O lado "B" da mesma história

O meu interesse pela origem do cristianismo compartilha de um anseio antigo por se desvelar a mais fascinante história da Humanidade. A história que ainda não foi contada. No mesmo patamar de importância está questão do porquê de tanto mistério. Por que homens cultos e inteligentes, que dedicaram suas vidas ao estudo da história, reclamaram da bruma que envolvia os primórdios do cristianismo e, ainda, se perguntavam sobre os motivos do seu admirável sucesso? Uma evidente manipulação da história e do pensamento humano, sem dúvida alguma.
Bruno Bauer (1809-1882), filósofo, teólogo e historiador alemão investigou as fontes do Novo Testamento e concluiu que este era mais grego do que judeu; defendeu a tese de que Jesus Cristo era um mito criado no segundo século; acreditava também que o alegado cristianismo do primeiro século, na Palestina, e seus personagens era inteiramente fictício. O interesse de Bauer não era exceção no século dezenove. Por um caminho diverso da pesquisa filosófica dele cheguei, em princípio, a estas mesmas conclusões1.
Friedrich Engels (1820-1895), filósofo, filho de um rico industrial alemão, ─ impressionado com o estado de miséria dos funcionários das fábricas de sua família, desenvolveu um estudo sobre a situação das classes operárias, baseado na sua experiência como diretor de uma dessas unidades na Inglaterra, Manchester. Uniu-se a Karl Marx com o qual produziu o Manifesto Comunista e trouxe uma nova visão da história afirmando que a história da Humanidade é a história da luta de classes. ─ criticou Bruno Bauer acusando-o de tomar graves liberdades com a história conhecida; fazer desaparecer todo o fundo histórico para as narrativas do Novo Testamento relativas a Jesus e aos seus discípulos e negar as narrativas de historiadores romanos para retardar o surgimento do cristianismo para o segundo século. Ora, que historiadores eram esses? Suetônio, Tácito e Plínio, o Jovem? Que interesse Bauer teria nisso?
Na verdade, a versão oficial dessa história atendia mais aos interesses ideológicos de Engels do que a Bruno Bauer na sua busca pela verdade. "A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos de contato com o movimento operário moderno. Como este, o cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou dispersos por Roma. Os dois, o cristianismo como o socialismo operário, pregam uma libertação próxima da servidão e da miséria; o cristianismo transpõe essa libertação para o Além, numa vida depois da morte, no céu; o socialismo coloca-a no mundo, numa transformação da sociedade." (Engels) O esvaziamento dessa idéia instalada no consciente coletivo era desinteressante ao socialismo nascente de Engels.
No primeiro século, havia tantos escravos em Roma que, se a idéia de luta de classes na Antiguidade tivesse fundamento, a revolução socialista perdeu naquele século sua maior oportunidade. Porém, ninguém cogitava o fim da escravidão. A escravidão era normal no mundo antigo, não a do grego, é claro. Aristóteles que o diga. Ainda mais a escravidão da nata do helenismo do Oriente. Os romanos chamavam os escravos de "ferramentas que falam", escravo não era gente. Para piorar um pouco mais, havia uma antiga lei romana que exigia o sacrifício de todos os escravos da casa ─ eram geralmente centenas deles, entre homens, mulheres, crianças e idosos ─ caso algum escravo assassinasse seu senhor. Conter o ódio era necessidade de sobrevivência e parece que a alteridade, palavra latina, se desenvolveu daí e não de alguma caridade cósmica. Aos poucos os anatolianos foram quebrando a brutalidade remanescente do tempo da república e, além da riqueza e prestígio social, alguns libertos conquistaram elevados cargos públicos, como secretarias de Estado, por exemplo. Somente no século dezenove, não o socialismo, sim a tecnologia veio decretar o fim da escravidão. Não houve ideologia alguma que pudesse fazer algo contra esse antigo recurso da economia que a filosofia estóica concedeu alguma atenção.
