O afeto parental efetivo como meio de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. ¹

 

Fuad Alexandre Silva ²

Vitória Frota ²

 

Sumário: 1 Introdução; 2 A natureza do afeto nas relações jurídicas familiares; 3 A falta de afeto nas relações familiares frentes a responsabilidade civil; 3.1 Da Responsabilidade Civil; 3.2 Responsabilidade civil nas relações familiares e o abandono afetivo; 4 A falta de afeto compromete a concretização de direitos inerentes à criança; 5 Conclusão; 6 Referências

 

RESUMO

O presente artigo científico busca analisar a questão do afeto e a possível responsabilização de familiares pela suposta afronta do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual a criança envolvida figura como titular. Para a possível resposta dessas indagações realizadas no trabalho são usadas doutrinas, a legislação, casos jurisprudenciais e a fundamentação base que é a Constituição Federal, confrontando estes para assim ter um resultado que realmente reflita de forma positiva. Assim constata-se que o suporte devido pelos pais deve ir além do aspecto econômico, sendo um direito um meio possível para a responsabilização de familiares que não dão o devido afeto a criança entendendo que é fundamental o aspecto afetivo para a criança. A conclusão é consoante com o propósito constitucional de proteção a dignidade da criança.

 

Palavras-chave: Afeto; Dignidade da Pessoa Humana; Responsabilização.

 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................02

2 A NATUREZA DO AFETO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS FAMILIARES........................................................................................................................03

3 A FALTA DE AFETO NAS RELAÇÕES FAMILIARES FRENTES A RESPONSABILIDADE CIVIL............................................................................................05

3.1 Da responsabilidade civil ................................................................................................05

3.2 Responsabilidade civil nas relações familiares e o abandono afetivo......................................................................................................................................07

A FALTA DE AFETO COMPROMETE A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS INERENTES À CRIANÇA...................................................................................................09

5 CONCLUSÃO ....................................................................................................................11

6 REFERÊNCIAS..................................................................................................................13

 

1 INTRODUÇÃO

 

Sabe-se que as relações sociais são mutáveis, isto é, estão em constante transformação. Para que as regras que regem a vida em comunidade tenham efetividade estas devem acompanhar as transições pelas quais a coletividade passa, uma vez que, as normas não estando em concordância com a realidade fática perdem o sentido ou significado, padecendo de efetividade. Conforme a lógica lasseleana, deve-se adequar o texto ao contexto, já que a dissonância destes torna aquele uma mera folha de papel.

A família é considerada a base da sociedade, sendo protegida pelo Estado, conforme consta em nossa Carta Maior. Sendo ela a primeira e mais antigas das instituições passou por diversas transformações, acompanhando as mutações sociais no decorrer do tempo. Tais ocorrências implicam também em constantes mudanças e reformulações em nosso ordenamento jurídico de modo a adequá-lo à concepção contemporânea de família. Neste recorte da mutabilidade da família se insere a discussão a respeito do abandono afetivo, que corresponde a ausência ou omissão afetiva dos pais no relacionamento e convívio com os filhos, não sendo necessariamente relacionado a obrigações financeiras.

A problemática deste artigo se constrói na discussão da responsabilidade civil frente às relações familiares questionando-se a respeito da possível exigibilidade desse afeto através do direito. Assim, surge o embate se o direito possui tamanha autonomia para interferir na vida privada para responsabilizar familiares em razão da ausência de convívio, para desta forma assegurar a efetivação de direitos fundamentais inerentes tanto à criança quanto ao adolescente. A resposta funda-se na concepção que não só é devido pelos familiares o suporte econômico; que esta responsabilização é ampla e inclusive afetiva.

O trabalho possui como objetivo geral a análise do afeto como meio de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, busca ao longo da discussão tratar de pontos específicos tais como: identificar a natureza do afeto nas relações jurídicas familiares; caracterizar a falta de afeto nas relações familiares frente à responsabilidade civil; e, por fim, demonstrar como a falta de afeto compromete a concretização de direitos inerentes à criança.

Sendo a discussão de extrema relevância, no âmbito social não há porque ser diferente. Essa relevância social se caracteriza pelo tema tratado estar intrinsecamente relacionado às mutações pelas quais a coletividade passa, que implica, consequente, na transformação da norma para esta se adeque ao contexto e não padeça de efetividade. A judicialização dos conflitos em decorrência do inadimplemento de obrigações visando a responsabilização e reparação de danos sofridos é algo que faz parte do cotidiano da vida em sociedade.

