A ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA EM PROCESSOS CULTURALMENTE DINÂMICOS: A DUALIDADE DE GILBERTO FREYRE EM SOBRADOS E MUCAMBOS (1936

Leonildo José Figueira
leo[email protected]
 

RESUMO: A importância dada à cultura, ao analisar e estudar o povo brasileiro, faz de Gilberto Freyre um dos mais notáveis teóricos do pensamento social brasileiro do início do século XX; tendo em vista que no século anterior predominava uma interpretação carregada de determinismos biológico e geográfico. Com influências teóricas adquiridas na Europa e nos Estados Unidos, Freyre torna-se um dos percursores da interpretação cultural do “povo brasileiro” e sua diversidade, especificamente em sua obra Sobrados e Mucambos, publicada em 1936, em algum momento faremos relação entre as ideias de Freyre com o filme estadunidense Gattaca

PALAVRAS CHAVE: Pensamento social brasileiro; Culturalismo; Eugenia; Gilberto Freyre.

ABSTRACT: The importance given to culture, analyze and study the Brazilian people, makes Gilberto Freyre one of the foremost theorists of Brazilian social thought of the early twentieth century; considering that in the previous century there was a prevailing interpretation loaded organic and geographic determinism. With theoretical influences acquired in Europe and the United States, Freyre becomes one of the precursors of the cultural interpretation of the "Brazilian people" and their diversity, specifically in their Sobrados e Mocambos work, published in 1936, at some point we will make the relationship between ideas Freyre with the American film Gattaca. 

KEYWORDS: Brazilian social thought; culturalism; Gilberto Freyre; Eugenics 

As décadas de 1930 no Brasil foram de grande importância, pois legaram importantes obras acerca do pensamento social brasileiro. Entre elas podemos destacar a Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior (1933), Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, de Gilberto Freyre (1933), Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural no Brasil, também de Gilberto Freyre (1936) e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936). Tais autores e obras assumem notável pertinência, especialmente porque elas são produzidas de modo a romper com o pensamento social brasileiro vigente até então. Teorias estas, que estavam fundadas sobre o Darwinismo Social, Evolucionismo social, Positivismo, entre outras, que enunciavam a superioridade branca e a inferioridade dos negros, mestiços e indígenas. É nesse contexto que Gilberto Freyre, assume características revolucionárias, uma vez que quebra esses paradigmas racistas e deterministas e aborda a sociedade brasileira pelo viés cultural.

Gilberto Freyre constrói um ideário de mudança social pautado na otimização do passado, a qual norteia a sua perspectiva de um devir não-assentado em radicalizações. Embasa as suas obras a concepção de que vigora no país uma miscigenação bloqueadora de ações conflituosas e de oposições intransponíveis. O mocambo não era o complemento do sobrado como a senzala o erada casa-grande, havia uma relação de oposição, porém, marcada pela flexibilidade e pela plasticidade. (REZENDE, 2001)

Trataremos, aqui da obra de Gilberto Freire, Sobrados e Mucambos, na tentativa de produzir algumas reflexões, jamais pretendendo esgotar tais possibilidades, mas colaborar para uma importante discussão acerca do pensamento social brasileiro à luz deste teórico. Sobrados e Mucambos tem como tema a decadência do patriarcalismo do Brasil rural, ocorrida no século XIX, fazendo referência aos antigos aristocratas, que, com a declínio do regime escravista, tiveram que se mudar da casa-grande para sobrados em áreas urbanas. Os ex-escravos, por sua vez, também deixaram as senzalas para morarem em casebres de palha e barro em bairros pobres de áreas urbanas. Haja vista que o processo de urbanização no Brasil, deu um salto com a chegada da côrte portuguesa. De acordo com o antropólogo Roberto Da Matta, em “Sobrados e Mucambos” Freyre procurou:

Compreender um processo de transformação da hierarquia, diante das demandas mais individualizantes e igualitárias, determinadas pelo meio urbano. Ajustamentos que faziam com que as elites patriarcais relativizassem a família, os parentes, os compadres e amigos, para privilegiar inicialmente corporações e irmandades religiosas e, depois, partidos políticos e ideologias que formam a base da convivência moderna, uma sociabilidade marcada pela pressão em abolir a velha oposição entre a casa e rua, o conhecido e o anônimo, o íntimo e o público, fazendo com que tudo seja governado por leis universais, válidas para todos em todos os lugares. (DaMATA, 2003) 

