O Modernismo paulista nos anos 20 e a brasilidade no Movimento Antropofágico [1]

                                                                  Airles Almeida dos Santos

Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)

 

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a questão do nacionalismo no movimento modernista de São Paulo na década de 20 do século passado, mostrando sua contribuição para a busca de uma identidade nacional singular por meio da atualização das idéias estéticas a partir das vanguardas européias e do estudo do folclore brasileiro. Na segunda parte interpretaremos o que chamamos de período antropofágico (1928-1930), em especial o Manifesto publicado em 1928, por ser propício a ampliação e ao aprofundamento das reflexões sobre a brasilidade, fruto da dialética implantada pelo movimento desde 22 (nacionalismo X internacionalismo).

Palavras-chaves: Modernismo; Nacionalismo; Antropofagia.

 

Introdução

         Falar que assuntos como o debate sobre o nacionalismo está fora de moda é um fato. Porém durante um longo período da história do Brasil republicano essa temática foi uma das mais discutidas e problematizadas pelos nossos intelectuais. Nesse artigo discutiremos inicialmente a importância do Modernismo paulista com suas dimensões renovadoras na busca da realidade estética nacional e sua contribuição para o que chamamos de “brasilidade”, a construção de uma consciência nacional a partir da análise crítica dos movimentos de vanguarda européia aliadas à pesquisa da cultura folclórica brasileira. Na segunda parte analisaremos o Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de Andrade por conter uma profunda reflexão sobre os temas nacionais com o intuito de se buscar a emancipação cultural.  “A antropofagia foi na primeira década do modernismo o ápice ideológico, o primeiro contato com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro” (ANDRADE, 1991, p.111 apud GOMES, 2010, p.38). Um verdadeiro "divisor de águas" no modernismo brasileiro e na história cultural do nosso país. Debateremos também a dialética implantada pelo Modernismo paulista desde 22 entre nacionalismo de um lado, e internacionalismo do outro no Movimento Antropofágico. Nosso período de estudos se situará na década de 1920 por representar a nosso ver, uma ruptura significativa no modo de produção artística brasileira, uma época propícia ao surgimento de idéias nacionalistas. Como pano de fundo teremos a cidade de São Paulo, símbolo da industrialização e do progresso, espaço da modernidade.

        

1- O Modernismo e a Questão Nacional

          Modernismo: “passagem de um regime representativo da arte para o regime estético da arte”.

Jacques Ranciére

            A Semana de Arte Moderna de 22 representa um marco da arte contemporânea do país. Esse espírito de renovação vai marcar toda uma geração de intelectuais que se voltaram a partir de então para uma das temáticas mais discutidas ao longo da história da Brasil Republicano: a questão nacional.

            O movimento modernista brasileiro, em especial o paulista, foi responsável não somente pela crítica a imitação dos desgastados modelos artísticos/ literários europeus, mas ficou marcado pela preocupação nacionalista, suscitada devido o centenário da Independência Política. A cidade de São Paulo, símbolo do progresso e da modernização, tornou-se palco da fermentação de idéias pautadas na crítica a cultura de importação e a busca pela atualização cultural, linguística e dos conceitos estéticas. Agora, não bastava nem devia manter os olhos fixos na Europa[2], “pensar em europeu” como salientou Ronald de Carvalho, mas sim retratar o povo brasileiro, suas raízes e sua natureza; voltar-se para si mesmo com o intuito de criar visualmente uma identidade nacional. E a única forma de garantir a superação do atraso e o ingresso do Brasil na modernidade seria através da reelaboração das bases da “brasilidade”. Apesar de a Semana de Arte Moderna de 22 ser considerada o marco para a introdução das idéias de vanguarda[3] no Brasil, percebemos que mesmo antes do que convencionalmente chamamos de “pré-modernismo” já existia uma ânsia de modernidade nos intelectuais da geração de 1870[4] vinculados à Escola do Recife.  Um ponto importante é compreendermos mais o que une os autores “pré-modernistas” e modernistas, do quê o que os separa. Na verdade não cabe aqui se aprofundar no debate relativo aos diversos significados de “modernidade”. Mônica P. Velloso (2006) critica severamente essa visão que contrapõe pensamento pré-moderno de um lado, e moderno de outro. Segundo ela, nos “acostumamos a pensar o modernismo como um movimento espaço-temporal definido: São Paulo, 1922. Geralmente não prestamos a devida atenção aos ‘sinais de modernidade’ que já vinha despontando, das mais distintas maneiras, em várias regiões e cidades” (p.354). Não devemos esquecer o que Neide Rezende (2000) chama de “os modernistas das cavernas” em referência à exposição de Anita Malfatti em 1917, considerado o “estopim” do movimento. Dessa maneira “o ano de 1917 é um ano-chave para a história do Modernismo” (p.13). Esse apontamento serve para percebermos que as preocupações categóricas com relação a gerações são mais um recurso didático que propriamente de distinção. Como mostrou Amaral (1998) até mesmo “a exposição de artes plásticas da Semana de 22 apresentou antes intenções de modernidade que modernidade propriamente dita” (p.32) e isso é o que caracteriza a chamada primeira geração: a descoberta da entidade nacional, a busca da realidade estética do Brasil ou como diria Mário de Andrade “a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência nacional criadora” (1982, p.242 apud Costa).