No ramo acadêmico, o tema se mostra de grande importância por possibilitar maior compreensão acerca do direito de família e a nova forma de pensa-lo a partir do conceito contemporâneo de família que admite o afeto como o valor jurídico a ser usado para a solução de conflitos. Além disso, aprofunda-se o conhecimento a respeito dos direitos das crianças e adolescentes e os deveres que os pais possuem para com estas.

Na área de relevância individual o tema em questão ao ser discutido contribui para um entendimento melhor a respeito da família e a questão do afeto. Desta forma, na vida prática é importante a noção do assunto que este trabalho possibilita, pois garante um melhor desempenho profissional e uma noção do assunto mais adequada, zelando pela boa concepção e respeitando a intenção do legislador originário na Carta Maior.

Por fim, o método de pesquisa utilizado nesse artigo é de caráter exploratório e documental visando aprofundar os conhecimentos acerca do tema abordado, utilizando-se de pesquisa bibliográfica através de livros, artigos científicos, documentos e também documentos de caráter constitucional.

 

2 A NATUREZA DO AFETO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS FAMILIARES

 

A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família. A ideia de afeto não diz respeito apenas aos membros que compõem uma única família, mas entre as famílias entre si, compondo uma grande rede de relações sociais complexas. Ainda que não expressamente disposto, a Constituição englobou o afeto em seu âmbito de proteção. Como cita Maria Berenice Dias (2015), um claro exemplo que comprova tal fato é o reconhecimento da união estável como unidade familiar que concede a ela tutela jurídica, significando que une duas pessoas adquiriu reconhecimento no ordenamento jurídico.

O afeto não é fruto da biologia, uma vez que os laços afetivos derivam do convívio familiar e não do sangue. Com as transformações nas relações sociais a família adquire nova configuração e sentido, voltada para realizar os interesses afetivos e existenciais de seus integrantes. Trata-se da concepção eudemonista de família que se volta para busca da felicidade, intrinsecamente relacionada a ideia de afeto. Dessa forma instala-se uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto (DIAS, 2015). Segue jurisprudência nesse sentido:

 

A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes. Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às manifestações de intolerância ou de repulsa que possam porventura se revelar em face das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e apaziguamento de possíveis espíritos em conflito. A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar em ideais de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em tempos idos, quando emprestou normatividade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o instituto da união estável. A temática ora em julgamento igualmente assenta sua premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso (STJ - REsp: 1026981 RJ 2008/0025171-7, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 04/02/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/02/2010).

 

É de suma importância mencionar que o termo afeto utilizado no direito de família diz respeito ao convívio e interação entre pessoas e não necessariamente ao amor, que corresponde apenas uma de suas facetas (TARTUCE, 2016). A respeito do tema o STJ dispõe:

 

Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do dispositivo citado: “(...) além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência (...)”. Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever (STJ. REsp: 1.159.242 - SP (2009/0193701-9). Relator: Ministra  NANCY ANDRIGHI. Data do Julgamento: 24/04/2012. T3 – TERCEIRA TURMA. Data de publicação: DJe 10/05/2012).

 

 

 Além disso, entende-se que este princípio tem fundamento constitucional na dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e na igualdade entre filhos, que correspondem aos arts. 1º, III; 3º, I; 5º caput. e 227 § 6º da Carta Magna (BRASIL, 1988).

 

3 A FALTA DE AFETO NAS RELAÇÕES FAMILIARES FRENTES A RESPONSABILIDADE CIVIL

 

3.1 Da responsabilidade civil

 

Segundo Maria Helena Diniz (2014) pode-se definir a responsabilidade civil como

a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal. Dessa forma a ideia central de responsabilidade civil consiste na obrigação legal que cada um tem de reparar os prejuízos decorrentes de seus atos em face de terceiros, isto é, de assumir as consequências jurídicas de seus atos.

Daí surge o dever de indenizar, uma vez que o Código Civil em seu art. 297 determina que aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo, conforme já mencionado e que tem por finalidade tornar o incólume o lesado, isto é, colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do fato danoso. Trata-se de uma obrigação de indenizar legal, ou seja, é a própria lei que determina quando ocorre, além de definir seu conteúdo (CAVALIERI FILHO, 2014). Isto se dá em razão de no fato jurídico ilícito o resultado é o surgimento de uma obrigação que independe da vontade do agente.

