AS CONDIÇÕES DE TRABALHO E TRANSFORMAÇÕES DOS DOCENTES DE 1º E 2º GRAUS DURANTE O REGIME MILITAR NO BRASIL (1964 - 1983)

 

Elieser Feitosa Soares Júnior[1]

Pedro Pereira Borges[2]

 

Introdução

Com a instauração do regime militar no Brasil após o golpe militar de 1964, iniciou-se uma série de mudanças e reformas nas mais diversas áreas, entre elas na educação, destacando-se as reformas de 1968, chamada Lei da Reforma Universitária; e de 1971 que criou os ensinos de 1º e 2º graus. Através da política educacional dos militares serão abordados três fatores cruciais e correlacionados: a massificação do ensino de 1º e 2º graus; o significativo aumento na quantidade de professores desse ensino e o arrocho salarial por eles sofrido no período já assinalado (ROMANELLI, 1991).

Foram analisados 48 (quarenta e oito) processos trabalhistas do TRT - 24ª Região Comarca de Corumbá - MS referentes ao ano de 1983, com os seguintes números: 508/83; 509/83; 510/83; 511/83; 513/83; 512/83; 513/83; 515/83; 516/83; 517/83; 518/83; 519/83; 520/83; 521/83; 522/83; 523/83; 524/83; 525/83; 526/83; 527/83; 529/83; 530/83; 531/83; 532/83; 533/83; 534/83; 535/83; 536/83; 537/83; 538/83; 539/83; 540/83; 541/83; 542/83; 544/83; 545/83; 546/83; 547/83; 548/83; 550/83; 551/83 e 552/83. Destes, foram escolhidos os processos trabalhistas de número: 546/1983 e 548/1983, com ações movidas por professoras contra o Município de Corumbá - MS e suas repercussões.

 

1 As reformas educacionais de 1968 e 1971

As reformas educacionais do período ditatorial brasileiro foram guiadas pelos chamados acordos MEC-USAID. Estes acordos, estabelecidos entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID), precederam as reformas, que foram elaboradas de acordo com os padrões estadunidenses.

A Lei nº 5.540 de 28 de novembro de 1968, chamada Lei da Reforma Universitária, colocou em prática no governo do Presidente Costa e Silva o funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média. Segundo Lira (2010, p. 262):

A lei estabeleceu uma reforma no ensino superior brasileiro que extinguiu a cátedra, introduziu o regime de tempo integral e dedicação exclusiva aos professores, criou a estrutura departamental, dividiu o curso de graduação em duas partes, ciclo básico e ciclo profissional, criou o sistema de créditos por disciplinas, instituiu a periodicidade semestral e o vestibular eliminatório. No contexto dos atos de exceção da ditadura, a universidade brasileira foi obrigada a testemunhar atos de repressão que se desdobram em perseguição policial, expulsão, exílio, aposentadorias compulsórias, tortura e morte de muitos de seus melhores pensadores.

A Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, publicada durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, criou o ensino de 1º e 2º graus, que seriam obrigatórios e de responsabilidade do Estado. Foi determinado que o 1º graus, antigo ensinos primário e ginásio, seria composto por um único ciclo de oito anos. O 2º grau foi constituído de três anos, que correspondiam ao antigo colegial.

A necessidade de mão de obra para o mercado brasileiro, que vivia um período de expansão industrial, levou os articuladores do regime militar a incentivar a profissionalização imediata dos estudantes que concluíssem o ensino médio, contendo assim a procura pelo ensino superior (LIRA, 2010).

2 A massificação do ensino e a formação de professores

 

As reformas elaboradas através dos acordos MEC-USAID impulsionaram a formação de professores de primeiro e segundo grau, isto por que, a Lei nº 5.692 de 1971 aumentou de quatro para oito anos o ensino obrigatório, então chamado 1º grau. A necessidade desse mercado proporcionou grande mobilidade social, visto que até aquele momento, o magistério formulava-se como uma área de atuação praticamente exclusiva das elites, e em sua maioria de mulheres, formadas nas Escolas Normais (NAGLE, 1985).

