ANÁLISE DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Onde tudo começou:

Juntos na tarde dourada
Suavemente a deslizar,
Nossos remos, sem destreza,
Dois bracinhos a manejar,
Pequeninas mãos que fingem
Nossa direção guiar. [...]

A importância de conhecermos o mínimo que seja sobre a vida do autor já é o suficiente para sabermos, neste caso, um pouco sobre como surgiu a obra. Alice no país das maravilhas não nasceu como obra literária e sim como narrativa de forma oral. Charles Lutwidge Dodgson, Lewis Carroll, nasceu em 1832, na Inglaterra, foi professor de matemática no Christ Church College, em Oxford, além de pioneiro na fotografia, aclamado como o maior fotógrafo de crianças no período vitoriano. Uma incurável gagueira fez com que Dodgson abandonasse os preparativos para se tornar um padre, porém foi essa gagueira que o aproximou das crianças, pois ele se sentia mais confortável com elas. Sua musa inspiradora foi Alice Liddell, quarta filha do vice-reitor da Universidade de Oxford.
Durante uma travessia de barco com as irmãs Liddell, pelo Rio Tâmisa, Carroll resolveu contar-lhes uma história. A aventura era sobre uma menina, a jovem Alice, que após ter seguido um coelho apressado, caiu em um profundo buraco e acabou descobrindo o estranho País das maravilhas. O autor foi criando personagens utilizando elementos do próprio cotidiano das crianças para fazer com que a história tornasse mais familiar a elas. Por exemplo, além da própria Alice, temos o Rato que, provavelmente, foi baseado numa governanta da casa das irmãs Liddell; o Dodô é uma caricatura do autor, por ser gago pronunciava o seu nome (Do...do...Dodgson); a Arara é a personificação da irmã Loriny Liddell; o Pato é uma caricatura do reverendo Robinson Duckworth, amigo do autor que esteve presente na viagem da travessia do rio; a Aguieta ? reflexão da irmã Edith Liddell; o Lagarto pode ser uma brincadeira com o nome do estadista britânico Benjamin Disraeli; o Gato de Cheshire ? nome obtido da expressão idiomática da língua inglesa sorrir como um gato de Cheshire; o Chapeleiro maluco e a Lebre de Março são figuras retiradas de expressões correntes no período vitoriano da língua inglesa louco como uma Lebre de Março ou louco como um chapeleiro, devido ao vapor de mercúrio usado na fabricação de feltro que causa transtornos psicóticos; o Chapeleiro maluco pode ainda ser uma referência a Teófilo Carter, um conhecido comerciante de móveis em Oxford que usava uma cartola na parte de trás da cabeça; o Arganaz conta uma história de três irmãs, Elsie, Lacie e Tillie. Estas são as irmãs Liddell. Elsie é LC (Lorina Charlotte), Tillie é Edith (seu apelido de família é Matilda), e Lacie é um anagrama de Alice; a Rainha de copas é talvez a caricatura da mãe das irmãs Liddell, pois na época o autor não diria que era a própria Rainha da Inglaterra, Vitória; o Rei de Copas, pai das irmãs; o Grifo é o brasão de armas do Trinity College, em Oxford; a Tartaruga Fingida, referência ao crítico de arte John Ruskin que ia uma vez por semana a casa de Liddell ensinar desenho e pintura a óleo às irmãs; temos ainda o Coelho Branco, a Lagarta, a Duquesa e o Valete de Copas.
Alice gostou tanto da história que pediu a Carroll que a escrevesse. Nessa mesma noite Lewis escreveu toda a história tal como havia contado à Alice e às suas irmãs. Inicialmente, esse manuscrito levou o nome de Alice?s Adventures Underground ? As aventuras de Alice no subsolo. Posteriormente, dois anos mais tarde, 1864, ao reler o manuscrito e acrescentar alguns personagens, é que se originou Alice no país das maravilhas, que teve sua primeira edição publicada em 1865.

