Mauro Manzione

São amargas de ver as fotos tiradas em Guernica após o bombardeio da aviação alemã. São mulheres, velhos e crianças... muitas crianças! Hoje, porém, a sociedade "pós-moderna" nos oferece como "reader digest", a evolução de nossa insanidade. Eles são, sem dúvida, a imagem mais aterradora e angustiante de nossos tempos. Estão pelo mundo. Nos bairros de imigrantes das cidades européias, nos subúrbios de Los Angeles, nos guetos de Joanesburgo, nas ruelas de Mogadício, nas matas da Guiné, na Cidade de Deus, nos becos de Hafa. Small-soldiers, pequenos soldados, meninos soldados, soldados do papel, do pó, da incompreensível capacidade de transformarmos a energia, a punção, a ansiedade, o desejo juvenil em meio de destruição. São mentes confusas e mãos nervosas carregando FAls, AKs-47, UZIs, ARs-15, prontos e aptos a puxar o gatilho. Nas esquinas, nos cruzamentos, nas lajes, nas savanas, nas matas... Infâncias perdidas!
O drama das crianças arregimentadas e utilizadas como braço armado é das características mais cruéis dos conflitos em tempos de "pós-modernidade". As chamadas "novas guerras", ocorrendo desde meados do século passado, assumiram características específicas que diferenciaram tais conflitos das "guerras tradicionais" dos séculos XVIII e XIX e mesmo das "guerras totais" do século XX. A localização dos conflitos deslocou-se da Europa, como palco central, para regiões periféricas como África, Ásia, América Latina e Leste Europeu. Os embates tornaram-se regionais, geralmente intra-estatais, porém com conseqüências internacionais. No geral, ocorrem em Estados Nacionais fracos ou em vias de formação, de precária unidade territorial ou em franco processo de "balcanização". Herdeiros de recente passado colonial. Economias dependentes, exportadoras de recursos naturais e acentuada concentração de riqueza. Políticas públicas ineficientes e conseqüente marginalização da maioria da população. Enfim, fronteiras permanentes de acumulação primitiva de capital. Regiões que, se podemos localizá-las em sua grande maioria no Hemisfério Sul, fato é que também são reproduzidas no seio das economias centrais, e no coração do mundo desenvolvido apresentam características típicas das periferias.

I) Das Cargas de Cavalaria ao Cogumelo Atômico
Em tempos de Guerra Fria, e principalmente no mundo globalizado de finais de século, os conflitos bélicos assumiram aspectos específicos, próprios ao contexto. Desde o século XVIII, com o desenvolvimento da sociedade capitalista, a dinâmica das guerras foi adquirindo aspectos particulares, conforme a conjuntura específica. Ao longo dos séculos XVIII e XIX a história das guerras esteve ligada diretamente a construção dos Estados Nacionais e o conflito bélico se manifestou como resultado contínuo do fracasso das relações diplomáticas entre nações soberanas. A guerra era extensão do jogo político. A possibilidade de "agudização" das relações vinha da ausência de uma ordem internacional reguladora dos interesses das partes. Porém, a perspectiva de aprofundamento do conflito levava, na prática, a limitação dos objetivos finais, possibilitando o retorno à paz pela via da negociação, antes do esgotamento total.
