As tensões normativas entre o Bispado e o Cabido do Rio de Janeiro (1750 ? 1808)

RESUMO: O presente artigo apresenta uma análise das tensões preceituais no corpo eclesiástico do Rio de Janeiro no período de 1750 a 1808. A partir da consulta de fontes da época e pesquisa bibliográfica pertinente ao tema, busca-se demonstrar como os detentores da gestão do sagrado mantinham vários embargos internos, a fim de implementar eficazmente as normas do Concílio Tridentino, na complexa realidade sócio-cultural da igreja colonial.

Palavras ? chave: Catolicismo. Clero. Costumes. Colônia.

O período colonial se baseava nos moldes do Antigo Regime, em uma sociedade hierarquizada e os leigos mantinham uma significativa participação nas questões sagradas. No Rio de Janeiro, houve uma forte materialização do catolicismo, era palco das contradições existentes entre o Cabido e o Bispado, na busca do primeiro por uma maior autonomia na organização administrativa das igrejas e no controle do Bispado em relação à conduta dos clérigos nos ritos efetuados nas igrejas, e em seus comportamentos às vezes controvertidos.
A análise do campo religioso se justifica porque a história religiosa não é apenas estritamente eclesiástica ou apologética, mas se estende as expressões culturais e sociais. (COUTROT,1996: 331).
Uma instituição como a Igreja, que está investida de uma função de ordem simbólica, contribui para a manutenção da ordem política e em paralelo com o Estado remete a existência de uma estrutura de relações entre o campo religioso e o campo do poder. (BORDIEU, 1982: 72).
A produção deste trabalho se situa entre os campos da História Cultural e das Instituições ao considerar o aspecto simbólico na visão de mundo representado pela linguagem, práticas e comportamentos religiosos.
As disputas pela hegemonia religiosa ocasionaram divergências entre o Cabido e o Bispado nos âmbitos sacros, administrativos e morais.
O objetivo pretendido é demonstrar que as tensões normativas entre o Bispado e os clérigos do Rio de Janeiro eram constantes nas atribuições das funções sacras.
A análise de fontes sobre o tema, serve como forma de compreender as especificidades das tensões manifestadas entre eclesiásticos.
Os elementos a serem abordados, Bispado e clero secular estavam vinculados ao Padroado Régio, e como cada um tinha atribuições religiosas, as divergências se pautavam no poderio e influência que esses agentes exerciam durante o período colonial.

ASPECTOS POLÍTICOS E RELIGIOSOS EM PORTUGAL E NO BRASIL

Os dois Estados Ibéricos devido a sua expansão ultramarina, passaram a deter amplos poderes sobre as questões eclesiásticas. O convívio entre poder temporal e poder espiritual, deu-se através de várias concordatas.
Em Portugal, a escolha de candidatos aos benefícios eclesiásticos e sua apresentação à autoridade eclesiástica competente sempre se constituíram em uma atribuição régia, e também a nomeação de bispos, tanto para as dioceses metropolitanas, como para as de além-mar. (BOSCHI, 1986: 42).
Em 1760, quando Pombal rompeu com a Santa Sé, ele não deixou de reconhecer a autoridade papal, buscava controlar o domínio hegemônico da Igreja, sob os aspectos políticos e ideológicos. A partir de uma atuação regalista (intromissão do poder civil nos negócios eclesiásticos), seu objetivo era o de secularizar a estrutura social, política e econômica, sem, no entanto, atacar a crença religiosa.
No Brasil, era o monarca português quem decidia sobre a construção de igrejas, fundação de conventos, criação de dioceses e paróquias. A Igreja do Brasil, em sua organização institucional, vinculava-se estreitamente a Portugal.
Desde sua origem, a religião católica foi no Brasil a religião do Estado, ou uma lei fundamental e constitucional do Estado. (MARX,1989: 24)
O governo português instituiu a Mesa da Consciência e Ordens e o Conselho Ultramarino como forma de administrar política e religiosamente as colônias.
O rei de Portugal assumiu o seu papel de chefe religioso do Brasil, sua intervenção conhecida como padroado, se fez presente durante o período colonial.
O Padroado (regime com origem fundamental no Regalismo, que unia poder eclesiástico e civil) regulava o número de religiosos segundo as necessidades do sistema colonial, fosse proibindo a fundação de novos conventos ou fundando-os em lugares desertos, como pontos de segurança e avanço da empresa colonial.
A segunda metade do século XVIII se caracterizou pelo absolutismo estatal, pelas grandes intervenções do Padroado Régio sobre a Igreja e pela ingerência do poder secular na esfera espiritual.
O episcopado continuou pouco numeroso, não acompanhando o aumento demográfico e sua influência não era significativa, as funções episcopais eram exercidas pela instituição leiga do Padroado, e bispos e sacerdotes responsáveis por paróquias eram nomeados e mantidos pelo rei . (HOORNAERT,1992: 13).

