Em todo o mundo, a questão do aborto vem sendo discutida ao longo do tempo (ou ao longo dos anos), envolvendo aspectos da mais alta indagação em campos distintos, tais quais: o da ética, da moral, da medicina, do direito e da religião bem como dos costumes, da filosofia e, mais recentemente, da saúde pública.

Etimologicamente, a palavra aborto advém do latim aboriri (separar do lugar adequado), que originou ab-ortus, cuja ideia corresponde à privação do nascimento: ab equivale à privação, e ortus ao nascimento.

O aborto, portanto, é a interrupção do desenvolvimento do feto durante a gravidez, resultando na morte do nascituro, e impossibilitando que este venha ao mundo.

As discussões a respeito do direito da mulher de escolha pela gestação e, por conseguinte, escolha do rumo de sua própria vida a partir do nascimento de uma criança, advém de um conceito de desigualdade entre os sexos que perdurou por milênios e somente agora vem sendo desestruturado a partir da organização de movimentos feministas nas últimas décadas.

Durante esse período em que imperava a ideia de superioridade masculina, que ainda perdura em algumas sociedades, a mulher possuía como função e obrigação unicamente a reprodução de descendentes, sendo-lhe negada, na maioria das civilizações, o prazer sexual e o poder de tomar decisões até mesmo a respeito da própria vida.

Assim, a opressão da mulher justificaria a sua maior exploração no interior das relações sociais. A opressão do gênero feminino está intimamente relacionada à criação e à perpetuação de uma ideologia de inferioridade, de modo que, uma vez inserida tal característica à mulher, esta passa a interiorizar a opressão e, em constante ignorância acerca de sua capacidade e grandiosidade, restou facilitada historicamente a exploração e a dominação pelo sexo masculino.

Os apontamentos históricos indicam que, ainda que a mulher não pudesse ter a oportunidade de escolha, o aborto sempre foi uma prática frequente entre as mais antigas e diversas civilizações.

As primeiras práticas de métodos abortivos tiveram origem na China, no século XXVIII antes de Cristo, práticas estas que, culturalmente, podem ter influenciado as atuais políticas de controle de natalidade aplicadas pelo governo chinês. No entanto, o cenário em que está inserido o aborto na China, não é o objeto de desenvolvimento e aprovação no tocante à tese defendida neste trabalho. Tal cenário apresenta políticas estatais de inibição da natalidade, chamada popularmente de “política do filho único”.

A política que a lei chinesa impõe na teoria se mostra ainda um pouco menos violenta do que a que é imposta de fato à população chinesa, a exemplo das medidas punitivas de multas, perda de direitos a programas sociais e perda do emprego, dentre outras.

O que é mais surpreendente são as medidas de fato aplicadas, sobre as quais o governo manifesta suposta desaprovação, as quais consistem, em linhas gerais, na imposição de procedimentos cirúrgicos que levam os indivíduos à esterilização quando já possuem um filho. Ainda pior é a política compulsória destinada às mulheres para execução do aborto, chegando até ao assassinato de crianças já nascidas, principalmente quando do sexo feminino.

Ao lado da experiência chinesa, no desenrolar da história, inúmeros povos estudaram e discutiram a problemática do aborto, elaborando diversas conclusões baseadas em diferentes fundamentos.

Pode-se dizer que os povos primitivos, anteriores ao surgimento do que chamamos de direito positivado, e anteriores ainda ao que hoje se entende por direitos sociais, não previam em suas sociedades, de forma escrita ou oral, ideias referentes ao aborto, ou quando o previam, estabeleciam condições e atribuíam-lhe severas punições.

Os assírios o puniam de forma severa, estabelecendo a pena de morte para quem praticasse o aborto em mulher que ainda não tivesse filhos. De igual forma, eram punidas as mulheres que praticavam o aborto sem o consentimento de seus cônjuges, cuja morte era praticada por empalação.

Note-se que os assírios, como a maior parte das civilizações antigas, ignoravam por completo a vontade da mulher de dar continuidade à gestação, classificando-a apenas como instrumento reprodutor na sociedade. Observa-se tal fato pela exclusão total da possibilidade de manifestação de vontade da mulher, a tal ponto que se esta já tivesse mais de um filho, e o seu companheiro assim desejasse, poderiam ser praticados métodos abortivos.

