A Oração Fúnebre Ateniense


Introdução

Atenas é frequentemente apresentada como o berço da democracia. Entretanto, aquela cidade-estado grega sempre honrou valores aristocráticos, tais como a virtude guerreira. Eis que a polis grega pode ter sido apenas dotada de uma democracia irreal e imaginária.
Os atenienses do século V a.C. são apresentados na historiografia em uma sociedade provida de uma democracia inédita na história, responsáveis pela criação de um dos valores políticos mais louvados na sociedade ocidental no século XX; a democracia. Assim, neste texto, procuro apresentar o trabalho de Claude Mossé publicado na revista L?Histoire, número 41, publicada em 1982. O breve texto de Mossé é riquíssimo por analisar o tipo de imaginário político ateniense, procurando situar a organização política daquela polis mais adequadamente ao seu tempo e, portanto, às suas características peculiares. Na bibliografia é possível encontrar obras que tratam da visão de mundo grega a respeito da política.

Os atenienses fizeram da morte em defesa da polis algo digno da mais pura honraria como recompensa pela virtude cívica. Essa relação em nada surpreende: sabe-se até que ponto Atenas e Esparta foram pensadas como modelos pelos revolucionários europeus no despontar da Idade Contemporânea. Entretanto, tanto em uma como em outra cidade-estado, morrer pela pátria poderia passar como o maior feito de uma vida, sobretudo em Atenas, onde o destino assumiu um caráter coletivo, tornando um cimento para a unidade daquela polis.
Até nossos dias provém um conjunto de textos, modelos de eloquência política ateniense da Antiguidade Clássica, conhecidos pelo nome de "orações fúnebres". Esses discursos, que eles realmente pronunciaram ou reconstituíram, tinham por missão exaltar os soldados mortos ao serviço da pátria, tais como os discursos de Péricles e os discursos de Sócrates, estes reconstituídos por Platão. A leitura desses documentos revela a importância dessa forma de pensamento aos que querem compreender não apenas como nasceu o sentimento cívico, mas pode ser ainda a maneira a qual os atenienses pensavam sua polis, os fundamentos desse sentimento cívico.

Uma Atenas Imaginária

Eis aqui a oração fúnebre. Acima de tudo essa era uma prática social: os funerais oficiais feitos pela polis aos cidadãos que foram mortos em combate, cujos restos mortais foram levados à Atenas para serem enterrados no cemitério da polis. Havia uma divisão no cemitério entre as sepulturas comuns e as que se elevavam aos cidadãos mortos em combates. É no transcurso de um funeral de um cidadão morto em nome da polis que um orador toma a palavra em um discurso especial para aquela situação; era ai feita a oração fúnebre. Tucídides lembra assim a prática ateniense no momento de introduzir a célebre oração fúnebre pronunciada por Péricles, a primeira da série estudada por Nicole Loraux, em seu livro sobre L?invention de Athènes.
Essa oração fúnebre é emblemática dos principais valores cívicos praticados por aquela sociedade e que se encontrará em todas as orações fúnebres até o fim do século IV a. C. Esse cerimonial data de muitos anos antes do século V, sendo o culto aos mortos em nome do coletivo algo bem remoto no tempo.
O que marca a oração fúnebre ateniense e a caracteriza frente o tradicional culto dos mortos é precisamente sua natureza cívica que faz com que o orador substitua o poeta dos círculos aristocráticos do Período Arcaico.
Esses traços cívicos são verificados na polis ateniense no período das Guerras Médicas, período decisivo da história de Atenas onde se afirma a hegemonia ateniense sobre o mundo Egeu.
Portanto, podemos ver tal oração aos mortos como um discurso oficial que se endereça aos atenienses reunidos no cemitério e que contribui para confirmar e imprimir na memória certa representação de Atenas sobre o mundo Egeu, que acaba por elaborar uma história oficial de Atenas, ou em outras palavras; uma história ateniense de Atenas. Essa história não pretende nem a exclusividade nem a objetividade, ela se funda no orador que seleciona alguns episódios que colocam como valor a virtude guerreira presente na cidade. As derrotas serão dessa forma dificultadas ou atribuídas às faltas cometidas pelos atenienses, da mesma forma que serão ocultados os momentos em que a polis não desempenhou o papel maioral no cenário político mediterrânico do período.
Percebe-se, nesse sentido, uma constante referência às guerras médicas, sobretudo à primeira, marcas do sucesso militar de Atenas, da mesma forma que são raras as alusões à guerra do Peloponeso, período da história onde a polis não somente sofreu reveses, mas também passou por combates internos entre os próprios cidadãos atenienses.
Portanto, a história ateniense de Atenas se apresenta como um catálogo das vanglórias da polis, como um modelo educativo que tende a dar aos combatentes do passado uma figura que os torne guerreiros lendários. Daí também vem as referências aos mitos, sobretudo à formação de uma imagem lendária da autoctonia nobre dos atenienses, legitimando a pretensão daquela sociedade antiga de ser exemplar, fundando-se em um imaginário que legitime tal posição.