No primeiro século havia greves na Ásia Menor, e até mesmo proletárias, entretanto, os escravos em Roma que inspiraram a alteridade e o futuro cristianismo, os oprimidos de Engels, eram os mesmos homens ricos, industriais e comerciantes, que igualmente escravizavam na Ásia Menor. No entanto, lá na Europa, eles se encontravam naquela situação humilhante. Foi a essa classe de escravos anatolianos que o historiador italiano Guglielmo Ferrero se referiu como o "Cavalo de Tróia" de Roma. Somente nesse momento e por causa deles, da escravidão, essa voz se fez ouvir no ambiente filosófico. Não existiam máquinas e os métodos de produção e serviços dependiam inteiramente de mãos escravas. Não haveria de ser a filosofia a decidir sobre uma nova ordem social.
Esses gregos muito experimentados e bem aparelhados culturalmente, ao invés de alimentarem o ódio originado do sentimento anti-romano que se manifestava nas classes baixas asiáticas, expresso na panfletagem subversiva e refletido no Apocalipse atribuído a João, buscaram habilidosamente o caminho do poder por intermédio da implantação gradativa de uma nova cultura religiosa ─ o cristianismo. Engels se serve do Apocalipse para situar o cristianismo no primeiro século, por volta do ano 692. Todavia, o nome de Jesus Cristo aparece pouquíssimas vezes neste texto. Quatro vezes explicitamente no início; uma no meio e outra no final. Como o personagem central é o cordeiro imolado, se retirado o nome de Jesus Cristo o texto continuaria íntegro. Como o clamor de vingança desse terrorismo religioso do Apocalipse se identifica unicamente com a panfletagem anti-romana da Ásia Menor, absolutamente divorciado do espírito de tolerância dos demais textos cristãos, essa obra atribuída a João pode ser uma obra pré-cristã posteriormente adulterada, o que, aliás, era um hábito.
Não posso deixar de mencionar que a idéia de que Constantino se aproveitou do prestígio do cristianismo, religião que supostamente havia se espalhado por quase todo império, também não convence. Isso apenas ratifica a versão oficial do alcance espetacular da crença cristã quando ainda ela gatinhava. Constantino, com mãe de língua grega, fora criado em cortes na Ásia Menor e desprezava Roma como um grego aos latinos e acabou, também, desprezado por ela. Era o candidato natural dos gregos cristãos, que o cortejavam antes mesmo dele se tornar Augusto Ocidental. Os propagandistas cristãos desembarcaram em Roma, no segundo século, sob Antonino Pio, como afirmou Bauer, vindos em sua maioria da Ásia Menor, para as classes médias romanas de origem era anatoliana. A origem popular do cristianismo é uma farsa.
Do nada, no segundo século, surgiu o cristianismo já nas mãos dos gregos. Tudo o que se conhece a respeito foi contado por eles. Mas, gregos e judeus não se davam. Até hoje, a união dessas culturas antagônicas ficou sem explicação da parte dos historiadores, pois os teólogos assumiram a palavra. Não existem confirmações das histórias da origem cristã por outras fontes. A autobiografia cristã responde por si mesma e não admite indiscrições. Quase dois mil anos de educação e ensino tentaram garantir a sua inviolabilidade. Na busca pela verdade nem só Bruno Bauer3 contestou a "verdade histórica" estabelecida. Como ele, outros perderam seus empregos e arruinaram suas carreiras4.
Estamos na Era das Comunicações, na Era em que a informação, além de viajar rápido, pode ser confrontada do mesmo modo e com muita facilidade. Ao menos, sob esse aspecto, verifica-se uma significativa contribuição da tecnologia para o progresso moral da Humanidade, da mesma forma que decretou o final da escravidão. Todavia, não é dessa maneira que a indiscrição pela história cristã é encarada pela ideologia da crença. Argumenta-se que tal aprofundamento pode ser fatal a fé ou como ela, ainda hoje, se apresenta. Quem sabe uma fé mais honesta e efetiva esteja por vir.

Sugestões de leitura

1)http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/jcgrego.pdf
2
http://www.marxists.org/portugues/marx/1895/mes/cristianismo.htm
3) http://www.marxists.org/portugues/marx/1882/05/11.htm
4) http://www.jesusneverexisted.com/scholars-portuguese.html