A SOCIABILIDADE MINEIRA NO MÉDIO RIO GRANDE
Comparações da socialização nos dias atuais e no período de 1950 a 1960.
Autor: OLIVEIRA, Edgar Rodrigues. Mestre em História ? UNESP ? Franca SP - 2002

Falar das relações interpessoais que se desenvolveram no acampamento onde morava grande parte dos funcionários que construíram a Usina de Furnas, sem antes conhecer o tipo de sociabilidade que era praticada na região, é esquecer um dado importante que fazia parte do retrato daquela época.
A sociabilidade desenvolvida entre mineiros, ingleses, cariocas e candangos, teve que ser moldada na sociabilidade do mineiro, como elemento predominante no cenário da obra. E além de ser formada por mineiros, a grande maioria dos funcionários do canteiro de obras, de um modo geral, tinha a especificidade do modus vivendis do mineiro da região das Corredeiras das Furnas, um tipo peculiar dentro da mineiridade geral.
É importante salientar que o jeito de ser mineiro ? introspecto, taciturno às vezes ? tem muito a ver com as condições geográficas do Estado de Minas Gerais. Enquanto a população de beira mar contempla um horizonte infindo, onde podem levar a imaginação até os confins desse horizonte, criando assim a idéia de algo que não acaba nunca, o mineiro é cercado por montanhas, vales, reentrâncias... Seu horizonte é curto e esbarra nas montanhas que projetam sombras, escondem o sol, dá asas ao imaginário que busca adivinhar o que está acontecendo do lado de lá, já que o mineiro sabe perfeitamente, o que tem do outro lado.
O mineiro de um modo geral tira muitas experiências de vida, da própria natureza que o cerca. Como as montanhas que oferecem muitas surpresas ao serem escaladas, transpostas ou tocadas, o mineiro também é repleto de surpresas. Seu modo arguto de vida, oferece altos e baixos, como as montanhas. Ora se abre em clarões de alegrias, ora se fecha em poços de introspecção e taciturnidade. Seu humor, quase sempre presente, é um humor onde a sagacidade se faz presente e a mordacidade, principalmente com não mineiros, se torna um dado relevante no convívio extra Minas.
O isolamento das comunidades surgidas durante o ciclo do ouro em Minas, quando se buscava a mineração longe dos centros urbanos, forçava os relacionamentos a um número restrito de pessoas e o rigor da lavra diária depositava-os exaustos, ao cair da tarde, nos acampamentos improvisados, onde não lhes sobrava ânimo para longas conversas. Muitos se refugiavam na religiosidade e outros no cuidado pessoal com o corpo, o que possibilitava assim, uma atitude de independência para com o próximo. Essa atitude era transferida para o ciclo familiar, de amigos ou no ralacionamento urbano, quando voltavam para um convívio social mais abrangente.
Tudo em Minas Gerais é feito devagar, sem correrias.
Tudo, em Minas, se faz sem pressa. O tempo não conta. Fazem-se as coisas para durar, para permanecer e não para aparecer, para fingir ou ganhar tempo. O ritmo de vida nestas montanhas, como sucede em geral com povos semelhantes a este como os suíços, é um ritmo lento, como a sonoridade dos timbres da sinfonia mineira é sempre em surdina. Nem cor, nem som, nem andamento, nem gestos, nem palavras, nem nada do que, normalmente, anima a tudo isso, foge em Minas a essa lei suprema da sobriedade que domina toda a vida por estas paragens.

Não adianta exigir ações urgentes do mineiro, pois a sua urgência está ligada à sobriedade mineira. Sobriedade esta presente no falar devagar, no enrolar lento o cigarro de palha, no passo a passo do cavalo que sente a dificuldade de atravessar montanhas pelas picadas abertas entre elas...