O objeto de investigação de Gilberto Freyre não é mais o Brasil rural; mas um novo cenário do Brasil, marcado pelo crescimento e consequente transformação das grandes cidades. A Casa Grande dar lugar aos grandes Sobrados o que é entendido por Freyre como uma decadência a qual tem sua raiz no declínio da escravidão bem como nas pressões das forças da modernidade vindas do exterior, para o Brasil. Dessa maneira, o senhor rural, que outrora detinha o poder agora não o tem, nos espaços dos grandes sobrados. De modo geral pode-se afirmar que neste novo Brasil, a aristocracia encontra-se alojada nos sobrados urbanos enquanto os ex-escravos, agora libertos se alojam em casas de pau-a-pique nos bairros pobres da cidade, ou os mucambos. Conforme destacou o sociólogo Jessé de Souza, Freyre nos apresenta um Brasil em mudança, pois na obra Sobrados e Mucambos, “acaba ocorrendo uma “ambiguidade” cultural brasileira a partir do embate entre a tradição patriarcal e o processo de ocidentalização” a partir da influência da Europa “burguesa”, e não mais portuguesa, que toma de assalto o país no séc. XIX” (SOUZA, 2000)  Segundo Solange Moura Lima de Aragão o sociólogo Gilberto Freyre, após permanência e estudos nos Estados Unidos e na Europa, tomou conhecimento da importância do estudo dos tipos de casa para a análise e compreensão da formação do homem e da sociedade. Segundo o Historiador Luiz Fernando Tosta Barbato a obra Sobrados e Mucambos pode ser considerada uma continuação de Casa-grande & senzala, pois parecia estar prevista pelo autor.

Enquanto em Casa-grande & senzala temos o engenho de açúcar, com suas extensas famílias – e muitos associados –, organizadas de modo quase feudal, em Sobrados e Mucambos temos a transição da atividade açucareira para a atividade mineradora, das fazendas para as cidades, das tradições coloniais para a modernidade, da aristocracia para a burguesia. Era um mundo novo que se formava nas cidades, e que provocou mudanças profundas para a formação da sociedade brasileira, mas que, segundo Freyre, assim como o mundo das fazendas e engenhos, também foi fundamental para a formação da sociedade brasileira. (BARBATO) 

Barbato (2010) ainda nos esclarece que na obra Sobrados e Mucambos as categorias que estruturam o texto são dualidades em diferentes contextos e, ainda, singularmente culturais, contrariando os teóricos da geração que o antecedeu, os quais tinhas suas teorias fundamentadas sob aspectos biológicos ou geográficos. Tais fatores podem ser percebidos até mesmo pelo nome dos capítulos: “O engenho e a praça”; “a casa e a rua”; “o pai e o filho”; “a mulher e o homem”; “o sobrado e o mucambo”; “o brasileiro e o europeu”; “raça, classe e região”; “o Oriente e o Ocidente”; “escravo, animal e máquina”. O trecho abaixo (extraído do Prefácio à primeira edição de Sobrados e Mucambos), nos permite identificar ou refletir as ideias de Gilberto Freyre ao produzir a referida obra, especialmente a questão do rompimento com a tradição anterior para uma atenção especial à cultura, aos costumes. 

(...) procura-se principalmente estudar os processos de subordinação e, ao mesmo, tempo, os de acomodação, de uma raça a outra, de uma classe a outra, de várias religiões e tradições de cultura a uma só, que caracterizam a formação do nosso patriarcado rural e, a partir dos fins do século XVIII, o seu declínio ou o seu prolongamento no patriarcado menos severo dos senhores de sobrado urbanos e semi-urbanos; o desenvolvimento das cidades; a formação do império, íamos quase dizendo, a formação do povo brasileiro. (FREYRE, 2003) 

Segundo Maria José de Rezende (2001), na obra Sobrados e Mocambos “a ideia de mudança social, no Brasil, aparece como um processo de dissolução e absorção ao mesmo tempo, na medida em que ela minae reajusta, segundo Freyre, todas as esferas da vida social” (REZENDE, 2001).

A transição do patriarcalismo absoluto para o semi patriarcalismo, ou do patriarcalismo rural para o que se desenvolveu nas cidades, alguém já se lembrou de com- parar à transição da monarquia absoluta para a constitucional. A comparação é das melhores e abrange alguns dos aspectos mais característicos do fenômeno jurídico, tanto quanto moral e social, daquela transição (FREYRE, 2003). 