O EPISCOPADO COLONIAL

O ofício eclesiástico central era o bispo. O próprio Papa se intitulava bispo de Roma. A diocese era a célula básica da administração da Igreja. Os bispos gozavam da jurisdição ordinária na sua diocese.
Os bispos eram funcionários de uma religião de Estado, vindos de fora quase todos, sem identificação com o povo que deviam reger e ensinar. Bispos e padres eram representantes de uma religião de Estado, conscientes de seu papel de funcionários, constituindo a segunda esfera administrativa do Governo, ligada aos interesses dos grandes proprietários.
O episcopado colonial se caracterizava por três aspectos: a escassez de bispos, as longas vacâncias entre um prelado e outro e a profunda dependência dos bispos do poder real. (HOORNAERT,1992: 172).
O processo de criação de dioceses foi lento e esporádico, o governo procurava explorar economicamente a terra, do que povoa-la efetivamente.
As dioceses tinham uma extensão muito ampla e dificultavam o trabalho dos bispos. A diocese do Rio de Janeiro se estendia a todo o sul do país. Na diocese do Rio de Janeiro, o primeiro bispo só tomou posse em 1782, e após oito anos foi chamado para Portugal, lá ficando até o fim do século.
No século XVIII, as vacâncias entre um prelado e outro se configuravam por questões políticas e desentendimento entre a Coroa portuguesa e a Santa Sé.

A QUESTÃO MORAL E OS DESVIOS ECLESIÁSTICOS

Em Portugal, algumas vezes, os clérigos regulares ou seculares de piores costumes eram cumulados de honras e proventos pelo poder secular, como se houvesse o propósito de favorecer o desregramento. (ALMEIDA, 1970: 423). Tal fato se associa às regulamentações do Padroado português, em nomear indivíduos que muitas vezes, não tinham vocação pia para exerceram funções eclesiásticas, pois adotavam a conduta de funcionários da Coroa e não de agentes religiosos dispostos a difundir a religião católica entre os fiéis do Reino.
O clero português não primava pela vida moral, e era de lá que vinha o maior contingente de clérigos para a colônia brasileira. Liberdade, promiscuidade e relaxamento moral marcavam a sociedade colonial, onde ainda não se conseguira impor os padrões de vida europeus.
A questão da moralização do clero, empreendida pela própria Igreja, era um fato que remontava desde o século XVI, com a Reforma Protestante que criticou veementemente os abusos e as incoerências morais nas posturas de muitos eclesiásticos, e dividiu a Europa, o que fez com que a Igreja reagisse através da Contra-Reforma, mediante o Concílio de Trento.
No período colonial, a legislação eclesiástica vigente eram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, elaboradas por D. Sebastião Monteiro da Vide, arcebispo da Bahia no século XVIII e que serviram como base para os bispados em outras partes do Brasil.
No Brasil, as normas do Concílio de Trento não conseguiram criar raízes, devido a vários fatores, tais como: o próprio regime do Padroado, divergente da Santa Sé, a extensão territorial; as longas vacâncias de um prelado e outro; a realidade difícil de colônia; a situação das igrejas, muito distantes entre si, as do litoral, geralmente mais ricas e ornadas, em contrapartida com às do interior, mais humildes e que necessitavam do Padroado Real para empreender obras satisfatórias, a crescente participação leiga nos ritos eclesiásticos e a formação insipiente dos sacerdotes.

AS TENSÕES NORMATIVAS NO CORPO ECLESIÁSTICO DO RIO DE JANEIRO

No século XVIII, devido à mineração e da relevância do porto do Rio de Janeiro, após ter se tornado a capital colonial, o Bispado também passou a adquirir grande notoriedade.
Mesmo com a precariedade das condições materiais e sacras do Brasil colonial, alguns bispos tentaram praticar as normas instituídas pela Reforma Tridentina, quer com visitas pastorais, na tentativa de criação de seminários ou na realização de sínodos diocesanos.
O clero secular era o principal foco do empenho de muitos bispos em moralizar o corpo eclesiástico. D. Frei Antonio do Desterro que foi bispo do Rio de Janeiro durante boa parte do século XVIII, empreendeu melhorias normativas no clero e na devoção do povo, erigiu inúmeras paróquias, cuidou das missões, do ensino da instrução religiosa de seus diocesanos, após a expulsão dos jesuítas.
Outro bispo que também procurou melhorar a situação moral e teológica do clero foi D. José Joaquim Mascarenhas Castelo Branco, que promoveu estudos entre o clero e os candidatos ao sacerdócio. Introduziu aulas de moral para os sacerdotes e reorganizou os estudos nos três seminários da Diocese. (RUBERT,1987: 55).
Constam no Bulário do Arcebispado do Rio de Janeiro, tais empreendimentos nos costumes do clero:

(...) Assim, pois, por pastoral de 11 de março de 1775 (...) muitos sacerdotes celebravam o santo sacrifício com irreverências e precipitação capaz de escandalizar os próprios ímpios, exigiu que, ao requerimento do sobredito exame, todos ajuntassem atestado de estarem aprovados em cerimônias de missa.

