VINDA DA FAMÍLIA REAL AO BRASIL: REALMENTE HÁ MOTIVOS PARA COMEMORAÇÃO?1

Vanessa Raphaella Souza Neves2

Assim como o futebol, a boa comida e o samba são sempre lembrados para alimentarem o ego e a vaidade dos brasileiros, os acontecimentos históricos são muitas vezes utilizados como artifícios para tal, maquiando-se e floreando-se os fatos com atos e personagens heróicos. Assim não foi e nem está sendo diferente com a "vinda" da família real ao Brasil. Em 2008, duzentos anos depois do feito, muito têm sido comentado e publicado a respeito, nos telejornais, revistas, e mídias em geral.

"A instalação da família real portuguesa no Brasil há 200 anos, foi responsável por uma transformação política no país. Para o Rio de Janeiro, a herança foi ainda maior..."3 Nesta matéria publicada pela Folha Online, o redator da oração acima destacada ainda expõe, que as pessoas empolgadas com a chegada de Dom João, investiram na reforma de praças e até na pavimentação de ruas. Mas a maior motivação era o fato de poderem morar ao lado do príncipe regente.

Em outro texto, também retirado da fonte ora citada, o Presidente Lula afirma que "A vinda da Corte promoveu muitas mudanças e progressos. O Brasil abriu-se à cultura mundial."3 Para ele, a transferência da Corte foi responsável também pela integração territorial do Brasil: "Talvez o maior legado tenha sido a preservação da integridade territorial. Forjou-se uma identidade nacional"3, completou.

Não menos otimista, mas talvez de forma mais "romântica", este tema também foi abordado no enredo de uma escola de samba carioca. Tendo como título "O clemente João VI no Rio: a redescoberta do Brasil"; conseguiram transformar a fuga da realeza lusitana em poesia, esquecendo ou ocultado os reais anseios e temores da Coroa, romantizaram a temática, relevando somente o suposto caráter unificador e patriótico da fusão Império-Colônia:

"No céu brilhou

O azul cintilante refletindo a nobreza

Lisboa se enfeitou

Celebrando a união das realezas

O povo festejou

Para orgulho da coroa portuguesa

O reino então se mudou

Meu Rio se transformou

Num grande centro de "real" beleza

Um verdadeiro paraíso tropical

Entrada régia com florais e esculturas

O ritual do beija-mão é sem igual

O amor impera em sublime poesia

E no palácio a alegria é geral

(...)

Adeus colônia, pois o Rio é capital

Viagens pitorescas

Colorindo a cidade

Pinta a arte francesa

O aclamado Rei de Portugal

Vê chegar a hora da partida

O povo se rende na mais pura emoção

É eterno o carinho ao "clemente João"

Grande monarca luso-brasileiro (...)"4

Sem negar os avanços ocorridos com a chegada da Realeza em terras brasileiras, e sem afirmar que o progresso já era previsto, vez que, independente da vinda ou não de D. João e família, a relação de interdependência entre Brasil-Portugal, Portugal-Inglaterra favorecia para tal; o que se tem visto e ouvido sobre o supracitado é a romantização exacerbada e o enaltecimento de um momento histórico rodeado de interesses, infortuitos e massacres, que dentre os quais, escolhi destacar a escravidão naquele período.

Não muito longe de onde fora composto pelos sambistas, o enredo carnavalesco citado anteriormente, cumpria-se no Rio uma praxe exercida no Brasil havia quase três séculos. Desembarcavam, compravam e vendiam negros, na Terra que foi considerada a maior importadora de escravos do continente americano. Prática esta, que aumentou de forma exorbitante com a chegada da Corte, e que infelizmente não é citada nas rimas do samba nem nos comentários do Presidente da República.

De acordo com Laurentino Gomes, "o número de escravos desembarcados no Rio saltou de 9.689 em 1807 para 23.230 em 1811".5 Esses números, levando em conta os negros vivos aportados no território, pois segundo o mesmo autor, na trajetória desses escravos até o destino final, 55% morriam em razão das condições insalubres e da precariedade sanitária a que eram submetidos nos navios negreiros.

Relatos também nos mostram, a forma como os escravizados eram tratados ao aportarem no Brasil:

"...Vihoje o Valongo. É o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de negros cativos. Passando pela suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com a cabeça raspada, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente. Em alguns lugares, as pobres criaturas jaziam sobre tapetes, evidentemente muito fracas para sentarem-se."5(pág 240)

"Os navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível das misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a esse tipo de cena(...)"5(p.241)

Percebidos como bichos e vendidos como mercadorias, Portugal não se incomodava com os transtornos causados com os estrangeiros que passaram a freqüentar o Brasil depois da "mudança" da Corte, que ao depararem com tais circunstâncias, mostravam-se assustados e pavorosos diante de tanta exploração física, miséria e sofrimento. Afinal, práticas como estas já vinham sendo condenadas pela maioria dos países da Europa, e Portugal só as mantinha, por que além de cômoda, era a principal forma de extração e obtenção de lucros para manutenção de sua economia basicamente escravista. Para se ter uma idéia, as pessoas mais influentes e poderosas deste período, eram traficantes de escravos.

Diante dos fatos expostos, percebemos que em meio às pompas e aos palácios luxuosos que tentaram replicar aqui no Brasil, práticas de repúdio como a exploração humana para obtenção de fortuna e prestígio, ainda vinham sendo praticadas, resultando por fim, num dos maiores genocídios da história da humanidade. Como já foi dito, esse modo de produção ou de exploração, se assim acharem melhor, não deu início com o advento da realeza lusitana em território brasileiro, pois essa, já era uma prática efetuada havia quase 300 anos. Mas, como pôde ser notado nos dados relatados no artigo, a vinda de D.João e família foi responsável não tão somente pelo aumento exorbitante do tráfico negreiro, mas também pela manutenção da mão de obra escrava pormais alguns anos na História do passado de nosso país, o que não enseja por fim, a tantos motivos para festejos, cantigas e discursos políticos 200 anos depois.