No aporte de Ferreira Júnior e Bittar (2006, p. 1116):

O crescimento econômico acelerado do capitalismo brasileiro durante a ditadura militar impôs uma política educacional que se materializou em linhas gerais, nas reformas de 1968 e de 1971, cujos efeitos engendraram uma nova categoria docente e, por conseguinte, no exercício da profissão em parâmetros distintos dos anteriores. Os professores formados nos cursos de licenciaturas curtas das faculdades privadas noturnas substituíram a pequena elite intelectualizada das poucas escolas públicas antes existentes.

O rápido crescimento no quadro desses profissionais reformulou a participação do professor do ensino básico na sociedade. Dessa forma, explicam Ferreira Júnior e Bittar (2006, p. 1167):

Teve início a construção da nova identidade social do professor do ensino básico, ou seja, a de um profissional da educação submetido às mesmas contradições socioeconômicas que determinavam a existência material dos trabalhadores. Estavam plasmadas, assim, as condições que associariam o seu destino político à luta sindical dos demais trabalhadores.

Esse processo, chamado por Ferreira Júnior e Bittar (2006) de “proletarização dos professores”, atingiu de forma inversa duas camadas da sociedade: o antigo grupo de professores do ensino primário, pertencentes à burguesia, transforma-se agora, pelas relações sociais e econômicas do capitalismo, em proletário, ou seja, decaíram na pirâmide da estrutura social. Por outro lado, os grupos das camadas mais baixas puderam alcançar uma ascensão social, através das facilidades em ingressar em cursos de licenciaturas nas faculdades privadas.

3 Repressão e arrocho salarial

O processo de ampliação do ensino ficou marcado pela “militarização-racionalizadora da unidade escolar” (RIBEIRO, 1995, p. 72). Isto porque, as decisões tomadas nas esferas dos organismos executivos federais e estaduais chegavam às unidades escolares para serem apenas cumpridas. Assim, “não há mais espaço para discussões pedagógicas nas unidades dessa organização escolar que se amplia e complexifica” (RIBEIRO, 1995, p. 73).

Os professores com alguma formação política pedagógica anterior, que os habilitava a um exercício profissional com relativa autonomia, sentem-se empurrados para dentro da sala de aula e sabem, desde então ou logo em seguida, que tais limites são por demais estreitos e têm que ser rapidamente ultrapassados para que não venham a ser totalmente anulados. Tais professores, com mais tempo de serviço, sentem mais diretamente que o professor perde importância numa escola aonde essas características vão passando a dominar (RIBEIRO, 1995, p. 73).

Nas escolas e mesmo dentro das salas de aula, cresce o sentimento de policiamento, repressão e desconfiança. Diante da impossibilidade de reação, os professores veem seus salários sendo desvalorizados rapidamente. Cunha (1191) analisa a degradação dos salários dos professores nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro:

O professor primário da rede estadual de São Paulo tinha o salário médio por hora equivalente a 8,7 vezes o salário mínimo, em 1967. Já em 1979, esta média havia baixado para 5,7 vezes [...]. No Rio de Janeiro, de onde se dispõe de séries mais longas, o salário eqüivalia (no Distrito Federal ou na rede estadual situada no município da capital) a 9,8 vezes o salário mínimo em 1950, despencando para 4 vezes em 1960 e atingindo 2,8 vezes em 1977. Treze anos depois, desceu ainda mais: 2,2 salários mínimos (CUNHA, 1991, p. 75 apud FERREIRA JÚNIOR; BITTAR, 2006, p. 1169).

Devido ao arrocho salarial e suas más condições de trabalho, os professores públicos de 1º e 2º graus passaram a identificar-se como uma classe, que tinha sua força de trabalho explorada, adotando assim a tradição da luta operária (FERREIRA JÚNIOR; BITTAR, 2006, p. 1169).

Nesse contexto de degradação das condições de trabalho dos professores foram analisados nos processo trabalhistas de números: 546 e 548 ambos de 1983.