Contudo, a sobriedade mineira não quer dizer apatia pelo que o cerca. "Sobriedade mineira de sentimento, quer dizer delicadeza de sensibilidade, pudor de se abrir, reserva natural, um recato afetivo que preserva o coração para a mais difícil das aventuras ? a fidelidade". E disto ninguém duvide! Até o mineiro se entregar a uma amizade, ele é ressabiado. Parece estar sempre estudando o outro, medindo suas potencialidades, comparando-o com si mesmo para depois assumir a amizade sem atropelos.
Entender o mineiro não é entender o universalismo de comportamentos e sim, vivenciar o particularismo de atitudes. A vida cotidiana do mineiro faz com que ele seja sábio sem sabê-lo. As práticas cotidianas baseadas em um profundo empirismo, fazem do mineiro, um grande conhecedor das coisas que o cercam. Por isso, vive fazendo previsões a respeito do tempo ? se chove ou não; se o ano vai ser de frio intenso ou não, se a safra vai ser "farturenta" ou não, entre outras ? como também a respeito da política, principalmente a local, tomando cuidados extremos para não ofender quem está no poder e quem caiu fora dele.
O mineiro se envolve de mistérios. Suas respostas nunca são conclusivas, taxativas ou definitivas. Em seus diálogos, sempre resta o espaço sagrado para a negociação. "O mistério faz parte da vida, como o faz o cigarro de palha, (...), a conversinha fiada das vendas(...)" e "o sorriso é a grande arma do mineiro. Não sendo homem violento, suas armas não são de ferro. São de espírito".
É por meio de um sorriso que o mineiro interroga o outro quando não entende uma colocação verbal qualquer. Mas, não acreditemos que o mineiro não seja capaz de ser cruel com o outro. Talvez, entre os brasileiros, o mais cruel, pois sua maior arma é a língua. Não se deixe cair na língua de um mineiro que ele sabe transformá-lo em pedacinhos.
Mas, a grande característica do mineiro, principalmente o mineiro que habita pequenas cidades e os grotões do Estado, é sua religiosidade, talvez o seu maior traço de sociabilidade conhecida, por transformá-lo em um ponto de consenso, de convergência, onde a dignidade tanto pessoal quanto da comunidade está submetida à crença religiosa.
Para o mineiro típico, Nossa Senhora Aparecida ganha ares, além de mãe, de substrato da alma. Principalmente em lugares pequenos pelo interior do Estado, é comum encontrar cultos fervorosos à santa, que beiram ao fanatismo, como o culto à Mãe Rainha e Vencedora Três Vezes Admirável de Schöenstatt, exercido no Bairro de Furnas, junto à Usina de Furnas, onde acontece a coroação anual da imagem ? sendo que esta imagem venerada, é um desenho da santa colado em uma tábua em formato de capela ou torre de igreja - com vigílias noturnas na capela local. Depois, a imagem da santa, peregrina pelos lares dos fieis, onde permanece de um dia para o outro, cumprindo uma escala de visitas impressa no verso da imagem.
Outro exemplo da religiosidade dos mineiros é o ritual de molhação do pé do cruzeiro. Em estiagens longas, quando a plantação periga ao sol, a molhação do pé do cruzeiro, normalmente fincado em outeiros em propriedades rurais, se faz diariamente. Essa molhação tem o nome de "aguar o pé do cruzeiro" e consiste de uma pequena procissão, onde mulheres e crianças "inocentes" carregam bilhas, cabaças ou garrafas d'água, na hora mais escaldante do dia, para serem derramadas no tronco da cruz, em um ritual dolorido de subir o morro, às vezes de joelhos, cantando canções à Virgem, canções estas, cujas letras, aparentemente não fazem nenhum apelo para que chova, intenção maior do ritual de molhação do pé do cruzeiro.
"Louvando a Maria, o povo fiel,
A voz repetia, de São Gabriel.
Avê, avê. Avê Maria.
Avê, avê. Avê Maria.
O anjo descendo num raio de luz,
Feliz Bernadete, à fonte conduz.
Avê, avê. Avê Maria.
Avê, avê. Avê Maria.
