Desempenho de bovinos na fase de cria na savana de Roraima

Ramayana Menezes Braga

Médico Veterinário, Pesquisador da Embrapa Roraima

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Resumo – A criação de bovinos na savana de Roraima é uma das atividades socioeconômicas de grande relevância na ocupação histórica dessa região setentrional do Brasil. Iniciada ainda no século XVIII, a cada ano, crescia o número de propriedades com atividades pastoril. A característica marcante da exploração era o sistema extensivo com uso exclusivo da pastagem natural como única fonte de alimentação para os bovinos. A baixa taxa de natalidade (35 a 40%), o pequeno ganho de pesodiário, a elevada mortalidade e a elevada idade de abate (superior a cinco anos) eram reflexo das práticas rudimentares de manejo, seleção e descarte. Este trabalho analisa os dados obtidos por um criador em duas propriedades em área de savana entre os anos de 1991 a 2016 (25 anos). São registros de informações sobre o nascimento de bezerros, idade à primeira cria, idade da apartação, intervalo entre partos e ocorrências diversas dentre elas as mortalidades de vacas em lactação e de bezerros.Dos 3.290 registros observa-se que 74% dos partos ocorreram durante os meses com menores precipitações pluviométricas (outubro a abril). A mortalidade de bezerros foi de 12,9% e, das vacas que morreram em lactação 80,4% foram aquelas que tiveram parto no período seco. Dos bezerros nascidos, 77% foram apartados com idade entre oito a treze meses. Em 73,4% dos casos, o intervalo entre partos variou de 20,1 a 36 meses. A idade à primeira cria, em 67% dos casos, ocorreu em vacas com 4,1 a 6,0 anos de idade. O baixo desempenho da bovinocultura de corte na fase de cria evidencia ser a alimentação, o padrão racial e o manejo inadequado ou inexistente como os principais pontos críticos. Sugere-se a elaboração e validação de sistema de produção como estratégia para viabilizar, sob o ponto de vista econômico, a atividade cujo lucro líquido, em 2015, foi estimado em R$ 12,95 por hectare. 

Performance of cattle in the breeding phase in the savannah of Roraima

Introdução

A introdução de bovinos nas extensas áreas com pastagem natural na savana de Roraima pode ser considerada um marco histórico na ocupação social e econômica da região. Das três fazendas instaladas em 1789, a cada ano, crescia o número de novas propriedades com criação de bovinos em consonância com o crescimento do rebanho.  Passados cerca de 160 anos, na década de 50, eram cerca de 140 mil cabeças onde a maioria da população local tinha participação direta ou indireta com a atividade pastoril. Atualmente o rebanho bovino em Roraima é de 800 mil cabeças (Braga, 2016).

O sistema de exploração pecuário adotado era o mais rudimentar possível, onde as propriedades não possuíam sequer cercas limítrofes. A pastagem natural era a única fonte de alimentação para o gado que percorria longas distâncias à procura de melhores pastagens e de água. A criação extensiva era um grande obstáculo para o manejo dos bovinos. Os animais eram recolhidos em apenas duas ocasiões por ano, uma para escolha dos bovinos machos que seriam destinados, preferencialmente e em maior número para serem transportado por via fluvial para serem abatidos na cidade de Manaus, no Amazonas e, em outra oportunidade os animais eram levados para os currais para identificação do proprietário e marcação. Não havia nenhum tipo de suplementação, de vacina ou qualquer outro trato sanitário. 

Naquelas circunstâncias, Embrater/Embrapa (1976) estimavam que a natalidade era de 40%; a mortalidade de bezerros no primeiro ano atingia 10%; a mortalidade de animais com mais de um ano de 7%; a idade à primeira cobertura das femeas ocorreria quando estas estavam com 30 a 36 meses. Os machos estavam prontos para o abate com, no mínimo, cinco anos cuja carcaça proporcionava apenas 160 kg.

Tendo Manaus como principal mercado consumidor da carne bovina produzida em Roraima, o longo percurso por transporte fluvial do boi em pé acarretava perdas da ordem de 25 kg de peso vivo e, os animais eram abatidos com 335 kg de peso vivo e rendimento de carcaça de 45%, ou seja, a atividade proporcionava apenas 150 kg de carcaça por animal, além de ser uma carne pouco palatável (dura e magra) (Noskoski, 1975).

Apesar das melhorias implementadas nos últimos anos, como por exemplo, o uso de animais geneticamente superiores com predominância da raça Nelore, o uso de suplementação mineral e o controle sanitário do rebanho os índices de produtividade permanecem muito aquém do desejável. Bendahan (2015) estimou que a fase de cria em condições extensivas na savana de Roraima proporciona o lucro líquido de R$ 12,95 por hectare.