Na Pérsia, o código de conduta da população encarava a questão do aborto do seguinte modo: 

Se a jovem, por vergonha do mundo, destrói o seu gérmen, pai e mãe são ambos culpados; pai e mãe partilharam do delito; pai e mãe serão punidos com a morte infamante[1].

Percebe-se que há substancial distinção entre o trecho citado e as demais posições da época, nas quais predominavam somente castigos às mulheres que praticassem as manobras abortivas, a fim de ceifar a vida do nascituro, ou a quem as auxiliasse. Destarte, os persas adotavam um sistema de repressão familiar, pelo qual não só a mulher, mas também seus pais eram igualmente responsabilizados. Neste contexto, pai, mãe e filha eram submetidos à execração pública e, por fim, eram executados.

Como exceção à regra de proibição, as poucas sociedades antigas que aceitavam a prática do aborto, o faziam de maneira impreterivelmente vinculada ao preenchimento de rigorosos requisitos previamente determinados.

À exemplo da Grécia antiga, apesar da função feminina ser exclusivamente de reprodução, foi experimentada, pelos médicos da época, a necessidade de criar métodos contraceptivos, que na realidade se desenvolveram como abortivos, para o controle da natalidade entre os casais que desejavam ter filhos mas não muitos, ou ainda para controlar os filhos havidos fora do matrimônio, intitulados indesejáveis.

No entanto, tanto no início civilização romana como na grega, a decisão assumia um caráter privado. Os romanos acreditavam que a mulher era propriedade do homem e o feto, entendido como pars vicerum matris (parte das vísceras maternas), passaria a ser também sua propriedade, de forma que o aborto, consequentemente, configuraria uma violação ao direito do marido à prole.[2]Caso a esposa procurasse abortar sem o consentimento do esposo, este poderia puni-la como desejasse, até mesmo com a morte.

Grandes filósofos como Aristóteles e Platão, sugeriam a prática do aborto como meio de barrar o crescimento populacional, o qual, segundo eles, era um dos fatores impulsionadores da miséria e escassez de alimentos nas cidades.

Sócrates, por sua vez, posicionou-se também a favor do aborto, porém com embasamento extremamente avançando para a mentalidade da época: ele conferia apenas à mãe o direito de escolha de prosseguir ou não com a gestação que se desenvolvia em seu corpo.

Já no período republicano romano, a concepção do aborto perdeu essa característica privada, assumindo a identidade de ato imoral, o que não impediu a continuidade de sua utilização pelas mulheres, principalmente pelas que se preocupavam com a aparência física, que tinha grande importância no meio social como herança do tempo do império. O número de incidência de abortos passou a ser tão grande, que os legisladores passaram a considerá-lo um ato criminoso, punido com a pena de morte[3].

Com o surgimento do cristianismo, houve também modificações grandiosas na visão que existia até então a respeito do tema. Pois, juntamente com o nascimento do cristianismo, vieram à tona diversos prismas na conceituação do aborto. Entre estes, consagrou-se a crença de que o ser humano possuía uma alma, e que esta era imortal.

Além do mais, sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, não deveria então, ter o poder de vida e morte sobre os demais, atributo este exclusivamente do Criador[4].

As discussões em relação ao aborto no âmbito do cristianismo residiam basicamente na questão de possuir ou não, o feto, uma alma, ou , quando aquele embrião, feto ou criança, poderia ser considerado um ser com vida. Assim, foram construídas duas correntes: a que afirmava que o feto só adquiriria alma, e, portanto vida, após o parto, no exato momento em que respirasse, quando a alma entraria em seu corpo, restando permitido o aborto; e a segunda corrente defendia que o nascituro receberia proteção divina desde o momento da fecundação, o que tornaria um pecado contra a vida, e dignas de reprovação dos religiosos, as condutas abortivas.

Posteriormente, Santo Tomás de Aquino, filósofo de visão aristotélica e teólogo, pregava que a fé e a razão jamais poderiam entrar em contradição, e criou uma teoria intermediária às duas posições anteriores: entendia que até certo estágio da gestação os fetos seriam “inanimados”, e que além de não possuírem as partes do corpo formadas, também não possuíam alma, tornando, nessa fase, viável o aborto. Após esse determinado estágio de gestação, passariam a “animados”, tornando qualquer conduta abortiva um sofrimento para o feto que se desenvolvia, o que consequentemente implicava a eliminação da vida e da alma concedida por Deus.