A guerra era praticada pelo confronto entre exércitos regulares, com soldados adestrados e capacitados ao uso da violência legítima, separando-se da população civil, que deveria ficar fora do perímetro de luta. As batalhas ocorriam em campo determinado: o front. A guerra era assunto de domínio público, da competência de segmentos militares profissionalizados, realizada em cenário determinado, com conseqüências políticas e econômicas passíveis de serem controladas, tendo-se sempre como recurso o retorno a paz
O século XX instaura uma nova racionalidade no conflito bélico, que iria manifestar-se no que Hobsbawm (1993) chama de "guerras totais", da primeira metade do século. Apesar de manterem várias das características das "guerras tradicionais", a Primeira e Segunda Guerras Mundiais apresentaram muitas características das "novas guerras". Diluiu-se a distinção entre público e privado, militar e civil, tanto na definição dos alvos estratégicos como na composição das forças em luta. A razão de Estado deu lugar à defesa de causas mais gerais, de cunho ideológico. O cenário de guerra ampliou-se, a perícia e o treinamento do guerreiro foram adequados à eficiência tecnológica. Apesar de conviverem batalhas tecnológicas (o embate entre destróieres e u-boats, a luta entre a RAF e a Luftwapt, o choque entre blindados em Kursk) e batalhas corpo a corpo como em Stalingrado, Iwo Jima, ou na reconquista da Itália, fato é que foram guerras de massas onde a tecnologia definiu, em muito, o desenvolvimento dos fatos. Os efeitos colaterais tornaram-se imprevisíveis e incontroláveis. As economias nacionais mobilizaram-se grandemente para a sustentação de seus exércitos e acabaram marcadas profundamente, no pós guerra, pela conclusão do embate. É perfeita a observação de Hobsbawn (1995) quando ressalta a importância do ano de 1914, originando o que ele chamou de "breve século XX". Logo, alguns anos após, os ventos e a chuva negra de Hiroshima e Nagasaki cobririam o mundo... a sombra e o medo da destruição total fundaria condições para os novos conflitos que surgiriam desde a segunda metade do novecentos.

II) Meninos e Tecno-soldados: as Novas Guerras
No geral, o termo "Novas Guerras" compreende conflitos ocorridos desde o início da Guerra Fria até o presente. Porém, há uma nítida distinção entre a natureza das guerras ocorridas durante a bipolarização mundial e aquelas contemporâneas à globalização recente, principalmente de meados da década de 80 até o presente. Nos conflitos ocorridos durante a Guerra Fria o comprometimento político-ideológico era preponderante, sendo tais conflitos, em sua maioria, guerras de libertação, anti-coloniais ou revolucionárias, estando as partes circunscritas no universo ideológico da polarização mundial. A incorporação da população civil as guerrilhas fazia-se sob um pressuposto de engajamento político a uma causa, que somente era possível pelo convencimento dessas populações. A guerra revolucionária em Cuba, a guerra do Vietnam ou da Argélia, seriam exemplos claros desse período.
Essa talvez seja a diferença fundamental em relação as guerras "pós-modernas". As motivações político-ideológicas evaporaram e os conflitos passaram a ter objetivos intrínsecos, utilitaristas, típicos a uma racionalidade fragmentada e volátil de um mundo niilista. A objetividade da invasão do Iraque por forças militares poderosíssimas, o controle da região do Kivur por forças regionais ou a invasão de comunidades na cidade do Rio de Janeiro por grupos criminosos possuem a mesma lógica: o controle de um território para fins de acumulação absoluta de capital.
Depois que as superpotências deixaram de apoiar conflitos regionais, ditos de baixa intensidade, as partes conflitantes acabaram por integrarem-se a múltiplas redes de apoio interessadas, direta ou indiretamente, na perpetuação do confronto. Os novos conflitos apresentam-se como embates efetivos ou camuflados, de duração variável, geralmente intra-nacionais, mas por vezes envolvendo atores regionais e muitas vezes interesses internacionais. Geralmente são conflitos assimétricos. Confrontam-se partes dessemelhantes, organizações armadas estatais ou não, forças armadas nacionais ou mercenários, que dispõem de equipamento bélico de alta tecnologia ou milícias e gangues compostas basicamente por crianças e jovens com pedras, facões ou kalachnikovs. Convivem a guerra digital e os confrontos tribais. Ao lado de uma tecnologia bélica "hightec" que possibilita a digitalização do alvo, esfumaçando as vítimas e pulverizando os objetivos, através do que se convencionou chamar de "armas inteligentes", ocorrem confrontos corpo a corpo, principalmente nos espaços urbanos onde a luta é decidida com armamento leve, por vezes obsoleto para os grandes exércitos, mas extremamente funcionais para grupos milicianos. Confrontam-se "tecnosoldados", rigorosamente treinados e equipados, e tropas civis, esporadicamente mobilizadas para ações suicidas, numa manifestação das mais características do mundo globalizado: a desigualdade exponencial.