Tendo em vista a escassez de informações sobre os índices zootécnicos da pecuária de corte na região este trabalho apresenta dados obtidos do registro realizadopor um pecuarista durante 25 anos.

Metodologia

A obtenção dos dados apresentados neste trabalho refere-se as anotações realizadas por um pecuarista em duas propriedades na savana de Roraima. Os dados de 1991 a 1998 (6,9 anos) foram obtidos na propriedade existente na região do rio Surumu, município de Pacaraima e, de 1998 a 2016 (18,2 anos) de uma outra propriedade na região do rio Ereu, no município de Amajari, portanto, perfazendo 25 anos de registro de informações.

Para permitir o registro dos dados o pecuarista identificava com número as femeas nascidas. As anotações referiam-se a data de nascimento, da apartação, dos partos e de ocorrências diversas tais como mortalidade, venda, abate para consumo, furtos, acidentes, etc.

O sistema de criação era extensivo com uso da pastagem natural como única fonte de alimentação para os bovinos. Na década de noventa a suplementação oferecida era apenas com sal comum (cloreto de sódio) passando-se a para a suplementação mineral com macro e micronutrientes nos últimos 15 anos. Para o controle das principais doenças da região os animais eram vacinados, atualmente, contra febre aftosa, botulismo e raiva.

No sistema adotado pelo pecuarista, semanalmente o proprietário e/ou seus ajudantes percorriam a propriedade para recolherem para próximo da sede da fazenda as vacas que haviam parido. Pela manhã as vacas eram ordenhadas separando-se os bezerros durante o dia. Ao final da tarde, as vacas eram levadas para o curral ocasião em que os bezerros eram amamentados e, novamente separados durante o período noturno para que houvesse nova ordenha nas primeiras horas da manhã do dia seguinte. O critério adotado para a apartação dos bezerros era visual em função do tamanho e/ou condição corporal. Atualmente os machos são vendidos para serem recriados e terminados em outras propriedades onde existe pastagem cultivada. As femeas permanecem na propriedade para reposição das vacas velhas ou das descartadas por razões diversas. No manejo da pastagem utiliza-se o fogo em uma ou duas ocasiões por ano como único método para melhorarsua qualidade nutricional.

Resultados

Considerando-se que a precipitação pluviométrica é o fator climático com maior interferência sobre o desempenho da pecuária na região, os dados foram analisados mensalmente e em função do regime de chuva. Dados obtidos pela Embrapa Roraima no período de 1983 a 2018, em região de savana próxima da cidade de Boa Vista, capital do estado de Roraima, constatou-se que a média da precipitação anual foi de 1.821,9 mm, sendo que 27% ocorrem entre os meses de outubro a abril, sendo considerado como o período com menor precipitação ou período seco (sete meses), enquanto que, o período com maior precipitação ou período chuvoso (cinco meses) se estende de maio a setembro com 73% do total de precipitação anual.

Das informações obtidas no período de coleta de dados (1991 a 2016) descartou-se algumas delas em função de estarem incompletas ou inconsistentes.

Número de partos por vaca

Das 1.128 vacas analisadas observou-se que ocorreram de um a nove partos por vaca, sendo queem 24,5% destas ocorreu apenas um parto; 20,0% tiveram dois partos; 20,7% com três partos e 13,8% com quatro partos, ou seja, em 79% das vacas apresentaram até, no máximo, quatro partos durante sua vida útil. Esta informação deve ser analisada juntamente com outros dados, como por exemplo, com o intervalo entre partos o que proporcionaria condições para se avaliar o número de bezerros nascidos durante a vida da vaca.

Nascimento e mortalidade de bezerros

Dos 3.290 bezerros nascidos 2.435 ocorreram durante o período seco (outubro a abril), ou seja, 74% nasceram durante os meses mais críticos do ano quando as pastagens estão em piores condições nutritivas. Desta forma, a vaca que precisa de melhor alimentação para produzir leite perde peso por estar em lactação e, como são animais com baixa produção de leite não oferecem em quantidade suficiente para suprir as necessidades dos bezerros. Por outro lado, bezerros nascidos no período seco, em geral, nascem com menor peso e, portanto, são mais susceptíveis a terem seu crescimento prejudicado.

Dos bezerros nascidos424 morreram durante o período de amamentação, ou seja, a mortalidade foi de 12,9% bastante elevada quando se considera que a mesma não deve ultrapassar a 5%. Do total de bezerros mortos 74% das ocorrências eram referentes aos animais nascidos durante o período seco.

Mortalidade de vacas em lactação

No período analisado observou-se 296 mortes de vacas em lactação das quais 238 ocorreram naquelas que tiveram parto no período seco correspondente a 80,4%. Ainda com relação as vacas que morreram durante a lactação em 27% dos casos eram vacas de primeira cria (primíparas), ou seja, eram novilhas que entraram em cio pela primeira vez com peso inferior a 300 kg e, provavelmente, com baixo escore corporal. Essa situação é encontrada em sistema de criação extensivo em pastagem nativa com monta natural o ano todo.

