Esse artigo foi desenvolvido para avaliação na disciplina Economia e Vida Camponesa da Idade Média, dirigida pelo Professor Ricardo da Costa no curso de Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. O texto busca discutir, a partir de alguns textos do historiador francês Jacques LeGoff, como que se davam as relações sociais presentes nas vidas dos camponeses medievais na Europa, mais especificamente a França, alvo dos estudos do autor. Assim, foi dividido entre as relações com os próprios camponeses e, em seguida, suas relações com outros grupos sociais, incluindo os moradores das cidades.

1.INTRODUÇÃO

Ao me deparar com o desafio de desenvolver um artigo de tema livre dentro da proposta do curso, busquei logo cedo me cercar dos melhores autores sobre o assunto. Foi assim que cheguei aos nomes que utilizarei para me apoiar no desenvolvimento desse texto.

A História Social começou a ganhar destaque no século XX, como importante estudo para a compreensão do passado. Por muito tempo escolas históricas limitaram-se a publicar a história vista de cima, com o olhar das elites.

Quando surgiram os historiadores que se focaram na história vista de baixo, na história social, muitos pontos equivocados e desconhecidos da história vieram à tona. E na história social da Idade Média não foi diferente. Entender as sociedades camponesas mudou os conceitos de campesinato.

A partir de duas publicações do renomado Jacques Le Goff ("A Civilização do Ocidente Medieval", 1964; "O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval", 1983), tratarei brevemente da vida em sociedade do camponês medieval. Dissertarei sobre a família e a comunidade camponesa, passando pelo cotidiano e mentalidades.

O objetivo de me ater a apenas um autor é para ser sucinto dentro de um assunto tão vasto e tão explorado por historiadores medievalistas. Não acho, entretanto, que por esse fato não haja valor no trabalho que segue. Pelo contrário, permito maior aprofundamento e compreensão de idéias que talvez não poderia alcançar, caso tivesse que me debruçar sobre um segundo pensamento.

Abro então o espaço para a leitura do artigo, para o mundo medieval e as relações sociais camponesas.

2.A FAMÍLIA E A COMUNIDADE CAMPONESA

"Quem está isolado só pode fazer o mal. O grande pecado é a singularização[1]". É assim que Jacques Le Goff define a singularidade na Idade Média dos séculos XII e XIII. Não sendo vista com bons olhos, a singularidade dava espaço para a vida em comunidade. Eram as relações sociais. "Orgulho (...) era individualismo exagerado. Só havia salvação no grupo e pelo grupo; o amor próprio era pegado e perdição[2]".

Essa pluralidade, entretanto, não era democrática. Provinda de relações entre os camponeses ou para seu senhor, ela resultava em obediências (dos camponeses para seus senhores) e submissões (de vassalos para suseranos) realmente institucionais.

Inclusive na literatura, desenvolvia-se pouco individualismo, assim como na arte. As personagens eram representadas a partir de sua categoria social, da maneira vista como típica pelos contemporâneos.

Ao analisar imagens de camponeses, muito presente nos calendários medievais, nos deparamos com trabalhadores fortes, muitas vezes mal vestidos (alguns com roupas rasgadas, enquanto outros descalços) e quase sempre em conjunto.

A concepção de liberdade desses camponeses, e de toda a sociedade medieval, é diferente da concepção moderna dada para a palavra. Liberdade é vista então como privilégio. É "o justo lugar perante Deus e perante os homens[3]". Ou seja, como vimos anteriormente, o lugar perante os homens é junto deles, saindo do individualismo.

Liberdade é estar inserido, fazer parte, na sociedade. E para ser livre, é necessário ser dependente, estar protegido por alguém poderoso. Essa relação de proteção surgia quando um camponês não encontrava maneiras de sustentar e proteger sozinho a si mesmo ou a sua família. Buscava então a ajuda de um senhor.

Dentro das famílias (á qual o indivíduo pertencia em primeiro lugar), o chefe limitava a individualidade a partir de ações coletivas. Essa organização familiar leva a formação das linhagens, compostas de parentes de sangue e parentes por afinidade.

A linhagem normalmente "agrupa todos os que vivem numa mesma casa e se entregam à valorização de uma mesma terra"[4], formando a "célula econômica e social"[5] campesina.

A mulher não se encontrava em uma posição privilegiada dentro dessa célula social. Muito discriminada em sociedades patriarcais, a mulher também não tinha tratamento igual em sociedades cristãs. Muito pelo contrário, elas foram tidas pela Igreja Católica por muitos séculos (mas principalmente até meados da Baixa Idade Média) como responsável pelo pecado original, de Eva.

Havia certo horror ao corpo, que era então considerado uma prisão. Ali se encontrava encarcerada a alma. "O horror pelo corpo atinge o auge nos seus aspectos sexuais (...). O desprezo pelo corpo e pelo sexo toca assim o seu ponto máximo no corpo feminino"[6].

Promovida apenas a partir do século XII, com o culto da Virgem e o de Madalena, assim como o de seitas heréticas, que pregavam a igualdade entre homens e mulheres, ela era considerada igual ou quase equivalente ao homem na célula social campesina. Elas tinham "de fiar, de espadelar o linho, de descascar o cânhamo, de lavar a roupa e de arrancar beterraba"[7].

Quanto às crianças, um tema até mesmo polêmico dentro do período medieval, Le Goff se limita a dizer que não existem: ele as considera como pequenos adultos. Em uma sociedade onde a média de vida chega a 25 anos, essas crianças logo ao sair dos braços da mãe já são levadas a trabalhar no campo. Quando na nobreza, recebem desde cedo uma educação para muito em breve ocuparem seus lugares na Corte.