Para sobreviver, tais grupos tem que construir uma gama complicada de conexões internas, regionais e internacionais. Acabam mesclando violência política e crime organizado numa ação indistinta, que visa a formalização do poder ou o imediato ganho financeiro, perpetrando todo tipo de violações aos direitos humanos. Verifica-se, por parte desses grupos, uma tendência de evitarem batalhas ou confrontos mais agudos, permanecendo no controle de regiões ou territórios estratégicos, onde geralmente são disseminadas técnicas de terror, que se materializam em violência estremada, quase simbólica, não só contra o inimigo mas também contra a população hospedeira. Tornam-se corriqueiras a prática da pilhagem, o uso do mercado negro, a cobrança de pedágios ou taxas de proteção, a exploração servil do trabalho, a apropriação de doações internacionais, o financiamento externo. A guerra transforma-se num mercado de investimento, capitalização e lucro, para a burocracia estatal, as elites dominantes, os senhores da guerra e agentes econômicos externos, inclusive empresas privadas, com reconhecida existência jurídica, especializadas em questões militares

III) Causas Identitárias e Interesses Econômicos
Dadas as especificidades dos "conflitos pós-modernos" foram formulados novos paradigmas para o entendimento das causas dessas guerras: disputa por recursos naturais em situação de abundância ou escassez; rivalidades identitárias, geralmente étnicas ou religiosas; mercantilização da guerra, em conflitos com um fim em si mesmo

A nosso ver, a eleição de tais fatores não afasta causas mais tradicionais e antigas como as razões de Estado, as divergências ideológicas, o separatismo, as disputas territoriais e de fronteiras, a herança colonial. Porém julgamos que, principalmente nesta virada de milênio, a disputa por recursos, as questões identitárias e a mercantilização surgem como fatores pertinentes ao processo de globalização imperialista. As questões étnicas ou religiosas, devidas a rivalidades ancestrais ou marginalização social, são as explicações mais recorrentes como causa dos conflitos, principalmente através dos veículos midiáticos. Porém, nem todos os conflitos armados que envolvem grupos étnicos ou religiosos como facções em luta podem ser classificados como guerras identitárias.
O declínio do Estado e a relativização da Soberania Nacional, a erosão do monopólio no uso da força, a paulatina dissolução moral da coletividade e a formação de grupos e segmentos sociais independentes, foram processos que ocorreram em muitos países de "marginalização relativa" resultando, em muitos casos, no desenvolvimento dos "mercados da violência". Que são explicados pela via étnico-racial. Em verdade, na maior parte das vezes, a questão étnica ou religiosa materializa interesses de ordem políticos ou econômicos, que não aparecem superficialmente mas são a real motivação do embate.

No geral a questão étnica surge como fator de justificação ou mesmo de aglutinação de grupo. A causa identitária é mais forte quando ocorre a marginalização de determinado segmento social, nesse caso, a fragilidade do Estado Nacional faz com que seja mais seguro para o indivíduo manter-se leal ao seu grupo identitário do que a quaisquer proposta política formal. Sem dúvida, em muitos casos a identidade étnica ou religiosa, de cunho ancestral, sobrepõem-se a identidade nacional e serve como argamassa a ações de conteúdo político e econômico. A experiência do empobrecimento social e a ausência de perspectivas, favorecem a retomada de valores tradicionais e a busca de abrigo no seio da comunidade originária. Em determinadas regiões o sentimento de comunidade dominante e a solidariedade podem substituir a segurança constantemente ameaçada. É nessa lacuna que cresce o poder dos "senhores da guerra", "grupos marginais" ou "rebeldes".
