Victor Henrique da Silva Menezes[1]

 

O historiador francês Michel de Certeau (2007: 65-66) assinalara certa vez que uma produção historiográfica depende das condições sociais, políticas, econômicas e culturais nas quais o historiador está inserido. Robert Rosenstone, estudioso das relações entre história e cinema, ainda na década de 1980, apontara que o mesmo poderia ser dito acerca das produções cinematográficas e televisivas. Tais afirmações podem ser estendidas, no geral, para todas as produções culturais, materiais e imateriais, da humanidade, e em particular, para a literatura. Ao ler o primeiro romance do escritor norte-americano Edgar Rice Burroughs que consagrou a história de Tarzan, o filho das selvas, como um dos principais heróis do século XX, é impossível nos desprendermos dos ideais de civilização, cultura, masculinidade, feminilidade, raça e barbárie presentes nas sociedades ocidentais da final do século XIX e início do XX. O romance de Burroughs, além de falar do imaginário ocidental acerca do continente africano, nos diz muito acerca dos aspectos culturais e sociais que circundavam a sociedade na qual o autor estava inserido.

Ao inserir o seu trabalho dentro de seu contexto é possível, mesmo por meio de uma leitura cujo único objetivo seja o entretenimento, entender que os ideais presentes no livro pouco revelam acerca do que seria viver no continente africano no início do século XX. Mas, nos mostram pequenos fragmentos acerca do que um homem norte-americano e de classe média imaginava ser a vida na África. Por meio do livro Tarzan é possível trabalhar com conceitos caros atualmente aos historiadores como “alteridade”, “relações de gênero”, “imaginário cultural”, “raça”, entre outros. Partindo de tais pressupostos, o presente ensaio terá como objetivo comentar as representações do masculino e do feminino em algumas passagens da obra que podem ser problematizadas a partir dos atuais debates inseridos nas ciências humanas, em particular na História. Entende-se que os ideais ocidentais e imagens acerca do bárbaro – nesse caso, do africano –, das relações de gênero e raça presentes no livro eram, por certo, compartilhados entre a grande maioria dos primeiros leitores de Burroughs – se assim não fosse, dificilmente o romance teria alcançado tamanho sucesso. Hoje, porém, devido em particular aos estudos pós-coloniais, de gênero e de crítica aos discursos orientalistas e imperialistas, tais narrativas são consideradas no mínimo problemáticas. É em diálogo com tais perspectivas que procurarei realizar breves comentários acerca da obra.

Logo no início do livro, no capítulo I (“Mar adentro”) o leitor é apresentado ao contexto político-econômico no qual o enredo se insere: imperialismo britânico na África, final do século XIX. Ao apresentar a personagem John Clayton Greystoke, que viria a ser o pai de Tarzan, o narrador explica que ele havia sido designado para um importante posto na África ocidental britânica. É devido a essa nomeação que Lorde Greystoke e sua esposa Alice Rutherford, que já carregava Tarzan em seu ventre, são enviados ao oeste da África; porém, devido a um motim ocorrido na embarcação que os levava o casal nunca chegará a seu destino, sendo abandonados em alguma região litorânea do sudoeste da África. Destaca-se também nesse momento inicial da narrativa o ideal de masculino e feminino da sociedade ao qual Edgar Burroughs pertencia: Lorde Greystoke é apresentado como “um homem forte e viril; mental, moral e fisicamente” (p. 25), enquanto que Alice é bela (p. 25), frágil (p. 39), muitas vezes irracional (p. 43), que dá o melhor de si para ser corajosa, mas que devido a sua essência feminina, jamais consegue ter a audácia, esperteza e coragem de seu esposo. No capítulo II (“O lar selvagem”), o autor do livro coloca na boca de Alice uma fala que representa muito do pensamento masculino acerca da mulher no final do século XIX e início do XX. O casal havia acabara de ser deixado, pelo bando de Black Michael, na selva africana quando Alice comenta com Greystoke:

“Oh, John, gostaria de ser um homem, com uma filosofia masculina, mas sou apenas uma mulher, usando meu coração em vez da cabeça, e tudo o que vejo é horrível demais, impossível de se colocar em palavras. Espero que esteja certo John. Darei o meu melhor para ser uma mulher primitiva corajosa, uma companheira perfeita para um homem primitivo” (p. 43).

Por meio dessa fala de Alice fica patente a ideia de inferioridade do gênero feminino frente ao masculino. Alice acredita ser menor que o seu esposo e aceita a sua situação (algo que as sufragistas, inglesas, australianas e norte-americanas em particular, já questionava naquele mesmo período). Enquanto a virilidade presente em Greystoke o transforma em um homem maleável a qualquer tipo de situação, que logo se acostuma com o seu novo lar, a sua esposa, entendida como pertencente ao “sexo frágil”, sofre de pânico e dos nervos por ter que habitar em um local selvagem. Alice, como outra personagem feminina que aparece na segunda metade do livro, Esmeralda, sofre dos nervos, e como era típico do início do século XX – herança do século XIX – na representação de personagens femininas na literatura escrita por homens, em momentos de grande perigo acabava por perder os sentidos. Esmeralda sofre de vários desmaios ao longo do livro. Com Alice não é diferente, pois ao ver o seu esposo ser atacado por um antropoide, logo após uma súbita coragem que a faz atirar no primata, perde a consciência (p. 52). Depois desse episódio nunca mais será a mesma, e o autor indica que Alice passa a sofrer de transtornos mentais, até que um ano após o nascimento de Tarzan ela vem a falecer (p. 54). Interessante que Greystoke passara pelos mesmo perigos que sua esposa, mas em nenhum momento enlouquecera. Isso demonstra, por certo, como o feminino é entendido pelo autor do livro como frágil, mais delicado e de certo modo inferior ao masculino. Greystoke, como um homem viril que era, não morre por motivos de problemas mentais, mas sim assassinado pelo líder dos antropoides, Kerchak, um ser talvez tão viril quanto o lorde inglês, mas que o vence devido a sua força e selvageria.