A análise conjunta dos dados sobre época de nascimento dos bezerros e a mortalidade de bezerros em aleitamento e de vacas em lactação indicam que a falta de manejo reprodutivo é um dos fatores que interferem no desempenho da pecuária em condições extensivas na savana de Roraima. Neste sentido, sugere-se que os criadores busquem alternativas para que os bezerros nasçam em períodos do ano quando ocorra melhor oferta de forragem para as vacas em lactação e para suas crias e/ou seja adotado práticas de suplementação alimentar para essas duas categorias.

Idade na apartação

Em geral considera-se que o bezerro com 6 a 8 meses esteja em condições de se alimentar plenamente na pastagem como fonte exclusiva de alimento. Nessa idade embora ainda esteja em fase de aleitamento, a quantidade de leite fornecido pela vaca contribui em pequena proporção no atendimento de sua exigência alimentar, mesmo porque, a produção de leite de vacas de corte e em sistemas de criação extensivo em pastagem nativa é insignificante. Entretanto, do ponto de vista reprodutivo, enquanto o bezerro continuar a mamar o mesmo estará estimulando a vaca a produzir leite e, permanecer em anestro pós-parto. Com a desmama ou na apartação a vaca voltaria a restabelecer sua atividade ovariana e voltar a entrar novamente em ciclo reprodutivo.

Nas duas propriedades acompanhadas por este trabalho apenas 1,1% dos bezerros foram apartados com idade inferior a cinco meses. Entre seis a sete meses ocorreram 19,9% das apartações, entretanto, 77% destas ocorreram entre oito a 13 meses e, em 5,2% dos casos a apartação ocorreu com animais com idade superior a 14 meses. Tendo em vista que o critério adotado pelo criador era subjetivo, pois enquanto o bezerro permanecesse com pouco peso e com baixo escore corporal o mesmo deveria permanecer com sua mãe, embora, sob o ponto de vista técnico, não havia justificativa para que o mesmo permanecesse em ‘aleitamento’. A elevada idade na apartação é reflexo de diversos fatores, tais como, época de nascimento, condição corporal da vaca; baixa produção de leite; alimentação insuficiente para atender suas necessidades e a baixa qualidade genética dos bovinos utilizados. A elevada idade na apartação contribui para aumentar o anestro pós-parto e, portanto, aumentar o intervalo entre partos e diminuir a taxa de natalidade.

O ideal seria o criador desmamar os bezerros com quatro a oito meses de idade, entretanto, precisará adotar alguma estratégia, como por exemplo, utilizar pastagem de melhor qualidade e/ou realizar suplementação que supra as necessidades diárias daquela categoria animal.

Intervalo entre partos (IEP)

O IEP refere-se ao período entre os partos correspondendo ao tempo em que a vaca permanece sem entrar em cio após o parto (anestro pós-parto) e o tempo da próxima gestação (280 a 290 dias). Considerando-se que a vaca entre em cio e esteja novamente em gestação 60 a 90 dias após o parto e mais 285 dias de gestação, o IEP estaria em torno de 12 meses, ou seja, teoricamente, a vaca poderá ter uma cria por ano. Essa condição é possível quando se oferece condições adequadas de manejo e alimentação.

Analisando-se o IEP para as duas propriedades observou-se que em 73,4% das vacas esse intervalo variou de 20,1 a 36 meses. Considerando-se que a média seja de 28 meses ter-se-á o IEP médio de 2,3 anos. Em 18,2% dos casos o IEP foi inferior a 20 meses e, em 8,4% superior a 36,1 meses.

Diversos fatores contribuem para o elevado IEP, entretanto, em grande parte a baixa qualidade genética dos bovinos utilizados (vacas e reprodutores), a baixa oferta de nutrientes notadamente durante o período seco e a falta de manejo reprodutivo são os principais responsáveis por essa condição.

Para exemplificar a importância da observação do IEP sobre o desempenho de vacas apresenta-se duas situações distintas. No primeiro caso admitindo-se que a novilha tenha a primeira cria aos dois anos (24 meses) e tenha uma cria por ano, ao final de onze anos a vaca teria produzido nove crias. No segundo caso, simulando a condição encontrada neste trabalho, a novilha tendo a primeira cria aos quatro anos (48 meses) e tenha uma cria a cada 2,3 anos (IEP) ao final de 13 anos a vaca teria produzido apenas quatro crias. Portanto, pode-se concluir que para as condições de criação extensiva o manejo reprodutivo é fundamental para aumentar os índices reprodutivos, visto que, o objetivo principal da pecuária de corte na savana de Roraima é a fase de cria, ou seja, produzir bezerro.