A brisa que passa, aviso lhe deu,
Que uma hora de graça, soara no céu.
Avê, avê. Avê Maria.
Avê, avê. Avê Maria.
É um resto suave, de belo esplendor,
Que cerca uma nuvem de belo esplendor.
Avê, avê. Avê Maria.
Avê, avê. Avê Maria.
Vestida de branco, ela apareceu,
Trazendo na cinta, as cores do céu.
Avê, avê. Avê Maria.
Avê, avê. Avê Maria.
Mostrando o rosário na cândida mão, Ensina o caminho, da Santa oração.
Avê, avê. Avê Maria.
Avê, avê. Avê Maria.
Estrela brilhante, celeste visão,
Guiai-nos um dia à eterna mansão.
Avê, avê. Avê Maria.
Avê, avê. Avê Maria.

Rezam o terço e na consagração dos mistérios, roga-se a Deus e Nossa Senhora, para que mande chuva para a região. Levam também flores e galhos verdes para enfeitar o pé da cruz. Invariavelmente, várias imagens de Nossa Senhora, principalmente réplicas da Nossa Senhora Negra de Aparecida do Norte, cidade paulista, são carregadas com fé contrita, em cortejo de passos lentos, cadenciados. Essas pessoas se posicionam em círculo, em volta do cruzeiro, sempre entoando canções e agoam o pé do cruzeiro. Depois da molhação, depositam as imagens sobre as poças de água. Quando retiradas, se toda a água em sua volta secar e onde a imagem estava assentada ainda existir resquícios de umidade, é que as preces foram atendidas e dentro de pouco tempo deve chover, um método questionável, pois demanda do tempo em que se deixa a imagem sobre a poça d'água.
Além desses aspectos, a religiosidade do mineiro é expressa nos seus diálogos cotidianos. Ao fazer visitas, depois dos cumprimentos do visitante, o visitado, para mostrar seu contentamento em recebê-lo, fala efusivo: graças a Deus, a gente vai bem, ou: graças à Nossa Senhora Aparecida e à Virgem Maria... As mesmas expressões são correntes ao longo do diálogo e ao se despedir são mais efusivos ainda: que Nossa Senhora da Guia te acompanhe; vai com Deus e Nossa Senhora e assim por diante.
O curioso do mineiro, é que para cada ação do homem, ele usa o santo certo, padroeiro dessa ação. Assim, em viagens, o santo é São Cristóvão, em tempos de tempestades, os santos são: São Gerônimo e Santa Bárbara; ao dar a luz, a santa que fica encarregada de conduzir a mão da parteira ou do médico, é a Nossa Senhora do Bom Parto; problemas nos olhos, quem cuida é Santa Luzia, entre muitos outros santos com funções específicas no mundo dos humanos, que o mineiro não se faz de rogado, ao conclamá-los para cumprirem suas funções terrenas.
Essa super valorização da religiosidade é inerente ao mineiro. Sugere um leque de atitudes medievalisadas, registradas na memória e indeléveis para os mais velhos. Contudo, com o tempo e a insistência dos meios modernos de comunicação, tende a se modificar ou a cair no esquecimento. Porém, o que praticam nos grotões e recantos isolados dos grandes centros do Estado, é a tradição oral o que contribui para que estes fatos não sejam esquecidos, como também a necessidade do mineiro de ter um "contato maior" com o além, por meio da religiosidade. Influi para isso, o isolamento proporcionado pelo contorno montanhoso, que os faz observar cotidianamente o céu, casa de Deus, fazendo-os se refugiarem na religiosidade, como um elemento a mais para lhes fazer companhia.