Como já salientamos anteriormente, o foco midiático no caráter "tribal" dos conflitos, com ênfase nos massacres, ordas de refugiados, pandemias, fome, violação de direitos, consolida a idéia de que nos países periféricos a violência é problema congênito, fruto do atraso crônico, vilania e corrupção de suas sociedades.
Algumas interpretações midiáticas enfatizam o caráter anômico desses conflitos numa espécie de novo barbarismo que se expressa através de uma violência iconoclasta. A guerra perderia qualquer sentido retornando a condicionantes primitivos. A guerra apresentar-se-ia como a materialização do caos. Porém tal aparente situação caótica não é, absolutamente, desprovida de sentido, nem muito menos reflexo de primitivismo crônico. Em muitos dos casos, mesmo sem finalidades político-ideológicas claras, a guerra apresenta um sentido prático para alguns atores oportunistas. Nesse caso, em geral, interesses econômicos afloram. O ambiente de guerra, em si, gera oportunidades de ganho para as forças mobilizadas.

Diante da incapacidade do Estado Nacional em apresentar à população oportunidades concretas de subsistência a guerra assume essa função. No geral, a existência de tais grupos não é isolada mas funcionaliza o interesse das burocracias estatais, elites nativas e mesmo grupos econômicos internacionais. A guerra torna-se um moto continuo, cresce a economia de guerra, gerando riqueza para uns e sofrimento ilimitado para outros, numa articulação do caos como geopolítica. O mercado negro de produtos variados, o comércio ilegal de armas, o controle de campos de refugiados, o tráfico de drogas, são algumas oportunidades de acumulação que a própria guerra potencializa. O que parece, então, uma situação de absoluta desordem gerada pelo "primitivismo" é fronteira de acumulação primitiva de capital.

IV) O Caos como Geopolítica
A principal característica dos conflitos pós-modernos é a utilização do caos como estratégia de lucro e dominação. A disseminação do terror, o uso indiscriminado da violência, a ausência de projeto coletivo, a visão utilitária e pragmática do conflito, provocam um ambiente de aparência caótica, mas que é por demais funcional no processo de acumulação. A desordem adquire uma racionalidade perversa porém, característica ao mundo globalizado. As "guerras pragmáticas", de fins absolutamente utilitários, são conseqüência e reflexo do processo de globalização imperialista que exporta o caos para áreas periféricas transformando-as em fronteiras de acumulação primitiva. Potencializando, inclusive, o efetivo controle do fornecimento e comercialização de bens e recursos naturais de grande valor nos mercados internacionais, numa ligação direta entre grandes grupos econômicos internacionais, "senhores da guerra" e elites corruptas de diversos paises. A exportação dos conflitos para fronteiras de acumulação primitiva é dado estrutural nas relações internacionais do pós-guerra fria.. Nas grandes fronteiras de acumulação primitiva das periferias a lógica estrutural da espoliação imperialista é extrair recursos abundantes, subordinar Estados fracos e corruptos e manter níveis de desenvolvimento baixos e conseqüente baixo consumo de recursos energéticos.
Na ação desses grupos, não há justificativa para a violência, ela se apresenta como o meio fundamental para se conseguir manter a proeminência sobre um espaço e dele retirar-se recursos, que mantenham a própria guerra e viabilizem o lucro. Não há nos conflitos "pós-modernos" causas públicas, ideológicas, revolucionárias, populares, libertárias, somente razões utilitárias. O enorme excedente de força de trabalho que se torna militante desses grupos de combate está completamente deslegitimado no uso da violência. Não defende uma causa, não defende a sua causa, não pertence a uma organização com proposta política, não faz parte integrante de um exército oficial ou de oposição. Ele torna-se a imagem dele projetada: um bandido; um terrorista. É como bandido que passa a agir, é como bandido que oprime sua própria comunidade e é eliminado pelas forças oficiais. A violência das forças da ordem se legitima ao se fazer sobre aqueles que coagem ilegitimamente a sociedade. Como aqueles que utilizam ilegitimamente a violência são, em geral, parte do enorme capital excedente de trabalho, as "novas guerras" tornam-se excelente oportunidade para queima de estoques, nas savanas africanas ou nos morros do Rio.