Grandeza e decadência da ideologia

Não haveria contradições entre este elitismo aristocrático que revela o discurso e a alusão da democracia que ainda está presente? Esse paradoxo de uma alusão à democracia que recorrem às mesmas palavras que definem os valores aristocráticos, tais como "virtude", "bom", em oposição aos "maus" é, de fato, a expressão das contradições inerentes à própria democracia ateniense.
Quando Péricles evoca a virtude dos cavaleiros mortos em combate, quando Lysias lembra a autonomia dos atenienses eles não buscam apenas criar uma Atenas ideal, mas também se preocupam em ocultar os conflitos internos. Eles se exprimem em uma língua que é de característica política em Atenas. Em efeito, parece que a democracia nunca chegou a criar sua própria linguagem. Daí essa permanência de valores aristocráticos através das palavras que os exprimem. Mas se vê de forma clara como esta permanência podia ser relacionada ao tema da oração fúnebre e em que medida a oração fúnebre se tornava em si um discurso ideológico. Ao tornar bela a morte pela polis por parte daqueles que morriam em combates, o orador colocava em evidência aquilo que unia os atenienses, ainda que desaparecessem as demais questões que na realidade cotidiana os separavam.
Nas sepulturas comuns, não havia "bem nascidos" e nem plebeus, ricos ou pobres, camponeses ou artesãos, havia apenas aqueles que eram considerados homens de bem, tomados pela virtude suprema que era a virtude guerreira. E tal unidade recriada se encarnava nesta unidade superior que era a polis. Pouco importa então que a oração fúnebre tenha usado e abusado do uso de topoi, incansavelmente tomados pelos oradores como porta-vozes da ideologia oficial que impôs aos atenienses uma imagem deles mesmos a qual eles só tinham como opção aderir. E o que é a verdade para a maioria dos cidadãos, o é também para aqueles que eram adversários do regime e que igualmente eram impregnados pela ideologia da polis como centro de comunhão e virtude dos atenienses.
Neste ponto, o plágio de oração fúnebre feita por Platão no Menexeno é particularmente reveladora, pois se o filósofo se agrada em parodiar o inchaço dos oradores, ele acaba por reproduzir a mesma linguagem, tal como Sócrates convencia seu adversário nas discussões lhe jogando as mesmas armas argumentativas.

Conclusão

Assim, longe de ser um discurso vazio, pura retórica, a oração fúnebre é, por excelência, um discurso ideológico. Ela é criada ao uso dos atenienses para uma Atenas imaginária, uma polis imaginária onde todos se completam. O resultado disso é que o sentimento cívico não nasceu da consciência de pertencer a uma mesma comunidade e de exercer um poder soberano. Ou, ao menos, essa consciência não pode se desenvolver a não ser a partir da elaboração de um imaginário ao seio do qual desapareciam todas as contradições inerente à realidade social e onde a morte heroica aparecia como resultado normal da vida cívica.
Eis que surge então uma dupla interrogação: esta função do imaginário na consciência social não seria comum também em outras sociedades além da ateniense? E ainda; o que acontece quando essa função deixa de ser eficiente? Para a primeira questão, estudos recentes responderam afirmativamente e existe uma via de pesquisas na qual se engajam uma boa quantidade de historiadores. A segunda questão, por sua vez, tem uma resposta mais difícil de ser dada de forma não mecanicista. É evidente que o discurso ideológico e o imaginário a ele veiculado não são mais socialmente assimiláveis. Em Atenas, nas últimas décadas do século IV a. C. se opunha ao discurso ideológico a arenga pronunciada na Assembleia dos Cidadãos, na qual o orador, às vezes o mesmo que já pronunciara orações fúnebres, denunciava a indiferença dos atenienses às ameaças que rondavam sua polis, bem como a divergência de interesses dos ricos e dos pobres. Naquele momento, a boa morte em nome da coletividade perdera seu atrativo e a polis por si só havia perdido sua aura magnífica.
É nesse sentido que podemos ver que o sentimento civil pode ser acompanhado de um discurso legitimador de uma sociedade ideal que justifique os sacrifícios individuais em nome do coletivo. Esse imaginário, presente em Atenas neste texto, pode ser encontrado em ocasiões bem mais recentes, tal como durante as duas Guerras Mundiais do Século XX. Assim, se o historiador hoje em dia busca entender as sociedades no tempo a partir de várias manifestações distintas, ele deverá se interessar também pelas rupturas, pelos momentos onde as representações não aderem mais às novas realidades e então os discursos legitimadores deixam de ser eficazes.

Bibliografia

BRUN, J. Sócrates, Platão e Aristóteles. Lisboa. Publicações Dom Quixote. 1994

FLACELIÈRE, R. Vida Cotidiana dos Gregos no Século de Péricles. Lisboa. Livros do Brasil. Sem data de publicação.

JARDÉ, A. A Grécia Antiga e a Vida Grega. São Paulo. Editora da USP. 1977

LOREAUX, Nicole. L?invention d?Athènes. Paris. Editons Payot. 2003

MOSSÉ, Claude. Athènes, berceau de la démocratie? Revista L?Histoire. Número 41. Paris. Janeiro de 1982

SAUVAGE, M. Sócrates e a Consciência do Homem. Rio de Janeiro. Livraria Agir Editora. 1959