O mineiro é um fenômeno na cultuação da memória de seu povo. Seus heróis regionais são mais heróis que os heróis da região vizinha. Os fatos heróicos são lembrados com freqüência e se transformam em "causos" que, contados à exaustão, definem uma forma de sociabilidade local. O tratamento dispensado às lembranças locais, traz união ao grupo social, tornando-o forte em si mesmo, com referências sobre si próprio. Quando alguém, em algum espaço de sociabilidade qualquer, expõe fatos passados, sob a ótica da memória individual, na verdade, expressa a memória coletiva, sob seu ponto de vista. Em outra ocasião, a mesma história será contada por outra pessoa, com outro enfoque. No entanto, o que vem à baila, é a memória coletiva com ênfase no sentimento pessoal de quem a reconta.
Halbwalchs trata essas lembranças coletivas de forma bem casada com o pensamento mineiro.
A memória coletiva (...), envolve as memórias individuais mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam colocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal.

Nesse contexto, a memória coletiva é contada sob a ótica de quem a conta, mas não modificada em sua essência, por uma "consciência pessoal".
O mineiro, assim, é um grande contador de histórias. Seus "causos" refletem a realidade de seu micro cosmo e como são histórias conhecidas por todos, a sua preocupação com o tempo em que se passa aquela história é mínima, pois, deduz-se que todos são sabedores do tempo cronológico em que está inserida.
Ao lado de laivos de memória, não há datas. Às vezes um fato ganha luz e ele resplandece em meio ao turbilhão do passado. Mas ao tentar posicionar cronologicamente o fato, o mineiro só consegue visualizar um tempo histórico, caracterizado como tempo social: foi na época daquela música, daquele governo, daquele... o que torna o fato impreciso quanto à sua localização no tempo, sem influir na sua veracidade.
"Não é questão de datas e fatos. Certamente a história, mesmo contemporânea, reduz-se com muita freqüência a uma série de noções muito abstratas".
O mineiro vive sua história ao recontá-la inúmeras vezes, seja no bar, na venda de roça, em volta da fogueira de São João, na pescaria... Não importa o espaço em que desenvolve esse tipo de sociabilidade. Tudo que ele conta e reconta é sua história, sempre nova e acrescida de detalhes. Ele faz sua história, nova e revigorada e, surpreendentemente, vivenciada cada vez que é recontada, o que Halbwalchs, sabiamente endossa esse comportamento: "Não é a história apreendida, é na história vivida que apóia nossa memória".
Ao recontar sua história com detalhes próprios, o mineiro reforça sempre a sua mineiridade. Ele constrói, história por história, a sua identidade. Uma identidade tão própria e única, que não se confunde com as outras identidades regionais brasileiras e que também não se encaixa como protótipo de uma identidade nacional.
Quando debruçamos nosso olhar no mineiro das Corredeiras das Furnas, não diferenciamos muito, o mineiro daqui com o mineiro do resto do Estado, quanto a forma de ser mineiro. Contudo, ser mineiro nesta região, passou a ter um diferencial só visto na região de Três Marias, outro canteiro de obras grandioso e igualmente influenciado por mentalidades vindas de fora do Estado e essa influência externa, mudou o comportamento regional.
A mineiridade existente nesta região antes do empreendimento Furnas, resume a mineiridade geral do Estado, conquanto forma de identidade regional. O homem daqui é desconfiado, político, taciturno, religioso... Contudo, pela proximidade, mais fácil de ser estudado em seus aspectos gerais de sociabilidade. "Nóis (sic) daqui, é muito alegre (sic). Nóis gosta (sic) de forró, de baruiêra (sic), de muita gente reunida".
A idéia de barulheira expressa pelo senhor Osvaldo Vitorino em seu depoimento, está ligada aos acontecimentos e aos espaços onde se desenvolvem esses acontecimentos.
As festa (sic) de padroeiro daqui é muito boa (sic). Lá a gente se reúne todo (sic), bebe umas Brahma (sic), joga conversa fora, remata (sic) uns leilão (sic), come uns salgado (sic), escuta umas música (sic) e depois vai dormir sucegado (sic).

Portanto, um dos espaços ideais de encontro e aprimoramento da sociabilidade na micro região das Corredeiras das Furnas, são as festas de padroeiro que são anuais e duram, em média, três fins de semana, durante as sextas e sábados..
