de Souza e Oliveira, nem aceitará o pretendido fingimento para a paz em 1845”. (DOCCA, 1935, p. 100). Suponha-se, porém, que Docca transpareceu no seu discurso, na tentativa de exaltar a brasilidade do gaúcho, “o sentido do regionalismo rio-grandense”, falando que o gaúcho, na defesa da pátria, era mais brasileiro que os demais.