O dano causado quebra o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre o agente e a vítima. Surge, portanto, uma necessidade de restabelecimento dessa situação de equilíbrio anteriormente existente, no intuito de recolar o prejudicado no statu quo ante, ou seja, voltar ao estado anterior da lesão. De modo que esse retorno a situação de estabilidade deve ser feito por meio de uma indenização proporcional ao dano causado, por essa razão impera o princípio da reparação integral, com escopo de se chegar a mais completa reparação (CAVALIERI FILHO, 2014).

Segundo a doutrina majoritária, três são os pressupostos da responsabilidade civil. O primeiro deles corresponde a existência de uma ação comissiva ou omissiva que se qualifique como ato lícito ou ilícito, uma vez que ao lado da culpa existe o risco como fundamento da responsabilidade. Dessa forma, existirá ato ilícito a ação contrariar dever legal previsto no ordenamento jurídico ou se não cumprir com obrigação assumida, configurando consecutivamente responsabilidade legal e contratual. Contudo, pode ser que o deve de reparar recaia sobre aquele que age de acordo com a lei, caso em que se desvencilha a reparação do dano da ideia de culpa, fundando-a no risco (DINIZ, 2014).

Já o segundo é referente a ocorrência de um dano moral e/ou patrimonial ocorrido à vítima por ato comissivo ou omissivo do agente ou de terceiro por quem o imputado responde, ou por um fato de animal ou coisa a ele vinculada. O terceiro consiste no nexo de causalidade entre a ação e o dano sofrido, sem esse vínculo não existe responsabilidade civil. Sendo assim, é necessário que não estejam presentes no caso concreto as causas de excludentes de responsabilidade (DINIZ, 2014).

Em relação aos tipos de dano, em perspectiva tradicional podemos mencionar: patrimonial ou material que está relacionado a lesão de um atributo econômico-financeiro da vítima, consistindo na perda ou deterioração, total ou parcial dos bens materiais do indivíduo, sendo suscetíveis a avaliação pecuniária e indenização pelo responsável; e extrapatrimonial ou moral que corresponde a lesão ligada a uma visão de dignidade da pessoa humana, sem ligação com um bem material específico. (PEREIRA. 2012).

O dano moral em sentido amplo é a violação de algum direito ou atributo da personalidade, sendo os direitos de personalidade inerentes à condição humana, como exemplo a opção sexual. Em relação ao sofrimento não há necessidade prova deste para que se configure o dano moral e podem ser violados em diferentes graus, abrangendo todas as ofensas à pessoa, considerada esta tanto em sua dimensão individual quanto social ainda que sua dignidade não seja violada. (TARTUCE, 2016).

Ainda que com várias objeções, admite-se o ressarcimento do dano moral, mesmo quando não houver repercussão econômica a partir de uma leitura sistemática das normas quem compõem nosso ordenamento. Destarte, caso o interesse moral, ao lado do econômico, justifica a ação, esse interesse será passível de reparação, ainda que o bem moral não seja indenizável, ou seja, insuscetível a aferição econômica. O que ocorre é uma tentativa de amenizar os danos e males causados à vítima pelos benefícios que dinheiro poderá proporcionar. A fixação do valor a ser pago é atribuição do magistrado de acordo com o estabelecido em lei e nos casos não legalmente previstos dependerá de arbitramento que consiste em exame pericial com finalidade de determinar o valor do bem ou da obrigação a ele ligado (DINIZ, 2014).

De acordo com a qualidade da violação classifica-se a responsabilidade civil em: contratual, que corresponde a preexistência de um vínculo obrigacional e o dever de indenizar advém do inadimplemento desta obrigação; e extracontratual, em que o dever surge em razão da transgressão de um dever jurídico imposto pela lei. Em ambos os casos existe violação de um dever jurídico preexistente, todavia a diferença reside na origem dessa obrigação (CAVALIERI FILHO, 2014).

O Código Civil em seu art. 186 determina que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (BRASIL, 2002). Tem-se aí a culpa em lato sensu como fundamento da responsabilidade, trata-se da concepção genérica, em que a vítima somente obterá a reparação do dano na presença do dolo ou da culpa estrita. Não obstante, nem sempre essa comprovação é necessária, por essa razão surge a responsabilidade objetiva que se baseia na teoria do risco. Ou seja, não é necessária a culpa para que se tenha o dever de indenizar, mas este depende da relação de causalidade e mais uma vez, caso não estejam presentes as excludentes. (TARTUCE, 2015).