O movimento paulista inspirado nas vanguardas européias – modelos europeus recentes: cubismo, expressionismo, dadaísmo, futurismo[5], surrealismo, construtivismo e fauvismo – retorna ao primitivismo radical pela “necessidade de se abandonar o passado (...) e procura-se (...) novas fontes para construção da nacionalidade” (OLIVEIRA, p. 183). Os artistas vão se alicerçar em conhecimentos científicos de historiadores, antropólogos, sociólogos e folcloristas para por fim a acomodação e mimetismo europeu.

            Sabemos da diversidade do modernismo paulista de modo geral. Dentro do próprio movimento na década de 20 existiam concepções totalmente diferentes para não dizer antagônicas. Aqui não enfocaremos as distintas visões ideológicas[6] da nacionalidade no modernismo durante 1920, pois na segunda parte nos debruçaremos especialmente na noção de brasilidade criada pelo movimento antropofágico e seus adeptos. Entretanto, apesar das divergências no que diz respeito à necessidade de se auto-afirmarem como brasileiros, a produção de uma estética autenticamente nacional foi um ponto de consenso. Pretendia-se a descoberta da realidade interna, a luta pela especificação, onde os artistas segundo Mário de Andrade deveriam “funcionar socialmente dentro de uma nacionalidade” (ANDRADE, 1967 apud Faria, 1982, p.48). Andrade foi um dos grandes expoentes da vanguarda brasileira. Símbolo máximo da intelectualidade paulista e de novo nacionalismo reivindicado pelos primeiros modernistas. Vejamos o que o próprio diz sobre sua caça pela “consciência nacional”, assunto que norteará o modernismo:

“Sentindo que não tinha forças suficientes para me universalizar, sem aquele gênio, ah! Que me importa como brasileiro me ao mundo, doutra forma me abrasileirei: dentro da ordem das minhas tendências artísticas, me fiz brasileiro para o Brasil. Resolvi trabalhar a matéria, especificá-la o quanto em mimá-la o quanto em mim e na complexidade dela (ANDRADE apud SENNA, 1964, p.128).

                Já percebemos a tônica do nacionalismo sob o movimento modernista de São Paulo nos anos 20. A reavaliação do que vinha a “ser brasileiro” na época ficava implícito no desejo de rompimento com a intelectualidade acadêmica nas artes e na literatura. As críticas dos “modernos” recaíam principalmente sobre os parnasianos (à rima e à métrica rigorosa), o realismo e ao romantismo devido ao desligamento da realidade. Não bastava “ser contra” a maneira erudita e rebuscada da escrita dos poemas de Bilac e do romantismo, mas deveria “fazer contra” aqueles que negam a verdadeira essência de ser brasileiro. É esse o caminho trilhado pelo modernismo paulista a partir de 1924[7] que explicita a proposta de ruptura com a importação de padrões culturais estrangeiros. “Aparece de forma explícita a ideia de que ser moderno é ser brasileiro, assumindo-se de modo singular de realização dos valores nacionais” (OLIVEIRA, 1990, p.183). A partir desse ano percebe-se a construção de outra percepção da nacionalidade com o Movimento Pau-Brasil e, principalmente no Período Antropofágico (1928-30) com as artes plásticas de Tarsila do Amaral e a literatura de Oswald de Andrade. A dialética implantada pelo Modernismo paulista desde 22 entre nacionalismo X internacionalismo no Movimento Antropofágico é o assunto da segunda parte deste trabalho.