As comunidades rurais são formadas por famílias e contadas por fogos (quantidades de fogueiras, que mantém as casas). Elas tem sua base econômica nos terrenos de pastagem e de exploração florestal, áreas que pertencem ao domínio de seu senhor, e "não poderiam subsistir sem o complemento decisivo que ali encontram para a engorda do porco ou da cabra e para se abastecer de madeira"[8].

E mesmo em caso de famílias e comunidades em dificuldades, havia grupos de aldeãos (os chefes ou os ricos) que faziam empréstimos individuais ou em nome de comunidades. As comunas coletivas eram baseadas em uma federação de aldeias. E com elas, surgem os "homens bons". Esses ocupavam os cargos importantes. Essa comunidade aldeã surgida junto com outras instituições originais nos séculos X-XII.

3.AS RELAÇÕES COM OUTROS GRUPOS SOCIAIS

Essas comunas existiram também nas cidades, de maneira semelhante às campesinas. As cidades, segundo Le Goff, eram para os camponeses uma tentação "como o metal, como o dinheiro, como a mulher"[9]. Elas eram objetos tanto de atração como de repulsa, assim como as coisas vistas com ressalva pela Igreja.

No entanto, elas não eram muito grandes. Le Goff afirma que muitas delas não ultrapassavam a marca de cem mil habitantes. Além disso, interessantemente, muitas vezes se assemelhavam às comunidades rurais, pois mesmo nas cidades os moradores possuíam campos de cultivo e criação de gado.

De volta ao campo, observamos entre os séculos XI e XIII inúmeras revoltas camponesas. Ao contrário das revoltas urbanas, que eram burguesas e com o objetivo de adquirir poder político, as revoltas campesinas tinham normalmente o objetivo de luta pela vida. "A maioria dos camponeses constituía essa massa à beira do limite mínimo de alimentação, à beira da fome e da epidemia"[10].

A sociedade camponesa era desprezada pela nobreza e pela Igreja, o que gerava um ódio no camponês. Ódio esse mantido também pelos burgueses nas cidades. A única propriedade reconhecida pelos senhores, que muitas vezes se confundiam com o Clero, era a do corpo nu. O resto, devido aos acordos de proteção, pertencia ao senhor.

Como já dito, o corpo então era visto de uma péssima maneira. "Mais ainda que pó, o corpo do homem é podridão"[11]. Algo das conseqüências do pecado, o corpo recebe a doença "simbólica e ideológica Poe excelência" da Idade Média. "O pobre é identificado co o enfermo e o doente"[12]. E o camponês era visto como feio e disforme.

Os religiosos os reduziam a simples animais selvagens. "Eram vilãos, eles e seus filhos, por toda a eternidade"[13]. Como não possuíam uma habilidade excepcional (como ser clérigo ou nobre), não poderiam alcançar o paraíso. Tinham o inferno como destino.

Além disso, "não são apenas explorados pela sociedade feudal, são também ridicularizados pela literatura e pela arte"[14], onde surgem como bestas, feias, violentas. Por essas relações com as outras classes, os camponeses estão sempre insatisfeitos.

Havia hostilidade também em relação ao progresso tecnológico. Os moinhos banais, quando esses se tornaram hidráulicos, foram muitas vezes alvo das revoltas campesinas, já que senhores destruíam os moinhos manuais dos camponeses, para que esses usassem os seus.

4.CONCLUSÃO

Pudemos observar o papel do camponês dentro da própria comunidade rural, a partir da concepção de individualismo e pluralismo, culminando nas relações de proteção surgidas entre camponeses e senhores.

Trabalhando o papel da mulher e inclusive das crianças, vimos como funcionava a família camponesa, com um chefe e sua linhagem, que poderia ser seguida não pelo filho mais velho, mas principalmente por aquele que desempenhasse melhor a liderança.

O "Maravilhoso e o Quotidiano..." foi utilizado com o objetivo de demonstrar um pouco da ideologia medieval relacionada ao corpo e suas conseqüências surgiram na definição não só do papel da mulher, mas também do camponês de maneira geral na sociedade feudal.

A tentação existente na cidade se fortaleceu com o passar dos anos, causando o êxodo de muitos camponeses. Em alguns casos, como o da Inglaterra de entre os séculos XVI e XIX, esse êxodo foi forçado pela política de cercamento de terras e desenvolvimento industrial.

Os conflitos das comunidades camponesas com o senhorio, que aconteceram por toda a Idade Média e posteriormente, encontraram pontos altos na Alemanha de Lutero, onde foram esmagados, e também na França da Revolução, onde invadiram castelos reivindicando sempre mudanças relacionadas à propriedade das terras.

5.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa, Editora Estampa. 1983.

_________________. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1990



[1] LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa, Editora Estampa. 1983. p.35.

[2] Idem 1.

[3] TELLENBACH, G. apud LE GOFF, 1983. p.36.

[4] LE GOFF, 1983. p.41

[5] Idem 4.

[6] LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1990, p. 57

[7] HELMBRECHT apud LE GOFF, 1983. p.43.

[8] LE GOFF, 1983. p.47

[9] LE GOFF, 1983. p.50

[10] LE GOFF, 1983. p.57

[11] LE GOFF, 1990, p. 58

[12] Idem 11.

[13] LE GOFF, 1983. p.58

[14] GRAUS, Frantisek apud LE GOFF, 1983. p.59