No primeiro processo, a professora Berenice de Souza Antunes, brasileira, residente em Corumbá, alegava ter sido admitida pelo Município de Corumbá no ano de 1979. No ano de 1983, por motivos não identificados, veio a pedir demissão. Consta no processo que Berenice recebia como ultimo salário, o valor de CR$ 34.020,00 (trinta e quatro mil e vinte cruzeiros). Foi identificado que, em julho de 1983, data na qual Berenice demitiu-se, o salário mínimo vigente correspondia ao valor de CR$ 34.776,00 (trinta e quatro mil setecentos e setenta e seis cruzeiros).

O processo de número 548 trás a reclamação trabalhista de Mirna Lima da Silva, professora, que foi admitida pelo município de Corumbá em 1972 e despedida sem justa causa em abril de 1982, recebendo como último salário o valor de CR$ 12.273,00 (doze mil duzentos e setenta e três cruzeiros). Na data indicada da demissão, o salário mínimo brasileiro correspondia ao valor de CR$ 16.608,00 (dezesseis mil seiscentos e oito cruzeiros).

Em ambos os casos fica clara a desvalorização do profissional da educação, sobretudo dos ensinos de 1º e 2º graus. Observou-se também que alguns fatos semelhantes ocorreram em Campo Grande - MS no mesmo período, ocasião em que os jornais noticiaram tais ocorrências (JORNAL DA CIDADE, 1980).

Na edição semanal de 10 a 16 de agosto do referido ano, consta na página 5 a ocorrência da demissão de dois funcionários públicos da capital e de três professores (JORNAL DA CIDADE, 1980). Essas demissões geraram um movimento capaz de colher, pela primeira vez na cidade, a assinatura de todos os partidos políticos de oposição. O manifesto, assinado pelos partidos PMDB, PDT, PP e PT foi lido durante a sessão na Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa de MS, e denunciava a “escalada dos atentados terroristas de direita”.

Além disso, o manifesto acusava o governo de ser conivente com tal situação, denunciando casos de incêndios em bancas de revistas, sequestros e agressões voltadas a “elite pensante do país”. Os professores, Mário Sergio M Lorenzetto e Amarílio Ferreira Júnior, docentes do colégio particular Anglo-Mace, relataram terem sido demitidos após a visita de “policiais” a escola, onde após conversa com o diretor, pediram a demissão dos mesmos devido a sua participação política na cidade. Mario Sergio M Lorenzetto relata que, nessa época, participava do Movimento pela Anistia e Amarílio Ferreira Júnior do Movimento Estudantil.

Analisando casos como esse, fica claro o clima de vigilância e repressão dentro das salas de aula, exigindo dos professores um posicionamento favorável ao regime militar da época.

Considerações finais

 

A formação dos docentes de 1º e 2º graus sofreu os reflexos do salto industrial e das medidas capitalistas aplicadas durante o governo golpista. A massificação do ensino de caráter profissionalizante, a má formação dos novos docentes, a política baseada em arrocho salarial levando professores a solicitarem mais horas aula, fazendo assim com que a qualidade do ensino definhasse, são fatores indispensáveis para o entendimento das condições de trabalho dos professores durante o regime militar.

Referências

BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixas diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus e dá outras providências.

FERREIRA JÚNIOR, Amarílio; BITTAR, Marisa. A ditadura militar e a Proletarização dos Professores. Revista Educação e Sociedade, Campinas, vol. 27, nº 97, p. 1159-1179, set./dez. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v27n97/a05v2797.pdf>. Acesso em: 21 maio 2015.

JORNAL DA CIDADE, semana 10 a 16 de agosto, 1980.

LIRA, Alexandre Tavares do Nascimento. A legislação da educação no Brasil durante a ditadura militar (1964-1985): um espaço de disputas. 2010. 367p. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade Fluminense, Niterói-RJ.

NAGLE, J. A educação na primeira república. In: FAUSTO, B (Org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: DIFEL, 1985. t.3, v.2, p. 261-291.

RIBEIRO, Maria Luisa Santos. A formação política do professor de 1º e 2º graus. 4.ed. Campinas: Autores Associados, 1995.

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 1991.



[1]  Acadêmico do 3º semestre do Curso de História. Bolsista do CNPQ, Pesquisador do PIBIC, desenvolvendo atividades de pesquisa no Laboratório de História. E-mail: [email protected]

[2]  Doutor em História Social - USP - Professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco E-mail: [email protected].