Traído pela língua

Fundar uma religião nunca foi coisa de gente pobre. Pobre se preocupa com o pão de cada dia e não com a criação de modelos filosóficos. Filosofia é assunto para bem nutridos, como Zaratustra (mazdeísmo), Sidarta Gautama (budismo) e Maomé (islamismo). Assim sendo, considerando o que contam os evangelhos, Jesus Cristo teria sido o único pobre capaz de tal façanha. E que façanha... Tem que ter uma explicação mundana para isso.
Há tempo defendo a tese de que o cristianismo é uma obra inteiramente grega e o Jesus histórico jamais existiu. Os judeus dessa narrativa são personagens literários de uma trama bem articulada e necessária aos interesses de uma intelectualidade competente. Na verdade, trata-se da vitória do ideal universal helenístico, a vitória de uma cultura e não de uma religião.
A desculpa de que o NT foi escrito em koiné porque esta era a língua universal ou internacional do comércio, precisa de alguns esclarecimentos: Depois que os gregos “herdaram” o império persa, que utilizava o aramaico como a língua principal da sua administração, a necessidade da criação de uma língua de igual abrangência se impôs aos vários dialetos gregos. Daí o koiné (comum) como a língua da unificação helenística.
A vasta região que compreendia o antigo império persa sofreu uma transformação profunda quando os gregos converteram em moeda corrente as riquezas daquele tesouro. Sobravam recursos para empréstimos e investimentos. O mundo helênico jamais seria o mesmo. O filé das atividades econômico-financeiras estava no prato dos gregos. Os grandes centros industriais e comerciais da Antiguidade se consolidaram na Ásia Menor, Síria e Egito grego.
Portanto, o koiné tornou-se a língua dos grandes atacadistas, dos importadores, dos exportadores, dos distribuidores de produtos e matéria-prima, dos literatos, dos artistas etc. Era uma língua urbana de gente rica e culta. Os pequenos comerciantes, os camelôs da época, os populares enfim, continuaram a utilizar seus idiomas locais, que não desapareceram por causa disso, somente para justificar o koiné como a língua original do NT.
Os pais da Igreja, que por sinal eram gregos, tentaram criar a ilusão de que o aramaico e o hebraico eram a língua original da cristandade. Contudo, nenhum documento que justificasse essa afirmação foi encontrado até hoje. Especialistas descartaram a possibilidade de que qualquer um dos conhecidos textos cristãos sejam traduções das referidas línguas para o koiné. Claro que muitos judeus falavam e escreviam o koiné corretamente. Não os convertidos e iletrados galileus, certamente; povo que os judeus desprezavam e virou massa de manobra nas mãos dos gregos.
Daí surge uma questão mais espinhosa do que a coroa do Cristo: Como pode o cristianismo ter-se iniciado descartando a língua do povo da sua alegada procedência? Esta questão será respondida quando esta nova linha de investigação, que estou a sugerir, for explorada por aqueles que têm acesso aos documentos históricos referentes à presença antoliana em Roma, de Augusto a Antonino Pio, para começar.