As causas de exclusão do nexo causal ou isenção de responsabilidade são: fato exclusivo da vítima ou de terceiros, caso fortuito e força maior (CAVALIERI FILHO, 2014). Referem-se aos casos de impossibilidade superveniente do cumprimento da obrigação não imputáveis ao agente. Isto ocorre quando pessoas que estavam atreladas a determinados deveres jurídicos encontram-se impossibilitadas de cumprir a obrigação a qual estavam atreladas ou na verdade o dano decorre de outra causa.

 

3.2 Responsabilidade civil nas relações familiares e o abandono afetivo

 

A maioria das concepções relativas a teoria geral da responsabilidade também se aplica a dimensão do direito de família. No entanto, em razão da própria natureza das relações familiares existem determinadas peculiaridades que impedem a aplicação simples e direta das normas de responsabilidade civil.

De acordo com Maria Berenice Dias (2015), com os desdobramentos dos direitos de personalidade aumentam-se as hipóteses de violação desses direitos, implicando no aumento de possibilidades de reparação de danos. Esta tendência acabou se alastrando às relações familiares na tentativa de migrar a responsabilidade decorrente da manifestação de vontade para o âmbito dos vínculos afetivos.

Tanto a Constituição Federal quanto o ECA adotam a doutrina da proteção integral, no sentido de que as crianças e adolescentes devem ser colocados a salvo de qualquer forma de negligência. São considerados sujeitos de direitos, sendo assegurado o gozo de todos os direitos e prerrogativas do ser enquanto humano para garantir seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. A CF (BRASIL, 1988) aponta quem são os responsáveis pela efetivação desses direitos, dentre eles a família. O ECA por sua vez identifica como direito fundamental das crianças e adolescentes o desenvolvimento sadio e harmonioso, bem como o direito de serem criados e educados no seio de sua família (BRASIL, 1990).

Conforme já anteriormente mencionado o atual conceito de família se volta para o pleno desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, dando aos pais o dever de criar e educar os filhos sem lhes omitir o afeto necessário para sua formação, já que é deles a competência de concretização dos direitos fundamentais dos menores. Portanto a convivência dos filhos com os pais não é direito e sim um dever, ou seja, não existe direito de visita-lo e sim obrigação de com ele conviver, já que o distanciamento/abandono filio-parental pode acarretar sequelas profundas e irreparáveis comprometendo seu desenvolvimento.

A omissão dos pais em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar produz danos emocionais merecedores de reparação. Sendo assim é reconhecida a responsabilidade indenizatória por dano afetivo no o art. 229 da Texto Maior (BRASIL, 1988) que determina que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Bem como nos arts. 186 e 1.634 do Código Civil que estabelecem, consecutivamente que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito e que compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos , dentre outras funções a de dirigir-lhes a criação e a educação

Pode-se dizer, conforme o exposto no item anterior que se trata de responsabilidade objetiva, assim o agente deve reparar o prejuízo causado, mesmo que isento de culpa, pois sua responsabilidade é imposta por lei, independente de culpa, fixando-se na causalidade entre o dano e a conduta do agente. Tendo os pais o dever de manter o convívio familiar, sendo responsáveis pela criação e educação dos filhos no intuito de possibilitar o pleno desenvolvimento de sua personalidade, configura-se dano moral, já que este consiste na violação de algum direito ou atributo da personalidade. 

Em se tratando da reparação do dano por se tratar de um dano extrapatrimonial, isto é, de caráter moral, sua quantificação é impossível. Por essa razão o arbitramento judicial é o único meio apropriado. Para que o juiz chegue a uma decisão razoável é necessário que a conclusão nela estabelecida esteja em concordância com os motivos que a determinaram, que os meios sejam compatíveis com os fins almejados e que a sansão seja proporcional ao dano. Ou seja, o juiz ao decidir arbitrariamente deve determinar uma quantia que seja compatível com a reprovabilidade da conduta ilícita, a intensidade e duração do sofrimento passado pela vítima, a capacidade econômica do autor da conduta, as condições sociais do ofendido, dentre outras circunstancias se necessário (CAVALIERI FILHO, 2014).

