Natanael Vieira de Souza

Cuiabá, 25/02/1954.

Querida Helena.
Dirijo-te estas pequenas linhas com o fim de te (?) pedir desculpas pelo modo com que lhe tratei ontem à noite, mas você deve saber meu (?) que tudo isto faz parte do amor. Eu te amo Helena e fico contrariado o dia que não posso te ver.
Por isso peço que me perdoe sim meu amor!
Aceite mil beijinhos deste que tanto te ama e te adora.

Rubens Figueiredo Dias.

No dia 22/02/2011, esta carta foi-nos apresentada numa aula de estudos de História e Gênero pelo professor Ms. Clementino Nogueira de Sousa (primeira aula deste tópico especial) com o claro intuito de observar o quanto nós acadêmicos seríamos capazes de conectar o conteúdo dos textos da graduação com a problematização e desconstrução de um documento, já que no primeiro semestre tivemos, com ele, aulas de introdução ao estudo de História e no terceiro semestre o mesmo nos ministrou aulas de teoria da História II.
É claro que não devemos ser inocentes, visto que Clementino Nogueira de Sousa, fala de um lugar social, ministra aulas dentro de uma perspectiva historiográfica, porém não "escravizando" o aluno fazendo com que o mesmo seja obrigado a abraçar o mesmo olhar, por isso mesmo enunciou que cada discente se sentisse a vontade para problematizar e/ou desconstruir o documento sob qualquer perspectiva, desde que o faça com competência.
Eu, desde o primeiro semestre tenho andado flertando com os autores pós estruturalistas e, apesar de ainda não ter "domínio completo" das principais idéias que norteiam os discursos de autores, por mim considerados complexos tais como Gilles Deleuze, Felix Guatarri, Paul Michel Foucault e outros, teimo em lê-los e compreende-los, pois o "fazer" do historiador deve lhe proporcionar prazer e alegria, mesmo que eu não possa "compreendê-los", mas o simples fato de lê-los me deixa inebriado e principalmente afetado positivamente pelas idéias destes autores.
As reflexões de textos como: A História Repensada, de Keith Jenkins; Foucault e o Zoológico do Rei, de Margareth Rago; Rizoma, de Gilles Deleuze e Felix Guatarri, entre outros não menos importantes, lidos e discutidos neste curto percurso acadêmico, permite que eu, aprendiz de feiticeiro/historiador, construa uma narrativa "sugerida" pelo ou ao documento ora analisado.
Todos os autores citados no início deste texto, são unânimes em dizer das várias possibilidades de interpretações do documento, seja do deslocamento da perspectiva ou da idéia de multiplicidade, por ambas as propostas chegaremos a uma gama de interpretações que não se esgotarão tampouco.
A carta (documento), como fora chamada em sala de aula, suscita várias discussões, desde questionar os motivos pelo qual Rubens F. Dias pede desculpas; a necessidade de reafirmar "velhas" declarações de amor; os motivos pelos quais Rubens não pode vê-la todos os dias (Rubens seria casado? Ou Helena seria casada?); teria Rubens "forçado" uma situação qualquer a qual Helena não estivesse acostumada? Como os acontecimentos privados e subjetivos são capturados pelo Estado que acaba por torná-los público? Ou seja, o documento é repleto de interrogações, porém ao historiador cabe "ver" nas entrelinhas o que não é visível, o que não é óbvio, o singular ou como disse Jaques Lê Goff, "amar o que não se verá duas vezes" [1].
Como historiador/aprendiz quero "experimentar", e acho esta palavra a mais apropriada já que a Universidade é um campo de experimentação, a fazer uma narrativa do ponto de vista de quem analisa a construção discursiva e procurar fazer um diálogo entre o discurso do perdão, paixão, traição e declaração de amor exposta na carta e a construção discursiva das músicas populares e seus sujeitos, do cancioneiro brasileiro especificamente; até porque, este documento é datado da década de 50 do século XX, mas o discurso ainda perdura nas práticas poéticas dos compositores contemporâneos e, apesar deste recorte temático que faço não estar evidenciado no documento, eu, como pretenso historiador da terceira margem, acredito nas palavras que Durval Muniz, com muita propriedade escreve: "A História possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar. Mas estes objetos e sujeitos inventam a história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio, que o inventam" [2].
A arte e/ou os seus "atores" se gabam de uma constante renovação e, com efeito, à medida do possível certa renovação no meio musical tem acontecido, principalmente quando se trata de renovações nas questões de "roupagem[3]" musical propriamente dita (algumas mudanças na "roupagem" de certas músicas tem trazido melhorias significativas), porém quando se trata de renovações discursivas, textuais, vemos que a carta de Rubens F. Dias, ainda se constitui como temática atualíssima, vigente e paradigmática para muitos compositores; a questão que me arrasta e me impulsiona a escrever sobre este tema passa pelas seguintes indagações/inquietudes: 1. Porque temas como os implícitos e os explícitos na carta tornaram-se cada vez mais freqüentes nas canções populares? 2. Porque os compositores, apesar de falarem em renovação, continuam seguindo a mesma lógica temática e discursiva? 3. Como o público alvo "recepciona" ou apropriam-se dos discursos destas canções? 4. Como nós, historiadores estamos lidando com tal acontecimento?