2- “Tupi, or not tupi that is the question”- o canibalismo cultural

Por paradoxal que possa parecer, foi pela consciência do seu ‘internacionalismo modernista’, na expressão de Mário, que o movimento chegou – outra expressão de Mário – ao seu nacionalismo “embrabecido”.

Mário Pedrosa

 

A publicação do Manifesto Poesia Pau-Brasil marcaria a transição da crise aguda causada pela insuficiência inicial do movimento para sua segunda fase, caracterizada pela preocupação com a dimensão identitária e com a determinação da entidade nacional. A proposta oswaldiana modificaria os termos da discussão sobre como se deve operar a modernização da arte brasileira, questão levantada na Semana de Arte Moderna. O impacto da estética pau-brasil pode ser medida pela ampla repercussão que teria nas declarações e nas obras dos demais participantes do movimento a partir de 1924. Além da preocupação já mencionada acima, o manifesto mostra-se preocupado com o problema da língua. A proposta residia em aproximar o máximo possível a linguagem falada à escrita, sem erudição e arcaísmos a fim de criar uma língua autenticamente brasileira. Vai ser essa “literatura suicida” – crítica feita por Tristão de Ataíde à proposta do Manifesto Pau-Brasil – que se lançaram as bases para a ruptura com o processo de importação de padrões culturais atrasados, onde Oswald contrapõe a poesia de exportação. Aqui já estão esboçadas parte das idéias que marcariam a corrente antropofágica. Sobre o assunto ele diz:

O primitivismo que na França aparecia como exotismo era pra nós, no Brasil, primitivismo mesmo. Pensei então, em fazer uma poesia de exportação e não de importação, baseada em nossa ambiência geográfica, histórica e local. Como o pau-brasil foi a primeira riqueza brasileira exportada, denominei o movimento de pau-brasil. (em entrevista ao Correio paulistano em 26/06/49).

O Manifesto Pau-Brasil foi muito importante para a poesia modernista e já trazia no seu bojo os germes que gerariam o antropofagismo. O Manifesto Antropófago foi publicado na primeira edição da Revista de Antropofagia em 1928 e extrapolou o limite da literatura e das artes plásticas. Nele existe uma profunda reflexão sobre os temas nacionais com o intuito de se buscar a emancipação cultural do país. A partir de então “passa a defender (...) a ideia de aglutinação e da integração das culturas. Essa absorção de influências deve, no entanto, se dar através da devoração crítica dessas mesmas influências” (VELLOSO, 2006, p.377). Com o documento, o modernismo “reposiciona sua consciência de tradição, partindo para uma verticalização diacrônica na literatura do Brasil” (COSTA, 1982, p.26). A ideia de canibalismo cultural (homem comedor de culturas) retoma o primitivismo indígena[8]. Passa-se a síntese daquilo de melhor que vinha fora pensado e relacionado ao que tínhamos internamente. Foi assim que Oswald “estabeleceu a conexão, ao mesmo tempo em que marcou a diferença entre o modernismo brasileiro e as manifestações culturais da vanguarda européia.” (GOMES, 2010, p.43).

            Com relação ao contexto político em que o Manifesto foi redigido, a década de 20 foi conturbada, marcada pela república café-com-leite, esboçando assim o desequilíbrio das forças políticas atuantes, a criação do Partido Comunista e do Partido Democrático. Internacionalmente o avanço do fascismo italiano. O desejo de mudança que marcou o momento refletia-se também na cultura e “a antropofagia foi na primeira década do modernismo o ápice ideológico, o primeiro contato com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro” (ANDRADE, 1991, p.111 apud GOMES, 2010, p.38). Como o autor observa em depoimento posterior, a antropofagia foi um "divisor de águas" no modernismo brasileiro. Não apenas por causa do ato de conscientização que significa a "descida antropofágica" como também pelas opiniões divergentes que gerou e que é causa de futuros desentendimentos entre os modernistas.