Dessa forma, se entende que, durante a evolução doutrinária, o que o cristianismo pretendia condenar era, na verdade, o aborto de fetos praticamente aptos ao nascimento, e não tão somente o fenecimento do óvulo fecundado como forma complexa de vida. O feto no início de seu desenvolvimento não possuía o status de "pessoa", portanto "matá-lo" não poderia ser considerado o mesmo que "assassinar". Essa ideia foi chamada de “hominalização tardia” [5]. Ainda no âmbito do cristianismo, diversos líderes religiosos, de diferentes épocas, apresentaram posicionamentos contrários, o que evidencia que a Igreja Católica não tem um entendimento unânime ao longo de sua evolução histórica, e que, muito provavelmente, as adversidades sociais e políticas de cada época influenciaram diretamente nas diretrizes que a Igreja chamava de lei divina.

Alguns teólogos, ao revirarem toda a história do cristianismo, recuperaram os melhores ensinamentos da doutrina católica e exploraram as grandes contradições que distorceram a imagem do catolicismo moderno. Dois filósofos católicos, professores na Universidade de Seattle - Estados Unidos, uma universidade jesuíta, escreveram A Brief Liberal Catholic Defense of Abortion (Uma Breve e Liberal Defesa Católica do Aborto) (University of Illinois Press), onde dissertam sobre uma pesquisa histórica e minuciosa sobre os ideais católicos, no qual concluem: sustentamos que a maior parte da teologia católica do século XX sobre o aborto é uma caricatura da rica e variada tradição do catolicismo sobre o assunto [6].

Assim, a posição que a Igreja adota nos dias atuais é, se não a mais extrema, a mais conservadora, mostrando-se, de certa forma, despreocupada com o que realmente faz parte de sua ideologia e crença construída através dos séculos.

Distante das crenças religiosas e concepções de povos antigos, ao final do século XIX e no início do século XX, surgiram na Europa, com maior intensidade na Inglaterra e França, movimentos feministas que preconizavam a anticoncepção e o direito da mulher ao aborto.

Entre eles, em abril de 1971, destaca-se o Movimento de Liberação Feminina (MLF), que abrangia, em sua campanha, a luta pelo aborto livre e gratuito, que, por sua vez, conduziu a França a revogar a lei anti-aborto de 1920. Importante salientar, que a data da lei de proibição do aborto da França é próxima à publicação de nosso Código Penal Brasileiro.

Antes disso, a Suécia e a Dinamarca, países predominantemente protestantes, por volta de 1930, conquistaram com menos dificuldade a legislação de descriminalização do aborto, embora com algumas condições e restrições.

Nos dias atuais, há poucos países onde o aborto é terminantemente proibido. O número de legislações mais brandas vem crescendo com rapidez, principalmente nas três últimas décadas. Observa-se, ademais, que nas nações em que o aborto ainda é proibido, o fundamento para tal não ultrapassa três tipos de aspectos: religiosos (engrandecendo o direito do nascituro em detrimento da liberdade feminina), de controle de natalidade ou de repressão social da mulher.

Contudo, factualmente, foi constatado pelos historiadores e estatísticos que as práticas abortivas sempre ocorreram, sendo estas permitidas ou não nas mais diversas civilizações.

 



[1] MATIELO, Fabrício Zamprogna. Aborto e o Direito Penal. 3ª edição. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto editores. 1996. p. 13.

[2]  Nelson Hungria & Heleno Fragoso. Comentários ao Código Penal. V.V. Rio de Janeiro: Forense, 1979, pp. 270-271.

[3] MATIELO, Fabrício Zamprogna. Aborto e o Direito Penal. 3ª edição. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto editores. 1996. P. 14

[4]  MATIELO, Fabrício Zamprogna. Aborto e o Direito Penal. 3ª edição. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto editores. 1996. P. 15

[5] Universidad Externado de Colombia, Alan Guttmacher Institute. Problemática religiosa de la mujer que aborta, Universidad Externado de Colombia, 1994.

[6] DOMBROWS, Daniel A. &  DELTETE, Robert John. A Brief Liberal Catholic Defense of Abortion. University of Illinois Press, 2000.