Para muitos, estas festas se estenderiam até o domingo, mas como a grande maioria trabalha em desgastantes atividades rurais, o pároco local reserva o domingo para descanso reparatório, que beneficia o enfrentamento diário do campo.
Estas festas dão oportunidade de oferecimento de brindes para o leilão, onde é citado o nome do ofertante, tornando-o conhecido, ou mais conhecido, na localidade. Durante o leilão, o ofertante fica apreensivo até a batida do martelo, momento este em que é medido o valor de seu brinde. Se o brinde está para ser arrematado por um valor abaixo das expectativas, o ofertante alavanca esse valor, aumentando o lance. Muitas vezes, ele mesmo arremata sua oferta, com o intuito de que o valor percebido pela prenda não seja pequeno, o que denota também, pouca penetrabilidade social do ofertante. Dentro desse jogo nos leilões das festas de padroeiro, outra tática de sociabilidade, é o ofertante doar o brinde e direcioná-lo para um amigo, impondo um desafio, fazendo com que este o arremate a qualquer preço. Essa tática eleva o preço do brinde e temporariamente, vira uma disputa entre ofertante e amigo, o que polariza a atenção de todos.
Para os jovens, circula o correio elegante, onde se iniciam namoros e muitos desses namoros resultam em formação de novos núcleos familiares, o que renova a sociedade e reforça a sociabilidade local.
Nestas festas, várias brincadeiras forçam o relacionamento de jovens, como a venda de beijos ? no rosto ? e a cadeia, onde as pessoas que forem prezas pelos colaboradores, para serem libertas, têm que pagar fiança que reforça o caixa da festa.
O mineiro da região desenvolveu outras formas e locais para por em prática a idéia de sociabilidade. O Porto do Guapé é um desses lugares. Esse ponto é travessia de balsa entre os municípios de São José da Barra e Guapé. A balsa leva em média, vinte minutos para ir de um lado ao outro do rio. Enquanto esperam, principalmente no lado de São José da Barra, tomam cerveja e comem peixe frito enquanto ouvem música no Bar do Osmar que é decorado com motivos caipiras, o que torna o local atrativo. O ato de saborear o peixe frito e beber cerveja nesse bar, é quase um ritual obrigatório das pessoas que fazem uso da balsa.
A região é pródiga em cascatas, cachoeiras e muitos outros afloramentos naturais, alem da grandiosidade do Rio Grande e seus afluentes.. As beiras de rio são ocupadas por centenas de ranchos confortáveis, que apresentam uma movimentação incomum nos fins de semana e, principalmente no verão. Embora o rancho sugira um isolamento das pessoas que ali vão, é um engano quem pensa assim. Durante o dia, pode até ser que seja assim, mas à noite se torna em um ponto de encontro entre pessoas, muitas vezes de outras cidades, que estão hospedadas em outros ranchos, o que propicia o encontro entre os "nativos do pedaço", com pessoas de outras localidades e estados, evidenciando um exercício de sociabilidade. O que leva as pessoas a se reunirem em um só rancho, na maioria das vezes, não são laços de amizades. Muitas vezes nem se conhecem. O que chama a atenção do outro, é o som de uma música mais alta ou os acordes emitidos por um bom tocador de violão. As pessoas chegam pela beira d'água, expedem cumprimentos, analisam se são bem aceitos ou não. Se são, esgueiram-se até seus ranchos e retornam com bebida e comida, ali permanecendo até altas horas.
No início da década de 1950, as sociabilidades se desenvolviam de forma diferente na região das Corredeiras das Furnas. Os ranchos era uma forma de lazer desconhecida. Entendia-se como rancho, uma casinha de sapé nas baixadas, onde eram guardadas tralhas de pescaria e instrumental agrícola como enxadas, enxadões, facões, arados de tração animal, entre outras coisas relacionadas com a roça.