Sem dúvida, as "atividades" geradas pelos novos conflitos, e sua conseqüente violência, fazem parte do mercado informal e ajudam a aquecer o consumismo desfraldado pelo cinismo governamental, que também foi globalizado. As gangues, os comandos, as milícias, são como tropas de choque avançadas da nova ordem internacional. Disseminam a morte e recrutam para a morte anônima o grande "exército de Branca Leone" composto pelas massas sem terra, sem teto, sem emprego, sem saúde, sem educação, mas... com uma kalack nas mãos. Tais grupos canalizam o ódio de classe. Sobre a capacidade de arregimentação dos exércitos formais, e mesmo a adesão dos jovens aos grupos armados, estudos diversos chegam a conclusões muito semelhantes: o desencanto, a falta de perspectiva, a desesperança, o ganho rápido, a busca pelo respeito social. Tanto nos países desenvolvidos, como os EUA, como nas regiões periféricas a carreira militar apresenta-se para muitos jovens como a opção viável de sobrevivência, muitos, após o serviço militar, continuam na "carreira" das armas, por vezes tornando-se profissionais das inúmeras empresas de serviços militares ou braço armado do crime organizado.

A pós-modernidade desviscerou a guerra, despiu-a de qualquer argumentação moral e objetivou sua razão pragmática: controle das riquezas e sua capitalização máxima, oportunidade de aplicação de capital e força de trabalho excedente, transformando-se a própria guerra em mercado permanente de consumo de armas, drogas, víveres, e vidas. Acreditamos que a guerra dos Bálcãs seja um importante marco para as "novas guerras", assim como os conflitos na Colômbia, Cáucaso, Libéria e Serra Leoa, a invasão do Afeganistão. A guerra civil em Angola, Moçambique e no Sudão, a princípio tinham um caráter político-ideológico mas, com o fim da Guerra Fria, acabaram assumindo características de "guerras pragmáticas". A própria invasão do Iraque não passa de ocupação imperialista de território estratégico, sob a canhestra argumentação de "guerra santa".

V) Indústrias da Guerra e da Paz
A ênfase nas razões econômicas desmascara o discurso de alguns agentes oportunistas porém, confere aos governantes ampla possibilidade de ação se os grupos rebeldes, sendo oposição política legítima, forem identificados pelo discurso dominante como meros bandos oportunistas, bandidos armados. A generalização e o culto da violência faz Enzensberger afirmar que "... Há muito a guerra civil penetrou nas metrópoles. Suas metástases pertencem ao cotidiano das grandes cidades(...) Dela não participam apenas terroristas e agentes secretos, mafiosos e skinheads, traficantes de drogas e esquadrões da morte, neonazistas e seguranças, mas cidadãos discretos que à noite transformam-se em hooligans." Acarreta menos custos políticos invadir militarmente uma área, território ou região quando ela é controlada por "bandos marginais", de objetivos pragmáticos, sem projeto ou proposta ideológica, compelidos por fanatismo ou cobiça, do que confrontar uma população politicamente organizada. Uma comunidade pobre, bairro de imigrantes, território étnico, um país, pode ser identificado como base de terroristas, marginais ou narcotraficantes e, assim, tornar-se alvo de propostas intervencionistas.
A situação do Estado, as pressões do sistema internacional, o comportamento dos indivíduos, suas origens e laços identitários, e os reflexos do sistema de dominação colonial são componentes importantes na caracterização dos conflitos nas fronteiras de acumulação primitiva. Sem dúvida, nos diversos conflitos que vem se perpetuando na Republica do Sudão, todos esses fatores são consideráveis em maior ou menor grau.