Alice e o período Vitoriano

Este capítulo foi desenvolvido a partir de uma leitura do Artigo "Alice no País das Maravilhas: Uma crítica à Inglaterra Vitoriana", de Bruna Perrella Brito.
O que torna a história de Alice complicada é que se trata de um sonho surrealista escrito para leitores ingleses do século XIX, cheio de trocadilhos, sátiras, charadas, que para serem compreendidos ou interpretados, se faz necessário uma volta ao tempo.
O Período Vitoriano, no qual está inserido o autor, foi um período de grandes avanços e, com isso, surgiram vários problemas. A nova ciência atingia a religião com a teoria da evolução de Darwin, segundo a qual o homem evoluíra a partir de formas inferiores de vida. Marx com O Capital formulava uma nova concepção da sociedade e da distribuição da riqueza. Por conta da rainha Vitória foi também uma época em que a moral tinha um papel fundamental. Foi nesse período que a literatura passou a ter um papel moralizante e pedagógico. Os ingleses vitorianos

[...] quando precisavam de conselhos, recorriam à literatura; quando queriam distrair-se, recorriam à literatura; quando queriam até mesmo reforçar seu dogmatismo peculiar, também recorriam à literatura. Não há como pensar a Era Vitoriana sem a associarmos aos seus grandes escritos e escritores, sem vincularmos a esse período uma literatura de tão extremado valor estético e social. (MORAIS, 2004, p.36)

Sendo assim, ou os autores dedicavam as suas obras à literatura pedagógica ou então, escreviam textos que criticavam a sociedade com fundo moralizante.

"[...] as novels deviam entreter seus leitores e, ao mesmo tempo, oferecer ensinamentos de fundo moral". (ibidem, p.30).

Porém, essas críticas eram feitas por uma ironia refinada que pretendia fazer com que a sociedade resolvesse os problemas sociais que eram escondidos. A princípio a obra de Carroll não se enquadra em nenhum desses dois tipos de textos, pois o autor era considerado um escritor que escrevia apenas para o entretenimento das crianças. No entanto, se analisarmos a obra com olhos mais atentos, percebemos que Lewis Carroll usou da fantasia para fazer uma crítica à condição sufocada que o indivíduo da época estava enfrentando por conta de inúmeras exigências e regras sociais.
Temos como exemplo as

[...]grandes famílias em que o pai era uma espécie de chefe divino, e a mãe, uma criatura submissa[...] (BURGESS, 2006, p.215).

Resumindo, ainda que de forma grotesca, é possível dizer que a Era Vitoriana foi uma época que produziu literatura e escritores preocupados com a educação e com a moral da sociedade, reprimindo a vontade individual.

"[...] indo do comportamento das senhoritas diante da sociedade (postura, modo de falar, hora certa de ruborizar, etc), até aconselhamento quanto à saúde e educação dos filhos". (MORAIS, 2004, p.30).

Alice caminha ao oposto de todos esses comportamentos. Logo no começo do livro temos uma menina que estava enfadada, como podemos observar:

"Alice estava começando a se cansar de ficar sentada ao lado da irmã à beira do lago, sem ter nada para fazer: uma ou duas vezes ela tinha espiado no livro que a irmã estava lendo, mas o livro não tinha desenhos, nem diálogos". (CARROLL, 2010, p.13)

Como vimos, a literatura, com o seu papel meramente moralizante, para Alice é como o livro que a irmã está lendo, sem graça. A menina se questiona sobre a finalidade de um livro "sem desenhos ou diálogos". (ibidem, p.13). A opressão que a sociedade vitoriana causava era desagradável e aborrecia Alice.
A aventura começa quando aparece a fantasia, isto é, o Coelho Branco. Ele surge na história para mexer com a garota despertando a curiosidade dela, levando-a em busca do novo. Lewis Carroll usa o "País das maravilhas" como um escape da realidade. Alice deixa de ter aqueles comportamentos esperados pela sociedade da época e passa a transgredir as regras. A menina deixa o medo de lado e movida pela curiosidade entra na toca do Coelho.