Neste espaço essencialmente rural, o ponto de encontro mais assíduo era nas lavouras. Nesta época, instituiu-se o mutirão como elemento de agregação social. Existiam os mutirões do destocamento, da aração, da gradeação (quebra de torrões e alisamento da terra arada) e da plantação. Depois que se fazia a plantação em um lote de terra, se deslocavam para o lote vizinho, onde faziam a mesma coisa, estabelecendo um rodízio entre os proprietários de terra. Depois aconteciam novos mutirões. Eram os mutirões da primeira capina, da segunda capina, da colheita e conseqüente estocagem.
Durante os mutirões rurais, todos adultos das famílias envolvidas participavam e era obrigação da família dona do local onde acontecia o mutirão, oferecer as refeições e água fresca durante todo o dia.
Por volta de nove horas era servido o almoço que vinha em gamelas, grandes bacias de alumínio ou flandres ou em latas de banha comestível. Era uma comida à base de gordura de porco, substanciosa, calorífica e sem muito caldo para facilitar o transporte. Normalmente se compunha do seguinte cardápio: arroz branco, feijão tropeiro ou tutu, macarronada com bastante queijo ralado e postas de carne de porco repousadas em banha cremosa por vários dias, que lhe emprestava um sabor forte e genuíno, de carne suína. Acompanhava as refeições, um garrafão de cachaça branca e pura, que, invariavelmente, todos os proprietários de terra, tinham estocado.
À noite, quando findava o mutirão, todas as pessoas envolvidas se reuniam com suas famílias na sede da fazenda, para um baile a sanfona, pandeiro e violão. Antes da festa, rezavam o terço, agradeciam a Deus e, sobretudo, a Nossa Senhora Aparecida. Normalmente era servido um jantar requentado. Era o aproveitamento da "soca" do almoço. Nesse jantar, acresciam comidas feitas na hora, como o frango caipira ensopado, feijão com torresmo e sopa de macarrão picado com caldo de feijão, além dos molhos apimentados.
Outro espaço para a prática das sociabilidades na região das Corredeiras das Furnas, era a relação de compadrio. Todos eram compadres de todos e quando se estabelecia uma relação de compadrio unilateral, na primeira oportunidade, seja por casamento, nascimento, primeira comunhão ou crisma, o afilhado devolvia a condição de compadre, convidando para o apadrinhamento das pessoas envolvidas nestes acontecimentos sociais. O apadrinhamento se estendia até em épocas de colheitas quando se escolhia um santo, normalmente Nossa Senhora, para apadrinhar o resultado da safra.
As festas de casamento se tornavam o ponto elegante da sociabilidade rural. Depois da cerimônia na igreja da cidade mais próxima, em que se apresentavam poucos dos vizinhos da roça e a igreja parecia triste e vazia, iam para o almoço na casa da noiva, na sede da fazenda em que ela morava. Se a noiva não fosse filha do fazendeiro, e sim de um colono, o dono da fazenda emprestava suas instalações para que o colono fizesse a festa, na proporção de suas posses. Neste caso, na maioria das vezes, o padrinho principal dos noivos era o dono da fazenda.
Na festa de casamento, a comilança se iniciava assim que se chegava à fazenda. Um mutirão de mulheres limpava os currais e barracões e distribuía as comidas por vários pontos estratégicos nos barracões, o que evitava filas e aglomerações. A bebida, quase sempre servida quente, era guaraná e muitos tipos de tubaína barata para a criançada, cerveja para os mais jovens e cachaça para os mais velhos.
Quem servia as bebidas, não ousava mudar essa disposição. "Oferecer cerveja a uma pessoa de mais idade, era fazer distrato, pois ele gosta mesmo é da branquinha!". Ao anoitecer, sob um grande toldo de lona ? que o pessoal do meio rural chama de "torda" - inicia-se o "arrasta pé" sob o som de sanfona, pandeiro e violão. Neste baile, os noivos dançam uma ou duas músicas, depois se retiram para sua residência, normalmente em casa preparada pelo noivo na cidade ou nas terras da família, para a consumação do casamento. O baile vai até altas horas da madrugada. Durante o baile, por várias vezes, mulheres aparecem com regadores de plantas cheios de água e molham a pista de dança para abaixar a poeira levantada pelos dançarinos.