A construção ou implosão de fronteiras herdadas e a forma com que os diversos povos de uma região se relacionam, pode criar ou acentuar rivalidades ancestrais instrumentadas num possível conflito. Assim como os interesses da antiga metrópole na exploração de recursos pode causar pressões de outros grupos internacionais.
De qualquer forma, quanto mais frágil o Aparelho de Estado e débil o princípio do Estado Nacional maior a possibilidade de rebelião. Muitos dos Estados Nacionais nas regiões periféricas correspondem a regimes patrimoniais onde a corrupção se torna prática corriqueira na administração e a distribuição de recursos obedece a interesses políticos de uma elite, que geralmente se ampara em origens éticas ou religiosas. Em alguns casos a própria classe política instiga a competição interna a fim de eliminar ou conter a oposição, fragmentando o país, numa política de "senhores da guerra".
Incapaz de desenvolver uma eficiente política de segurança, o Estado perde o controle do território nacional ou de regiões estratégicas. As formas de exercício concreto do poder associadas ao uso da violência se ampliam a partir, através e paralelamente ao Estado. Alguns desses agentes ignoram fronteiras. Grupos e organizações armadas acabam desenvolvendo transações sociais e econômicas e estabelecem bases de ação e refúgio que "feudalizam" o espaço urbano ou rural, fluem entre espaços territoriais de nações diversas e até tornam-se atuantes em áreas de administração internacional como os campos de refugiados. Formam-se assim, complexas redes de interação que envolvem ONGs, oligopólio transnacionais, agências da ONU, cias de segurança privada, agências Estatais de outros países, agentes do mercado negro, máfias e grupos criminosos, os limites esmaecem...
Desenvolvem-se economias de guerra globalizadas com organizações armadas locais associadas a atores transnacionais. Para proveito mútuo, formam-se intensas ligações entre os diversos agentes da violência. Contatos entre insurgentes e comunidades religiosas, entre terroristas e criminalidade organizada, entre senhores da guerra e rebeldes, entre grupos étnicos, terroristas e senhores da guerra, que com o passar do tempo transformam-se em relações constantes de cooperação. Essa rede ilegal, formada por agentes não estatais do uso da força depende, contudo, de parceiros na esfera legal: instituições financeiras; indústrias de transformação de matérias primas; alfândega, empresas comerciais e governo. O comércio ilegal de armas não seria possível sem a colaboração dos mais diversos agentes legais, assim como o lucrativo negócio da lavagem do dinheiro. O fato de que rebeldes, senhores da guerra, terroristas e a criminalidade organizada se infiltram na esfera legal dos países periféricos muito se relaciona a propagação, em etapa de globalização imperialista, das chamadas "economias informais". Muitas dessas atividades, vitais à sobrevivência de comunidades inteiras, somente se mantem sob a proteção de bandos criminosos ou milicianos. O vácuo de uso legitimado da força pelo Estado vai sendo preenchido por bandos violentos ou por defensores da ordem corruptos, que privatizam o bem público da segurança. O financiamento desse processo acontece ou por meio de "taxas" pagas a criminalidade organizada e milícias, ou através de "remuneração adicional" a policiais.
Nesse sentido torna-se possível a exploração das riquezas e o controle de determinadas regiões através do apoio internacional a grupos que reivindicam direitos de territorialidade num quadro de fragilidade do Estado Nacional, proporcionando um processo contínuo de fragmentação territorial. Por outro lado justificam-se intervenções diretas em áreas economicamente estratégica sob a argumento do "combate a criminalidade internacional". Por isso as reivindicações regionais ou apelos emergenciais de origem étnicos ganham espaço nas explicações dessas novas guerras, na medida em que se tornam argumento base para o "apoiamento" a pretensões separatistas ou intervencionistas: os Bálcãs, o Cáucaso, a Colômbia e o próprio Sudão, como veremos, são exemplos claros disso.