Aos párocos estava especialmente proibido o convívio em tabernas, a embriaguez, uma pose descomposta (grandes risadas, altas vozes, correrias, vestes imodestas ou sórdidas), o teatro, as touradas, os jogos (salvo o xadrez), a caça, a pesca, o comércio ou agricultura profissionais, e o porte de armas.
No Rio de Janeiro mediante uma Pastoral, o Bispo D. Frei Antonio do Desterro mandou passar uma reforma dos eclesiásticos a respeito dos vestidos, trajes e ornamentos:
(...) Consta-nos, com (...) mágoa, que alguns eclesiásticos, (...) que não só desedificam aos seculares, mas escandalizando a santidade do seu estado com trajes e ornatos imodestos, vaidosos e secularizados, vestindo meias indecentes, e de cores só próprias de um leigo , trazendo fivelas de ouro e prata, e quando andam a cavalo esporas de prata, (...) como também nas camisas botões de ouro e pedras preciosas (...) Da mesma sorte trazem com vaidade os cabelos crescidos e alguns até crespos, e retorcidos ao ferro (...) confundindo hierarquias eclesiásticas, usam alguns do anel, usurpando privilégios que lhes não competem e arrogando regalias que lhes não pertencem .


No Bispado, muitos religiosos também descumpriam as normas eclesiásticas vigentes. É o caso do Alvará de 1771, que relata a fuga do Cônego Cura da Sé, havia mais de um ano, sem qualquer explicação:
(...) Estando provido por Sua Majestade Fidelíssima no Benefício de Cônego Cura da Catedral deste Bispado, o Reverendo Antonio José Malheiro, este sem mostrar causa justa, nem impetrar licença de S. Exª Rma, se ausentou ocultamente desta cidade para o Reino, haverá mais de um ano, desamparando inteiramente o seu Benefício, e sem que se saiba parte certa do dito Reino onde esteja, para haver de ser citado em sua pessoa (...) fique citado o Reverendo Supdo para dentro do termo de 6 meses, e que no último que se lhe assinasse venha residir pessoalmente no seu Benefício (...).

Na carta que o Bispo Castelo Branco enviou à Coroa portuguesa em 27 de abril de 1782, relatava os atos do Reverendo Pedro José Augusto, Deão da Catedral da cidade do Rio de Janeiro antes de sua fuga para Lisboa:
(...) O Dr. Pedro José Augusto Deão da S.I.C. desta diocese do Rio de Janeiro (...) ele ultimamente desertou fugitivamente em 27 de agosto em que saiu deste porto para o de Lisboa à Fragata de guerra Nazareth com os Reais Quintos. Já no ano de 1764 (...) este eclesiástico fugiu com o crime de desobediência aos mandados do seu prelado o Bispo meu antecessor (D. Antonio do Desterro), que o obrigava a cumprir os termos a Igreja Paroquial de São Francisco Xavier do Engenho Velho (...).
Passou-se a cidade de Coimbra, donde se diz que o Bispo o fizera ultimamente despejar pelo escândalo que dava em Eyras, fazendo vida conjugal com duas mulheres irmãs, das quais tem filhos, a que doou a quinta, em que vivia, e procurou legitimar, assim mesmo, sacrílegos e incestuosos, como são .

Assim, devido à falta de um arcabouço teológico mais denso e as tentativas inconstantes de regular a moralidade dos agentes religiosos, tais fatores serviram para embasar as divergências internas e representavam como o clero de forma intrincada refletia certos aspectos da sociedade colonial, nos quais se imiscuíam questões políticas e religiosas em um mesmo segmento.





CONCLUSÃO

Percebemos que as tensões entre o Bispado e o clero secular remontam desde quando se empreendeu efetivar a colonização no território brasileiro, e as queixas e desvios entre membros do Bispado, também eram uma constante. Os clérigos por exercerem uma função preponderante no campo religioso, e serem protegidos por uma jurisdição eclesiástica que lhes garantia muitos benefícios, associados às interferências do Padroado nas suas nomeações, mantinham atitudes exclusivistas e isentas em suas ações, ocasionando divergências entre si.

























REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal.. Porto: Civilização, 1970, v.III.
BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas In: Gênese e Estrutura do campo religioso. São Paulo: Perspectiva: 1982.
BOSCHI, Caio Os leigos e o poder: irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
COUTROT, Aline. Religião e política. In: REMOND, René (Org.) Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.
HOORNAERT, Eduardo.História geral da Igreja na América Latina.Petrópolis: Vozes, 1992.
MARX, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Editora da USP, 1989.
RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil: expansão territorial e absolutismo estatal (1700-1822), v. III. Rio Grande do Sul, Santa Maria: Pallotti, 1987.
Fontes manuscritas:
ACMRJ, Bulário do Arcebispado de S. Sebastião do Rio de Janeiro ? Tomo I do Bispado, E ? 230, fl.353.
_________ . Portarias e Editais, E-236, fl. 108v.
_________ . Portarias e Ordens Episcopais, E-239, fl. 14.
_________ . Correspondências dirigidas e recebidas pelas autoridades eclesiásticas, E-83, fl. 104 v.