Penso que a resposta a estas quatro perguntas não esgotará as discussões suscitadas no enunciado, mas nos permitira entender muito deste universo, isso no caso de eu dar conta de respondê-las a contento, como eu disse anteriormente, estou experimentando.
Falando do primeiro questionamento podemos dizer que temas como estes (paixão, perdão, traição, declarações de amor), até por serem temas subjetivos, humanos demasiadamente humanos, talvez o público "consumidor" destas músicas se vejam representados nestes discursos, pois estes discursos partem de fatos e pressupostos que fazem parte vida de cada ser humano independente de raça, cor, religião, etc. e a lógica estabelecida pelos discursos dominantes e midiáticos bombardeiam constantemente que, como Narciso, devemos nos ater ao reflexo e, fazendo isto deixamos de lado a reflexão, deixamos de questionar se é realmente isto que queremos para as nossas vidas.
O segundo questionamento enunciado trata do comodismo dos poetas/compositores que anunciam renovações, mas o que vemos é que nem a temática, tampouco a abordagem, grosso modo, tem mudado nestas ultimas décadas, o que nos leva a pensar que tais poetas tenham sido "escravizado" pelos vícios da língua que, segundo Roland Bartes, é fascista. Senão isto, qual ou quais seriam os motivos de não criarem suas linhas de fuga que escape desta lógica cristalizada de comporem suas letras musicais de forma que dê vazão à multiplicidade, criatividade ou que se tornem rizomáticos?
Este terceiro questionamento tem como mote central a apropriação de como cada um de nós nos apropriamos destes discursos, presente nas canções populares que ouvimos no nosso dia-a-dia. Esta parte é muito importante, pois se trata da subjetividade de cada um, de cada sujeito individualmente, individualmente na apropriação, pois a sua apropriação em se tratando destes temas elencados anteriormente, é sua, mas estes acontecimentos, normalmente se dão entre sujeitos, amor, paixão, traição, declaração de amor, etc., por isso é com muito cuidado que devemos olhar cada canção, pois o que não tem nenhum significado para uns, tem enorme significado para outros, cito um exemplo: a música que chama a mulher de "cachorrona", para algumas mulheres é aceitável e até acham "bom", porém outras mulheres se revoltam e não aceitam. Este é um tema que deve ser melhor estudado, com muito cuidado, pois se trata da subjetividade alheia e como a empatia não é possível, só posso ficar no mundo da imaginação.
O efeito Foucault na historiografia brasileira vem, desde os anos 80 do século XX, ampliando a gama de documentos e abordagens com que o historiador pode operar, outro autor que me ajuda a pensar este último questionamento elencado no início deste texto é Gilles Deleuze, que diz que devemos perscrutar e, perscrutando durante a escrita deste texto, vejo que tanto a temática da carta de Rubens F. Dias, como o discurso poético/musical das canções populares e outras não tão populares, grosso modo, tem sempre como alvo o gênero feminino e não raras as vezes todos os "itens" principais, a saber: paixão, perdão, traição, declarações de amor, estão presentes, as vezes em certas canções todos eles juntos, implícitos ou explícitos. Dá-nos certa impressão de que este discurso e o gênero feminino são indissociáveis, não raras vezes a mulher é colocada como quem comete traição e o homem não pode mais perdoá-la, mas quando é o homem quem comete a traição, perdura a paixão e deságuam torrentes de declarações de amor.
Concluindo, quero dizer que a música não precisa parar de inspirar desejos e produzir subjetividades, nem mesmo querer ser um discurso "verdadeiro" e solene, não quero pensar uma arte que seja "cientifica/verdadeira" e/ou ter um estatuto que a credencie como tal, mas gostaria que tanto os historiadores e os poetas/compositores escrevessem/compusessem como sugere Durval Muniz "Escrever e viver como fogo que consome, como fogueira que crepita, que lança fagulhas de esperança e de sabedoria a distâncias impensadas, escrever textos e temas que queimam nas mãos e nas mentes, que calcinam as certezas e as verdades bem comportadas dos saberes disciplinares e disciplinados" [4]. Questiono o poeta e o historiador porque vejo muita semelhança entre ambos e sonho com uma escrita/composição "artística", não uma arte intelectualizada que apenas alguns poucos poderão entender, mas almejo sim uma arte criativa, que force a linguagem, que não caia no lugar comum onde se cristaliza velhas práticas, arte que tenham como alvo o sujeito independente de gênero, arte que não dê lugar a não criatividade, mas sim à multiplicidade.

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[1] Lê Goff, Jacques, 1924-História e memória / Jacques Lê Goff; tradução Bernardo leitão? (et al.). ? 5ª ed. ? Campinas SP: Editora da UNICAMP, 2003.
[2] Da terceira margem eu so(u)rrio: Sobre História e invenção/Durval Muniz
[3] Termo usado no meio musical quando da elaboração de novos arranjos para uma determinada música e/ou inserções de novos instrumentos.
[4] Escrever como fogo que consome: reflexões em torno do papel da escrita nos estudos de gênero/Durval Muniz de Albuquerque Junior

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