            Entretanto o que trás de efetivamente novo os “antropófagos”? Como diferenciar a devoração de influências estrangeiras do mimetismo europeu? Qual a contribuição para a reflexão sobre a brasilidade?

            As vanguardas européias, em especial a diretriz cannibale do dadaísmo, o surrealismo de André Breton juntamente com os estudos de Freud sobre o inconsciente serviram para despertar a consciência nacional no meio artístico e literário. Os novos procedimentos artísticos se uniriam às inspirações autóctones. Como resultado, teríamos uma expressão artística genuinamente brasileira e a mescla entre nacionalismo e internacionalismo foi a característica básica do modernismo. “Percebemos que o internacionalismo será exaltado como recurso para o rompimento com o academismo passadista, por meio da nova informação que veio de Paris[9]” (AMARAL, 1998, p. 23-24). Podemos considerar o Manifesto Antropófago como o ponto máximo de repúdio as manifestações européias decadentes e seu legado tem sido vasto, servindo como referência posteriormente para o Tropicalismo dos anos 60 e o Cinema Novo. Apenar do tom anarquizante, no que diz respeito ao nacionalismo, toma uma estratégia que aponta para a utopia. Passemos a análise mais detalhada do texto.

            Em linguagem metafórica cheia de aforismos poéticos repletos de humor, o Manifesto torna-se o cerne teórico desse movimento que pretende repensar a questão da dependência cultural no Brasil. Nele percebemos as influências sofridas por Oswald de Andrade como a descoberta do inconsciente pela psicanálise e o estudo Totem e Tabu, de Sigmund Freud. Não se trata mais de um processo de assimilação harmoniosa e espontânea entre os dois pólos, como de certa forma o autor pregava no Manifesto da Poesia Pau-Brasil de 1924. Agora o primitivismo aparece como signo de deglutição crítica do outro, o moderno e civilizado.  Nesse sentido, o mito, que é irracional, serve tanto para criticar a história do Brasil e as conseqüências de seu passado colonial, quanto para estabelecer um horizonte utópico, em que o matriarcado da comunidade primitiva substitui o sistema burguês patriarcal: “Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia impressa”; “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. Nessa última citação do manifesto percebemos o apontamento para o espaço da utopia, apesar do teor crítico e radical dos apontamentos feitos pelo autor, sendo inclusive marcado pelo pensamento de Karl Marx, daí a matriz anarquizante e contestadora do texto [10]. Cruzadas, essas influências (além da corrente surrealista como André Breton e o Manifeste Cannibale escrito por Francis Picabia) ganham da pena de Oswald de Andrade vida nova ao se amalgar sob a rubrica de um conceito também inédito e com raízes na história da civilização brasileira: antropofagia ou canibalismo[11]. Percebemos a ênfase na contradição violenta entre duas culturas: a primitiva (ameríndia) e a latina (de herança cultural européia), que formam a base da cultura brasileira, mediante a transformação do elemento selvagem em instrumento agressivo. Em vários trechos Andrade mostra o desprezo pela cultura européia e critica a utilização indiscriminada dos padrões culturais e dos comportamentos estrangeiros: “Contra todos os importadores de consciência enlatada”; “Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas”. “Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas”. Ainda faz referência à extensão continental do país e à necessidade de resolver os problemas lingüísticos [12] que se pautava pela tradição lusitana, ignorando as especificidades do país - “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil”.

            Apesar de toda a preocupação de cunho cultural – nativismo e indianismo -, político e econômico, a questão social do negro não recebeu nenhum destaque. Segundo Gomes (2010) “A problemática racial, por sua vez, tão premente no modernismo do nordeste acoplada à tematização dos problemas sociais brasileiros, esteve ausente ou teve um tratamento, essencialmente, figurativo na Antropologia oswaldiana” (p.42). Em contrapartida, o índio, personagem emblemático e mítico possuía lugar central. Oswald contraria toda a lógica do indianismo romântico apoiado nos escritos filosóficos da “teoria do bom selvagem” de Rousseau. Mas aqui o indígena, símbolo da nacionalidade brasileira, aparece às avessas, calcado na concepção de Michel de Montaigne do “mau selvagem devorador” - Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling”. Aqui aparece a crítica a representação do Romantismo onde o herói indígena aparece com atitudes cavalheirescas em consonância aos grandes senhores portugueses: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses”. Oswald propõe o repúdio ao aculturamento dos índios pela civilização branca cristã e ocidental [13]: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz”.