Ao contrário daqueles que olhavam com desprezo para as manifestações populares, Freyre valorizou a cultura brasileira por seu caráter sincrético e criticou o preconceito contra a inferioridade dos negros, índios e mestiços, bem como a visão pessimista adotada pelas elites. Se posicionou na contramão do que enunciavam os intérpretes do Brasil do século XIX, como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, entre outros.  Segundo Maria Eunice de S. Maciel (1999) o movimento eugenista, ao procurar “melhorar a raça”, deveria sanar a sociedade de pessoas que apresentassem determinadas enfermidades, ou características consideradas indesejáveis, tais como doenças mentais ou até mesmo os impulsos criminosos, promovendo determinadas práticas para acabar com essas características nas gerações futuras. Todavia esse quadro não era aplicado apenas a indivíduos, mas, principalmente às raças, baseando-se num determinismo racial fazia com que a hierarquia social se traduzisse em hierarquia racial.

Para que o ideal eugênico fosse efetivado, seria necessário que fosse estimulado a procriação entre os considerados “tipos eugênicos superiores” e coibida a procriação dos outros de modo a impedir a proliferação dos chamados “inferiores”. Dessa forma, o ideário eugênico implicaria práticas sociais que viriam a se constituir em políticas públicas cujo objetivo expresso seria “melhorar a raça” e, ao mesmo tempo, “impedir a degeneração” da mesma. Assim a eugenia, fornecendo bases pseudocientíficas para determinadas práticas sociais, acabou por levar a alguns dos mais bárbaros crimes. (MACIEL, 1999) 

Eugenia é um termo criado em 1883 pelo antropólogo Francis Galton (1822- 1911), cujo significado é "bem nascido". De acordo com o José Roberto Goldim (1998), Galton concebe a eugenia como "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente". (GOLDIM, 2006) O tema é bastante controverso, tendo em vista o surgimento da eugenia nazista, que fundamentava a ideia de pureza racial. Mesmo com a utilização de técnicas que permitem mudanças genéticas usadas em plantas e animais, ainda existem uma série de questionamentos éticos quanto ao uso de tais técnicas com seres humanos. O filme estadunidense "Gattaca", de 1997, descreve um futuro onde a maioria das crianças são selecionadas a partir de embriões fertilizados in vitro, e só os perfeitos são implantados no útero. As pessoas que não são geneticamente planejadas ("inválidas") são discriminadas pela sociedade. O filme expôs as preocupações sobre as tecnologias reprodutivas que facilitam a eugenia e as possíveis consequências de tais desenvolvimentos tecnológicos para a sociedade.

O conjunto da obra freyreana é bastante extenso, todo o seu trabalho segue a mesma linha ideológica em busca de uma identidade brasileira baseada na defesa de uma raça diferente, formada e reconfigurada a partir da miscigenação, tal abordagem pode ser estreitamente relacionada com o filme Gattaca, ou qualquer produção artística, literária, histórica, cinematográfica, em torno da temática, cultura, determinismos biológicos, eugenia racial, ou qualquer forma de pensar a sociedade. O viés cultural de Freyre marca a construção de uma sociologia “inovadora” que viria a romper com diversas teorias enraizadas em padrões racistas. A obra freyriana traz o conceito de cultura para ser aplicado ao povo brasileiro, por isso ele exerce grande importância ao abordar o pensamento social brasileiro.  

Referências bibliográficas 

BARBATO, Luis Fernando Tosta. Da casa-grande ao mucambo: Gilberto Freyre e as origens do caráter nacional brasileiro. Revista de História, 2, 1 (2010), p. 56-66. Disponível em: http://www.revistahistoria.ufba.br/2010 

DaMATTA, Roberto. “O Brasil como morada: apresentação para Sobrados e Mucambos”, in: FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano, São Paulo, Global, 2003.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. São Paulo, Global, 2003.

GOLDIM, José Roberto. Bioética: origens e complexidade. Rev HCPA 2006. Disponível em: http://www.bioetica.ufrgs.br.

MACIEL, Maria Eunice de S. A Eugenia no Brasil. Anos 90, Porto Alegre, n 11, julho de 1999

REZENDE, Maria José de. A obra Sobrados e mocambos e a mudança social do Brasil. REVISTA USP, São Paulo, n.51, p. 190-207, setembro/novembro 2001.

SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12(1): 69-100, maio de 2000.