[...] ardendo de curiosidade, correu pelo campo atrás dele, chegando bem a tempo de vê-lo sumir numa grande toca embaixo da cerca viva. No momento seguinte, lá entrou Alice atrás do coelho, sem sequer pensar como é que iria sair da toca de novo. (ibidem, p. 14).

Depois da longa queda Alice chega ao "Pais das maravilhas". Ela se depara com muitos obstáculos em seu caminho e esses são resolvidos de forma mágica. Esses elementos mágicos podem ser vistos como uma crítica ao pensamento lógico e racional que estavam presentes no século XIX. Uma vez em que no "País das maravilhas" a lógica e a razão perdem o sentido dando lugar ao elemento mágico como única opção para se resolver as coisas, Lewis Carroll contesta a moralidade religiosa e dogmática e a racionalidade que acreditava poder resolver todos os problemas da sociedade.
A narrativa, a princípio, nos apresenta um conjunto de peripécias onde a irracionalidade é dominante, porém, podemos ver em Alice no país das maravilhas um refúgio mágico onde a personagem principal pode se libertar da opressão, das regras, experimentando o diferente e o proibido sem se preocupar com as consequências, pois o medo não está presente no "País das maravilhas".
As críticas ao Período Vitoriano não param por aí, há ainda outra subversão significativa que é a figura da rainha. A Rainha Vitória era uma figura muito importante para o período, tanto social como economicamente. O regime político vigente na Inglaterra era a monarquia parlamentarista. O governo era exercido pelo Ministro de Estado, mais conhecido como primeiro ministro, e pelo parlamento. A Rainha, apesar da figura importante que era, tinha o poder político limitado, pois o parlamento tinha o poder de escolher o primeiro ministro e de tirá-lo do cargo também.
A Rainha de Copas no País das maravilhas, apesar de ser temida, não era levada tão a sério assim. As suas ordens nunca eram executadas. Podemos ver isso na voz do personagem Grifo.
O Grifo sentou-se e esfregou os olhos, depois ficou olhando para a Rainha até ela desaparecer de vista. Então deu uma risadinha. "Divertido!", disse o Grifo, meio para si mesmo, meio para Alice. "O que é divertido?", disse Alice. "Ora, ela", disse o Grifo. "É tudo fantasia dela. Eles nunca executam ninguém, sabe". (Ibidem, p.126-127).
Lewis Carroll não podia fazer essa crítica à Rainha abertamente naquela época, porém, como no "País das maravilhas" todos são loucos, Alice acaba enfrentando a Rainha, diminuindo sua autoridade.

"Não, não!", disse a Rainha. "A sentença primeiro... depois o veredicto." "Mas que tolice!", disse Alice em voz alta. "Que ideia de ter sentença primeiro!" "Cale-se!", disse a Rainha, vermelha de raiva. "Não me calo!", disse Alice. "Cortem a cabeça dela!", gritou a Rainha com toda a força dos pulmões. Ninguém se moveu. (Ibidem, p.167)

Nesse caso é quase que certo que enfrentar a Rainha é o mesmo que se opor ao sistema. Alice é a representação de uma vontade de afrontar o poder real e não ser punido.
Toda essa aventura fica no plano dos sonhos, "Oh, eu tive um sonho muito curioso!", disse Alice. (Ibidem, p.168). Porém, ao abrir os olhos percebe que a realidade continua monótona.