Essa dualidade “masculino vs feminino” também está presente na forma como o autor apresenta Tarzan e Jane Porter. Jane tem as suas limitações devido ao seu sexo, enquanto que o protagonista do romance, além da força e virilidade conquistada a partir de sua experiência e vivência na selva, é corajoso, forte fisicamente, astuto e inteligente. Características essas que não são utilizadas para definir a personalidade ou o físico de Jane. Essas características só poderiam existir em personagens masculinas, e de maneira ainda maior em personagens masculinas crescidas na selva. Pode parecer natural tais características atribuídas aos gêneros masculinos e femininos a uma primeira leitura. Mas quando o romance é lido às luzes das recentes teorias dos estudos de gênero e feminismo, que entende os gêneros masculino e o feminino como construções culturas e sociais, leva-nos a crer que essas qualidades são ideais de uma sociedade patriarcal e machista (como aquela na qual o romance foi concebido) que atribuía papeis específicos às pessoas de acordo com o seu sexo, e não uma verdade dada. A personagem central do livro ser um homem já diz muito acerca da mentalidade do início do século XX. Algo interessante ainda a ser destacado quanto as questões de gênero é a ideia de amor maternal e maternidade como nato do gênero feminino presente nas personagens Alice e na antropoide Kala (p. 60). Como demonstrado pela historiadora francesa Elisabeth Badinter (1988), a ideia de maternidade como algo essencial ao gênero feminino bem como o de amor materno é uma construção burguesa do século XIX. Em outros períodos históricos as relações entre mães e filhos foram outras. Relações distintas podem ser percebidas, mesmo que pequena, também na sociedade atual. Assim, a troca que Kala faz de seu filho morto pela criança de Alice representa em muito a essa ideia burguesa de que a todo ser do sexo feminino está o interesse e vontade de ser mãe.

Em um romance que se propõe a tratar do outro, do selvagem, daquele que está fora da civilização – e entende-se, que está fora do eixo EUA e Europa –, não é difícil encontrar passagens onde ideais de superioridade racial estão presentes. Um dos mais marcantes exemplos é o fato de Tarzan, mesmo tendo crescido na selva africana, por ser um homem branco, tem inteligência suficiente de aprender a ler e escrever inglês sozinho. O autor demonstra em diversas passagens (por exemplo, quando Tarzan salva Jane e seus amigos dos perigos da selva, as inúmeras vezes que engana a tribo de Mbonga, quando se recusa subitamente a comer Kulonga – inimigo que acabara de matar – apenas por ele ser outro ser humano) que Tarzan é mais inteligente e superior que qualquer outro ser vivo nascido e crescido na selva, inclusive, dos homens da tribo de Kulonga. Estes, por serem negros, são mostrados como canibais, supersticiosos e irracionais, características essas que nunca estão presentes em Tarzan. Essas diferenças são resumidas pelo autor, por exemplo, no capítulo VI (“Embate na selva”) em que é dito que nas veias de Tarzan “corria o sangue dos melhores de uma raça de poderosos lutadores” (p. 79). Ou seja, a suposta essência do homem branco ocidental é tão forte que, não importa onde ele esteja, ela sempre irá predominar; ela sempre irá contra e vencerá a suposta selvageria de lugares tidos como inóspito, que nesse caso é personificado pela África. Tarzan não é nem o primeiro nem o último romance de sucesso que pode ser entendido como propagador de um discurso que hoje entendemos como imperialista, racista e machista. De um discurso que como apontado por Edward Said, em sua clássica obra Orientalismo, auxiliou na propagação de diversas imagens acerca do outro tido como bárbaro, incivilizado e irracional. E esses discursos, cabe destacar, quando de sua produção não eram vozes uníssonas, mas estavam em direto diálogo com os diversos ideais do momento em que fora produzido, como apontado anteriormente. O romance de Burroughs está inserido numa ordem do discurso – no sentido foucaultiano – própria de seu tempo. E é a partir dela que melhor podemos entender as representações presentes na obra


 [1] Mestrando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato: [email protected]

 

Referências

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1988.

BURROUGHS, Edgar R. Tarzan: o filho das selvas. Ilustrações Hal Foster. Tradução e apresentação de Thiago Lins. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

ROSENSTONE, Robert. História em imagens, História em palavras: reflexões sobre as possibilidades de plasmar a história em imagens. Trad. Cristiane Nova e Jorge Nóvoa. O olho da História, n. 05, 1998, p. 105-116.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.