 

A FALTA DE AFETO COMPROMETE A CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS INERENTES À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE 

 

Em 1990 entra em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente que determina em seu art. 3º que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (BRASIL, 1990). Além disso seu art. 100, inciso I estabelece a condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, sendo titulares dos direitos previstos nesta e em outras leis, bem como na Constituição Federal (BRASIL 1990). A Carta Maior em seu art art. 5º caput e seu inciso I garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, sendo homens e mulheres considerados iguais em direitos e obrigações (BRASIL, 1998).

Ademais a Organização Nacional das Nações Unidas (ONU) em 1959 proferiu a Declaração Universal do Direito das Crianças, posteriormente ratificada pelo governo brasileiro, que consagrou em âmbito internacional os direitos da criança, deixando esta de ser apenas um objeto de proteção, e em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana passa a ser um membro individualizado na sociedade, um sujeito de direitos tal como qualquer outro individuo (AMARAL JÚNIOR; JUBILUT, 2009).

Percebe-se, dessa forma, a grande preocupação não só do ordenamento jurídico nacional em preservar a figura das crianças e adolescentes visando sua valorização enquanto seres humanos e preservação de sua dignidade, especialmente por se tratar de um grupo mais vulnerável. O Estatuto da Criança e do Adolescente torna-se ferramenta de proteção dos menores, estabelecendo uma serie de direitos e deveres no intuito de garantir o pleno desenvolvimento e formação dos menores para que estes atinjam a vida adulta de maneira saudável não só fisicamente como psiquicamente.

O novo sentido de família compreendido no âmbito jurídico, que passa a dar importância à preservação dos vínculos familiares, ao pleno desenvolvimento da personalidade daqueles que a compõem no intuito de formar indivíduos íntegros e aptos a conviver em uma sociedade igualitária e ao exercício igualitário e conjunto do poder familiar (DIAS, 2015), complementa tal ideia na medida que valoriza o afeto, nesse sentido compreendido como convívio e interação dos filhos com os pais já que estes são responsáveis pela criação e educação daqueles. Nesta lógica o ECA determina que:

 

Art. 19: É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.  Art. 21: O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência. Art. 22: Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. PU:  A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei (BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990).

 

Além disso o art. 227 da Constituição Federal atribui a família assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988). Portanto a participação ativa dos pais no processo de formação dos filhos é um dever atribuído pela legislação brasileira exatamente para garantir que estes venham a se desenvolver e atingir a vida adulta de forma sadia bem como a preservação de sua dignidade.

A figura do pai é responsável pela primeira ruptura do elo mãe-filho e introdução deste na sociedade permeada por regras, poder, limites e ordem, sendo assim, de acordo com as palavras de Maria Berenice Dias (2015), a ausência de afeto, isto é, a falta de convívio, atenção e cuidado dos pais compromete o processo de inserção dos menores nessa realidade externa e consequentemente prejudica a compreensão e percepção que os filhos tem a respeito dela. A privação da figura paterna desestrutura e desestabiliza os filhos deixando-os alheios, podendo vir a se tornarem pessoas inseguras, traumatizadas e infelizes, inclusive comprometendo que venham a assumir um projeto de vida.

A criança depende do amor e afeto dos pais (ou responsáveis) para se desenvolver saudavelmente, os mesmos são espelhos para a criança, e quando ela se vê sem a convivência com um deles, se sente perdida. Somente com o apoio, intervenção e amor dos pais, a criança pode se tornar um adulto capaz de também cumprir com suas obrigações de forma natural. O sofrimento da criança abandonada pode ocasionar deficiências no seu comportamento mental e social para o resto da vida, a criança pode se isolar do convívio de outras pessoas, apresentar problemas escolares, depressão, tristeza, baixa autoestima, além de problemas de saúde (ABANDONO..., 2015). Nesse sentido:

 

Waldow alerta para atitudes de não-cuidado ou ser des-cuidado em situações de dependência e carência que desenvolvem sentimentos, tais como, de se sentir impotente, ter perdas e ser traído por aqueles que acreditava que iriam cuidá-lo. Situações graves de desatenção e de não-cuidado são relatadas como sentimentos de alienação e perda de identidade. Referindo-se às relações humanas vinculadas à enfermagem a autora destaca os sentimentos de desvalorização como pessoa e a vulnerabilidade. 'Essa experiência torna-se uma cicatriz que, embora possa ser esquecida, permanece latente na memória'. O cuidado dentro do contexto da convivência familiar leva à releitura de toda a proposta constitucional e legal relativa à prioridade constitucional para a convivência familiar (PEREIRA; OLIVEIRA, 2008, p. 311 e 312).