            Como recurso literário fez-se uso do humor e da paródia quando, por exemplo, menciona de forma irônica e jocosa, o ato da Independência do Brasil: “A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: - Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia”.

            O Movimento Antropofágico representou uma das mais importantes manifestações de originalidade no campo das artes autenticamente brasileiras e representou o caminho que singularizou a nacionalidade esboçando uma configuração identitária jamais vista até então. “Era o retorno ao índio, à terra: era a proclamação da independência intelectual depois da independência política. (...) Se observa um fenômeno curioso e por assim dizer inédito em nossa história literária e artística: o da pintura fluindo na literatura” (MILLIET apud AMARAL, 1998, p. 39).

 

“Antropofagia”

Nesta tela temos a junção do "Abaporu" com "A Negra". Este aparece invertido em relação ao quadro original. Trata-se de uma das telas mais significativas de Tarsila. Foi sua obra “Abaporu              - homem que come no tupi – que inspirou Oswald de Andrade na elaboração do Manifesto de 28.

               

            Apesar do que foi mencionado acima, o movimento mostrou-se paradoxal. Renegava-se a civilização da qual era herdeira e, como não se podia eliminá-la totalmente, a saída era devorá-la para que se pudesse digeri-la e assimilá-la. Pressupõe alteridade, mas a destrói em um gesto de incorporação. Uma das principais críticas foi feita por Alfredo Bosi em História concisa da literatura brasileira. Segundo Bosi, existe em Oswald um “Freud equívoco e mal deglutido” e o “comprazimento da crise moral burguesa em que ele próprio [Oswald] estava esvingado” (BOSI, 1974, p.386-388)

Sem dúvida, o caráter assistemático e o estilo telegráfico utilizados pelo escritor para dar forma a seu ideário antropofágico de certo modo contribuem para a ocorrência de uma série de mal-entendidos. No entanto, a multiplicidade de interpretações proporcionada pela justaposição de imagens e conceitos é coerente com a aversão de Oswald de Andrade ao discurso lógico-linear herdado da colonização européia. Sua trajetória artística indica que há coerência na loucura antropofágica - e sentido em seu não-senso.

Conclusão

Como vimos, o Modernismo de modo geral representou um marco na vida artística e cultural brasileira. Com ele, tanto na fase inicial de negação, quanto na “fase heróica” (intensificação da pesquisa da brasilidade), a questão que norteava até então a vida dos intelectuais do nosso país – a questão nacional – passou a ser reelaborada mais criticamente e a influência das matrizes de pensamento europeu se fez presente no pensamento social brasileiro quando buscávamos nos integrar ao mundo “civilizado” ou quando procurávamos acentuar a singularidade brasileira, e, portanto demarcar nossa diferença (OLIVEIRA, 1990). Esse movimento de renovação representou a busca pela tomada de consciência nacional.

Apesar das diferenças que surgiram no seio do Modernismo após 1924, em especial aqui o paulista, era inegável que tanto para os mais “modernos” quanto para os mais conservadores, a emancipação artística estava no centro das discussões: “entender a brasilidade, sobretudo entendê-la num contexto de mudanças” (VELLOSO, 2006, p.382). A Antropofagia oswaldiana reflete muito bem esse anseio. Sua linguagem metafórica como diagnóstico de uma sociedade usurpada, que sofreu com a ação predatória do colonizador reflete a configuração identitária jamais vista no cenário nacional. Essa nova percepção de “ser” brasileiro já vinha sendo esboçada pelo Manifesto Pau-Brasil. A concepção da existência de múltiplas culturas dentro de uma só está presente na obra de Oswald de Andrade (o Brasil antropofágico) e de Tarsila do Amaral (o Brasil Abaporu), a exaltação do nativismo; do primitivismo. A proposta de renovação cultural mais original, radical e polêmica de que até hoje se tem notícia na literatura brasileira. O ponto máximo de repúdio às manifestações européias decadentes.

 

Referência Bibliográfica

AMARAL, Aracy A. Artes Plásticas na Semana de 22. 5a ed, São Paulo, 1998.

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

                                                  

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1974.