Contudo, são os velórios ? mais que os nascimentos ? realizados na casa do morto ou na casa de cidade de parentes do morto (ainda não existiam os velórios municipais), o lugar ideal para que as pessoas mais velhas desenvolvessem a arte da sociabilização. Entre um café e outro, é fumado um bom cigarro de palha, em meio a conversações amenas. É obrigatório, vez ou outra, levantar-se e ir até o morto, fazer o sinal da cruz e balançar negativamente a cabeça, em sinal de pesar pela sua morte.
Nestas ocasiões, era servido café quente com pão de queijo, biscoitos de polvilho, brevidades e broas de fubá, vindos das casas de parentes ou que uma senhora amiga se encarregava de tomar conta da cozinha, onde produzia quitandas a noite inteira, dando tempo dos parentes mais próximos, chorarem seus mortos. Pela madrugada, permaneciam no velório só os familiares mais íntimos, os compadres e amigos mais chegados do morto. Os mais íntimos iam para os fundos da residência e formavam rodinhas de conversa, que invariavelmente, se transformavam em uma mesa de truco, onde executavam um jogo silencioso em respeito ao morto. No inverno, além dos cafés, chás e quitandas, girava à socapa, boas doses de cachaça, que esquentava os presentes, permitindo-lhes que atravessassem a vigília noturna, muito bem "aquecidos".
As relações financeiras que se estabelecia entre os habitantes desta região, é outro assunto interessante de ser estudado. Pouco se falava em dinheiro e muitas pessoas passavam anos sem tocar em uma cédula. A sobrevivência se fazia por meio do escambo, o que se tornou a base da comercialização entre eles. "Quando a gente tinha um capado gordo, a gente trocava ele (sic), por dois magro (sic) e ainda trazia uns frango (sic), pato, até jacá de mio [milho] (sic) como troco na breganha [barganha](sic)".
Essa falta de familiaridade no manuseio com dinheiro, viria a dificultar muito, as transações comerciais entre a empresa Central Elétrica de Furnas e os donos de terras, com visível vantagem para a empresa, devido à sagacidade monetarista de seus técnicos.
Todo esse jeito de ser, esse rendado de peculiaridades mineiras, chegou ao canteiro de obras da Usina de Furnas e evidentemente, se chocou com o modus vivendis ali instalado por ingleses e guanabarinos, principalmente. O choque cultural se evidenciou, o que fez o mineiro se retrair frente a expansividade do carioca, a saliência do candango vindo de Brasília e a inacessividade do inglês, sem, contudo, mostrar-se submisso a eles. Agiam frente às situações que se apresentavam, com resistências próprias. Ora calando-se e na falta de resposta, a demonstração de desprezo ao interlocutor; ora usando do sarcasmo e da ironia como resposta, o que calava os demais pela ousadia, já que estavam acostumados a uma pseudo acomodação do mineiro.
De todas as partes que chegavam, traziam para o canteiro de obras, para os alojamentos, escritórios, pranchetas manuais de trabalho, sua religiosidade. Em pouco tempo, todos esses locais estavam impregnados de sinais de crenças religiosas, por meio de imagens de santos dispostas em pequenos oratórios ou em locais visíveis, como paredes ou ainda, em forma de santinhos de papel, acomodados em carteiras de bolso.
Para o mineiro presente no canteiro de obras como contratado, foi difícil se submeter à rigidez de horários, à imposição de chefias e ao relacionamento com pessoas de outras origens. O contraste de pensamento fazia-o sentir-se diminuído por não ser arrojado como os demais. Ademais, a situação do contratado, que era obrigado a cumprir horários rígidos, representava outro choque cultural que batia de frente com seu modo de vida rural.