Outros temas presentes na obra

Os temas são as ideias fundamentais e frequentemente exploradas em uma obra literária. Em Alice no País das Maravilhas, podemos apontar a perda trágica e inevitável da inocência como um tema primordial da narrativa. Através do percurso de Alice no universo imaginário, no País das Maravilhas, notamos que a personagem passa por várias alterações físicas, que são absurdas, desde sua chegada lá. Ela sente-se desconfortável, pois nunca está no tamanho adequado. Isso pode ser considerado um símbolo do que ocorre no período da puberdade. Para ela, essas transformações são traumáticas, e enquanto ocorrem, geram nela sentimentos de tristeza, frustração e desconforto. Ela luta para manter um aspecto físico confortável, e pareça adequado. Todo esse processo de transformações físicas, acompanhadas de mal-estar e inconformismo pode representar a forma como uma criança deve se sentir na medida em que vai crescendo e mudando, ao longo da puberdade.
Em Alice no País das Maravilhas, Alice encontra uma série de quebra-cabeças que parecem impossíveis de serem montados. As incógnitas sem solução imitam a forma como a vida pode ser frustrante muitas vezes. Ela espera resolver as situações que vai encontrando ao longo do caminho, sob uma perspectiva lógica, mas repetidamente, ela frustra-se em suas tentativas. A cada momento, os quebra-cabeças e as charadas apresentadas a Alice parecem não ter propósito nem resposta. A personagem vai, aos poucos, percebendo que não há lógica nem sentido nas situações em que se encontra, mesmo que pareçam ser problemas, charadas e jogos que ela, normalmente, não teria dificuldade em resolver. Lewis Carroll procura mostrar como a vida pode ser frustrante e sem explicação, mesmo quando os problemas parecem simples de serem solucionados.
A morte aparece constantemente como uma ameaça na aventura de Alice. Embora as ameaças nunca se materializem, as situações sugerem que a morte está sempre ao redor e pode tornar-se realidade a qualquer instante. Isso se intensifica quando ela conhece a Rainha e a ouve sempre gritando que alguém seja decapitado.
Todos os objetos presentes na obra são símbolos, mas não representam coisa alguma particularmente. Os objetos têm significação individual e juntos convergem para um significado maior. O jardim pode ser a simbolização do Jardim do Éden, em sua beleza idílica, permeado de pureza e inocência, ao qual Alice não tem acesso imediatamente. Em um nível mais abstrato, talvez o jardim represente a experiência do desejo, no qual Alice direciona toda sua energia e emoção ao tentar alcançá-lo. O jardim é o adentrar na idade adulta, na maturidade. É um lugar de transição, de passagem da infância e inocência, para um nível de autoconhecimento.
A Lagarta Azul, assim como o jardim, também possui múltiplos significados. Há críticos que a vêem como uma representação da ameaça sexual, até pelo seu formato fálico, poderia representar a virilidade masculina. Alice tem que compreender as propriedades do Cogumelo para ganhar controle sobre seu tamanho oscilante, que representa as alterações físicas e emocionais da puberdade. Há outros críticos que consideram a Lagarta como uma alusão a alguma substância tóxica, algum psicodélico alucinógeno, que leva Alice a ter uma percepção surreal e distorcida do País das Maravilhas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grande questionamento que ponteia todo o percurso da aventura da protagonista é, de fato, a grande charada a ser respondida: "Quem eu sou no mundo?". Essa pergunta que é, aparentemente, simples e fácil de ser respondida, traz, na verdade, uma gama de sentimentos, tais como medo, angústia, insegurança, desejo de autoconhecimento, entre tantos outros. E para chegar à resposta certa, é preciso crescer, aventurar-se, enfrentar os ritos de passagem, questionar a razão. Por isso, podemos analisar o livro como sendo uma crítica ao Período Vitoriano, pois esse foi um período em que o indivíduo da época estava sufocado, enfrentando inúmeras exigências e regras sociais. Se por um lado o comportamento exigido da sociedade era um comportamento exemplar, onde a própria literatura tinha um fundo moralizante, por outro, Lewis Carroll usou da fantasia, levando a garota Alice a um País onde tudo se torna possível por meio do imaginário.

REFERÊNCIAS

BRITO, Bruna Perrella. "Alice no País das Maravilhas: Uma crítica à Inglaterra Vitoriana ". Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCL/projeto_todasasletras/inicie/BrunaBrito.pdf
Acesso em: 14 dez 2010.

BURGESS, Anthony. A literatura Inglesa. São Paulo: Ática, 2006.

CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. Rosaura Eichenberg. Porto Alegre: L&PM, 2010.

MORAIS, Flávia Costa. Literatura Vitoriana e educação moralizante. São Paulo: Alínea, 2004.