COSTA, Marta Morais da. O Modernismo segundo Mário de Andrade. In: COSTA; FARIA; BERNARD; GUIMARÃES; WEINHARDT. Estudos sobre o modernismo. Curitiba, Criar, 1982, p.11- 43.

FARIA. João Roberto Gomes de. Mário de Andrade e a Questão da Língua Brasileira. In: COSTA; FARIA; BERNARD; GUIMARÃES; WEINHARDT. Estudos sobre o modernismo. Curitiba, Criar, 1982, p.45-68.

GOMES, Heloisa Toller. Antropofagia. In: FIGUEIREDO, Eurídice (org.). Conceitos de Literatura e Cultura, 2a ed. Niterói: EdUFF, Juíz de Fora: EdUFJF, 2010, p.35-54.

 

Manifesto Antropófago. In: Enciclopédia Itaú Cultural - Artes Visuais, disponível em http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=marcos_texto&cd_verbete=339.

MONTEIRO, Luciano. O movimento modernista e a construção de uma identidade nacional sob a égide do Estado Novo. In:_____, disponível em http://www.sbhc.org.br/resources/anais/10/1345085694_ARQUIVO_ArtigoLucianoMonteiroSBHC.pdf.

OLIVEIRA, Lucia Lippi. A Questão Nacional na Primeira República. 1 ed. Brasiliense, 1990.

REZENDE, Neide. A Semana de Arte Moderna. Série Princípios. São Paulo, Ática, 2000.

SENNA, Homero. Cartas de Mário de Andrade a Sousa da Silveira. Revista do Livro (26): 117-33, set. 1964.

SUBIRATS. Eduardo. Da vanguarda ao pós-modernismo, 4a ed. São Paulo: Nobel,1991.

VELLOSO, Mônica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo liberalismo excludente. v 1. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.



[1] Artigo apresentado como requisito para averiguação de aprendizagem e obtenção de nota na disciplina História do Brasil República da Universidade Federal de Sergipe – UFS, administrada pelo professor Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá.

[2] O padrão cultural europeu passa a ser visto como decadente após o fim da Primeira Guerra. A América e o Brasil passam a ser visto como alternativas. Aqui grosso modo ocorre a recusa ao passado e o retorno ao primitivismo. A arte passa a operar como organismo social.

[3] Conforme Subirats (1947) “os pioneiros da vanguarda postulam uma estética revolucionária sob o signo da ruptura e da emancipação, ligada ao mesmo tempo aos mais altos valores sociais utópicos e a esperança” (p.1)

[4] Tobias Barreto, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu , Graça Aranha entre outros.

[5] Devido a aproximação de Marinetti ao fascismo o termo “futurismo” ficou desprestigiado e usado como sinônimo de maluquice; falta de equilíbrio e passou a ser repudiado por parte dos intelectuais paulistas.

[6] Há os que tentam modernizar o passado - Tristão de Ataíde; o sertanismo de Afonso Arinos, os regionalismos de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, o conservadorismo dos verde-amarelos ou a visão integrada da nacionalidade de Mário de Andrade.

[7] A partir desse ano surge um complexo painel na vida intelectual do país: 1924-Movimento Pau-Brasil; 26: Manifesto Regionalista; 28-Manifesto Antropófago; 29-Manifesto Nhengaçu (verde-amarelo).

[8] O indígena aparece como a metáfora central da antropofagia, não no sentido romântico, idealizado. Apesar de também não ser a representação do modelo real de autóctone. Discutiremos o assunto ao longo do texto.

[9] Tarsila do Amaral foi profundamente influenciada por artistas franceses, principalmente por Fernand Léger. A pintora fundiu as lições do cubismo com a magia da “atmosfera” de seu país.

[10] “O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista”

[11] Segundo Gomes são conceitos diferentes que erroneamente são usados como sinônimos. Cf. GOMES, Heloisa Toller. Antropofagia. In: FIGUEIREDO, Eurídice (org.). Conceitos de Literatura e Cultura, 2a ed. Niterói: EdUFF, Juíz de Fora: EdUFJF, 2010, p.35-54.

[12] Lembremos que a lingüística foi questão crucial na discussão da nacionalidade no período. No Manifesto junção do português ao tupi: “Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro./Catiti Catiti/Imara Notiá/Notiá Imara/Ipeju”.

[13]  Cf. nota 7.