Além do mais, as "guerras pragmáticas" abriram espaço para o retorno do "filantropismo" em dimensões globais. Como a população civil é a mais atingida por tais conflitos gera-se uma enorme clientela para o "assistencialismo" ocidental. Esse discurso assume, no presente a alcunha de "ajuda humanitária". O resultado do caos exportando pelos grandes centros capitalistas torna-se oportunidade para ampliar-se a dominação sobre áreas ricas em recursos naturais. Acorrem dezenas de ONGs, montam-se campos de refugiados, surgem projetos de ajuda unilateral, desembarcam os capacetes azuis e estrelas de Hollywood, multiplicam-se missionários cristãos. No entanto, a ação da forças de paz da ONU está atrelada aos grandes do seu Conselho de Segurança. Os créditos geralmente são concedidos aos países em crise porém, ricos em recursos naturais. Os campos de refugiados represam os possíveis migrantes, e as ONGs, que hoje já perderam todo seu "glamour" de décadas atrás, assim como as missões cristãs, geralmente funcionalizam a penetração dos interesses e das idéias ocidentais em áreas estratégicas, quando não estão infiltradas diretamente por agentes militares ou de agências de inteligência dos Estados Imperiais. Todo esse sistema de ajuda humanitária se nutre, de forma vampiresca, das crises, catástrofes naturais, epidemias e, principalmente, das novas guerras.
A "indústria da paz" constituída por um pelotão de ONGs, Entidades de Assistência Internacional, Instituições Religiosas necessita de exposição já a "indústria da guerra", a face obscura dos interesses imperialistas, chafurda num pântano labiríntico. Já esta amplamente comprovada a crescente participação de "Empresas de Prestação de Serviços Militares" em inúmeros conflitos contemporâneos. Pode-se dizer que, após os Bálcãs tem sido crescente a utilização pelo Estado, empresas e até organizações assistencialistas, de "cias de segurança" que oferecem serviços nas áreas da logística, inteligência, treinamento e combate: Ronco; Defense Systems Ltd; Saracen; DynCorp; Executive Outcomes: Sandlines; Stabilco; Blackwater; etc, etc, etc... Geralmente com sede nos Estados Unidos, Inglaterra, África do Sul e Austrália prestam serviços a quem lhes pague, governo ou oposição; exército ou guerrilha; ONGs ou Estado. No geral agem em conflitos em que a exploração ou controle de recursos naturais então em jogo, com estratégias que lhes são específicas, e armamentos de difícil rastreamento. Ainda mais, as instituições estatais não estão plenamente informadas, sobre onde e como empresas militares e seus soldados armam-se.
Estima-se que até dois terços dos armamentos leves necessários para os inumeráveis conflitos deste mundo, em cuja conta podem ser computadas cerca de 90% das morte, são hoje distribuídos por comerciantes de armas privados à margem do controle estatal oficial. Segundo Pimenta et.(2008) estas armas são hoje as verdadeiras responsáveis pela destruição em massa e a facilidade de entidades civis, privadas, acessarem este mercado leva ao crescimento de um poder coercitivo externo ao Estado. Com o fim da tensão bipolar, os produtores de armas passaram a buscar novos clientes que borbulharam quando as novas guerras passaram tornar-se visíveis internacionalmente. Com a despolitização de sua produção e o encalhe dos estoques, principalmente nos países do antigo bloco socialista, a possibilidade de vendas para qualquer cliente interessado tornou-se apenas uma questão de mercado.
Assim, encontramos nosso adolescente sudanês, afegão, brasileiro, palestino, israelense, norte-americano desejoso de um carrão, i-pod, roupas, um punhado de comida... Arregimentado pelo serviço militar, pelo narcotráfico, pela guerrilha de oposição, pelo grupo identitário, treinado na luta ou até por especialistas terceirizados. Portando um fuzil ou sub-metralhadora, uma automática, granadas, zagaias, facões, pedras, pilotando um blindado Merkava ou uma Honda 125, invadindo aldeias, a comunidade vizinha, o bairro inimigo, aterrorizando, estuprando, mutilando e, por fim... morrendo.

Referências
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