O operário descobre, depois de fechado o contrato, que não é nenhum agente livre como estava pressuposto. O momento em que goza a liberdade de vender sua força de trabalho é precisamente aquele em que se vê obrigado a vendê-la; além do mais, está, durante o lapso de tempo que permanece na fábrica, sujeito à sucção vampira do capitalista.

Essa euforia de liberdade em se vender como mão de obra e depois se reconhecer preso aos modos e métodos do capital, assustou o mineiro. De início, seus métodos de aplicar a sua sociabilidade pouco lhes valeram. Falavam mais alto a expansividade do carioca e a saliência dos candangos, o que colocavam o mineiro em posição de alerta. Porém, aos poucos, o mineiro foi "comendo o mingau quente pelas beiradas" , até contrabalançar suas atitudes com os demais.
A partir daí, pode desenvolver suas ações de sociabilidade de forma mais efetiva, sem se mostrar submisso ou subalterno demais, às vontades dos outros agrupamentos sociais presentes na obra.
Todas essas situações mostram um espaço de mineiridade, uma forma de identidade que não se identifica com outros espaços de sociabilidade de outros estados da federação. Para Hercídia Mara Facuri Coelho, "No Brasil, o regional muitas vezes é identificado com o atrasado, o pitoresco, o simplório, o menor". No entanto são aspectos de vida que a história regional dificilmente reconhece como algo digno de registro e que resgata atores regionais de importância mínima, como criadores de fatos marcantes para um país, mas de importância máxima para a historiografia regional.
Ainda segundo Hercídia:
O vazio historiográfico a respeito das regiões periféricas repete-se nos livros didáticos de história e, por conseguinte, na desvalorização do processo histórico ocorrido nestas regiões. (...) O valor dos estudos históricos ocorridos nestas regiões reside precisamente em sua capacidade de reverter esse quadro.

Com isso, vemos que nem a escola tradicional, nem os órgãos superiores do ensino no país buscam devolver importância à micro história. Jóias das convivências sociais que retratam um tempo com minúcias do cotidiano, onde pessoas pequenas se mostram grandiosas, às vezes se perdem por faltar historiador que lhes dê valor.
A memória de quem viveu um fato, é patrimônio cultural de uma região. Escrever essas memórias, passá-las para o papel, documentando-as, é dar voz ao passado. É passar a memória para a história.
Menos a memória é vivida coletivamente, mais ela tem a necessidade de homens particulares que fazem de si mesmo homens-memória. É como uma voz interior que disse aos corsos: 'você deve ser Corso' e aos bretões: 'É preciso ser Bretão,

Onde concluímos: aos mineiros, é preciso ser mineiro.
O historiador tem obrigações de recriar o passado e buscar a memória (psicologia), na história e nos fragmentos (arqueologia), embasamento técnico para as evidências por ele levantadas.

Obs. Parte de capítulo extraído da Dissertação de Mestrado em História (Política, Técnica e sociabilidade durante a construção da Usina de Furnas ? 1957-1963).
Autor: Edgar Rodrigues de Oliveira ? Defesa Pública em junho de 2002 ? UNESP Franca ? SP.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LIMA, Alceu A. Psicologia do mineiro, in Voz de Minas. São Paulo. Abril. 1983. p. 21.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo. Vértice. 1990. pp. 53-54.

GIANNOTTI, José A. Trabalho e reflexão. Ensaios para uma dialética da sociabilidade. São Paulo. Brasiliense. 1984. p.293.

COELHO, Hercídia M. F. Apresentação, in Histórias de Franca. Coord. COELHO, Hercídia M. F. Franca (SP). Editora UNESP (campus Franca) 1997. p.11.

NORA, Pierre. Entre Memória e História ? a problemática dos lugares, in Lês lieux de mèmoires. Revista História Cultural. 1993. p.18.