 

O abandono afetivo compromete em diversas medidas a dignidade das crianças bem como uma série de outros direitos, já que são eles, os pais, os responsáveis pela criação dos filhos e efetivação dos vários outros direitos a ele atribuídos.

 

5 CONCLUSÃO

 

Seguindo a ideia de Dias (2015) e Tartuce (2016), já anteriormente mencionadas, o afeto no âmbito do Direito em geral vai além do sentimento, e está diretamente relacionado à responsabilidade e ao cuidado. Este último, em especial, constitui um fator indispensável a formação da personalidade da criança e adolescente em desenvolvimento. Por essa razão, ao estabelecer a afetividade como cuidado torna-se possível atribuir uma obrigação jurídica aos pais e constituir fonte de responsabilidade civil, sendo possível a aplicação de sansões quando necessário.

Os pais assumem encargos com relação à sua prole que vão além das obrigações básicas, como alimentação e abrigo, por exemplo. Contudo, tais obrigações mostram-se igualmente importantes para um processo de formação adequado do menor. O afeto enquanto cuidado e zelo é um fator essencial à criação e formação de adulto que tenha integridade física e psicológica e tenha capacidade de viver em sociedade.

Não se trata de responsabilização em razão da falta de amor, que é inexigível, mas, a verificação de um cumprimento ineficiente ou descumprimento da obrigação legal que os pais têm de cuidar dos filhos, de acordo com o disposto na Constituição Federal, no Código Civil e no ECA, conforme já exposto.

Ainda que determinadas situações atreladas à realidade fática impeçam o pleno auxilio e presença dos pais para com seus filhos, deve-se ter em mente um núcleo mínimo blindado de cuidados parentais com o menor, de modo a garantir condições apropriadas para uma formação psicológica adequada de modo a efetivar os direitos fundamentais inerentes à figura da criança e do adolescente.

Entende-se ser possível a compensação por danos morais causados ao abandonado em razão da possibilidade de enquadramento da conduta ao tipificado no art. 186 do CC/2002, que determina que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. O descumprimento voluntário do dever de cuidar é, portanto, ilícito civil. Para que haja a responsabilização civil dos pais é necessário que se explicite a relação de causalidade entre o dano sofrido em razão da omissão de cuidado.

O art. 927 do referido Código determina que aquele que, por ato, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Ademais, a indenização mede-se pela extensão do dano, de acordo com o disposto no 994. Sem contar que aquele que deixar o filho em abandono perderá por ato judicial o poder familiar, segundo o art. 1638, II do CC/2002.

É importante ressaltar que o ECA confere à criança e ao adolescente o gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. Sendo assim, uma vez deixando o responsável de cumprir com seu dever de afeto, isto é, de estar presente, cuidar e zelar, ele compromete a integridade física, moral, intelectual e psicológica do filho, atentando contra sua dignidade razão esta de configurar ilícito civil e, portanto, compensação pecuniária dos danos morais e materiais causados. Ainda que indenização não tenha o condão de diminuir os traumas sofridos, ela propicia uma sensação de justiça àqueles que sofreram com a falta de assistência dos pais.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABANDONO, afetivo e suas graves consequências. Movimento Abandono Afetivo: 23/06/2015. Acesso em: maio de 2018. Disponível em: < http://abandonoafetivo.org/abandono-afetivo-e-suas-graves-consequencias/ >

 

AMARAL JÚNIOR, Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra. O STF e o direito internacional dos direitos humanos. [S.l: s.n.], 2009.

 

BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

______. Constituição Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988

 

______. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002.

 

______. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1026981 RJ (2008/0025171-7). Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI. Data de Julgamento: 04/02/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/02/2010.

 

______. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1.159.242 - SP (2009/0193701-9). Relator: Ministra  NANCY ANDRIGHI. Data do Julgamento: 24/04/2012. T3 – TERCEIRA TURMA. Data de publicação: DJe 10/05/2012.

                                                                                                               

CARVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014

 

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9 ed. rev. atual e apl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015

 

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