Idade à primeira cria

Pelas informações obtidas nas duas propriedades observou-se que apenas 8% das vacas tiveram a primeira cria com até quatro anos de idade; em 67% dos casos ocorreu entre 4,1 a 6,0 anos e, em 25% dos casos a primeira cria ocorreu em vacas com mais de 6,1 anos. Considerando-se como índice desejável que a vaca tenha a primeira cria com 24 meses, pelas condições encontradas neste trabalho observa-se que a alimentação insuficiente, a baixa qualidade genética dos animais e a falta de manejo reprodutivo contribuem, em grande parte, para a elevada idade à primeira cria. A primeira opção para interferir nesta situação seria o descarte de femeas com base em informações sobre idade, tamanho, condição corporal e histórico reprodutivo.

Constatações

Pela análise dos dados referentes a fase de cria de bovinos de corte na savana de Roraima faz-se as seguintes constatações:

Durante a fase reprodutiva as 1.128 vacas acompanhadas tiveram de um a nove partos com a maior concentração (79%) dos casos ocorrendo de um a quatro partos por vaca;

Foram registrados o nascimento de 3.290 bezerros dos quais 74% nasceram durante os meses com menor precipitação (período seco) que se estende de outubro a abril;

Registrou-se ainda 12,9% de mortalidade de bezerros ainda na fase de amamentação, das quais 74% ocorrerem naqueles nascidos nos meses do período seco. Para bovinos de corte espera-se mortalidade de animais até um ano de, no máximo, 5%;

296 vacas morreram durante a fase de lactação sendo que 80,4% das ocorrências foram dentre aquelas que tiveram parto nos meses do período seco;

Do total de vacas mortas na lactação em 27% dos casos eram animais primíparas (primeira cria), provavelmente, eram novilhas que ao serem cobertas pela primeira vez estavam com peso inferior a 300 kg e com baixo escore corporal;

Quanto a idade na apartação, em 77% dos casos os bezerros estavam com idade variando de oito a treze meses, quando o desejável seria desmamá-los com quatro a seis meses;

O intervalo entre partos para 73,4% dos casos analisados variou de 20,1 a 36 meses com média de 28 meses (2,3 anos), valores estes superiores aos 12 a 15 meses esperados para sistemas de produção de gado de corte. O longo intervalo entre partos está diretamente relacionado com a menor taxa de natalidade e do menor número bezerros nascidos durante a vida útil da vaca;

Em 67% das vacas a idade a primeira cria variava de 4,1 a 6,0 anos evidenciando o lento crescimento das femeas;

Conclusão

Com base nas constatações obtidas observa-se que:

O sistema de criação extensiva na savana de Roraima apresenta grandes limitações sob o ponto de vista zootécnico em função do baixo valor qualiquantitativo da pastagem nativa, agravada pelo período de sete meses em que ocorre apenas 27% do total de precipitação pluviométrica anual;

Os bovinos utilizados são de baixo padrão racial com interferência negativa sobre o desempenho produtivo e reprodutivo;

Apesar do proprietário realizar anotações, os critérios adotados para seleção e descarte de animais é meramente subjetivo com reflexo direto sobre a produtividade do rebanho;

Como recomendação sugere-se a elaboração de sistema de produção para bovinos de corte na região levando-se em consideração medidas de manejo (estação de monta, desmama antecipada, descarte de matrizes, seleção de reprodutores, etc.) e que possua metas mensuráveis sob o ponto de vista técnico e econômico. Tal sistema deverá ser validado e ajustado em função das peculiaridades encontradas.

Referências

BENDAHAN, A. B. Sistema de integração lavoura-pecuária-floresta (SILPF) no Estado de Roraima, Amazônia brasileira. 2015. 421 f. Tese (Doutorado AgroParisTech) – L’Institut des Sciences et Industries du Vivant et de l’Environnement.

BRAGA, R.M. A Agricultura e a Pecuária na História de Roraima. 1ª. Ed. São Paulo: PoloBooks, 2016. V. 01. 494p.

EMBRATER/EMBRAPA. Sistema de produção de gado de corte – Território Federal de Roraima. Boa Vista: EMBRATER/EMBRAPA, 1976. 24p. (EMBRATER/EMBRAPA. Sistema de Produção. Boletim, 57).

NOSKOSKI, C.; BRANDT, S.A.; SCHWINDT, M.H.; AAD NETO, A.; REZENDE, A.M.; LADEIRA, H.H.; HARTZ, J.L. Pré-Estudo de Viabilidade de Abate-Frigorificação de Bovinos e Suínos no Território Federal de Roraima. Boa Vista, ACAR-Roraima. 1975, 33p.