Por Que os Doutores da Física Monopolizavam o Saber da Medicina? Que Aptidões Científicas Possuía Paracelso? De Que Forma o Conceito de Doença de Paracelso Forneceu Axiomas à Medicina Moderna? Quais Eram os Quatro “Humores” Que Havia Dentro de Cada Pessoa?

Na Europa do século XVI, o senso comum e a sabedoria popular dificultavam ao homem a visão de si próprio e a sua exploração do corpo humano. No entanto, ao contrário da astronomia, a anatomia humana era um assunto sobre o qual ninguém podia evitar algum conhecimento. 

O conhecimento do corpo humano tinha sido codificado e colocado sob a custódia de uma profissão restrita e respeitada. Armazenado em línguas eruditas esse saber era um monopólio de poucos “doutores da Física”. Manipular o corpo para tratamento ou dissecação pertencia ao foro de outro grupo mais próximo dos carniceiros e a que, por vezes, eram chamados de “cirurgiões-barbeiros”. 

Somente no ano de 1300 começaram a dissecar corpos humanos para ensinar anatomia, pois naquele tempo isso era um trabalho bem desagradável e, como não havia refrigeração, tornava-se necessário dissecar primeiro as partes mais perecíveis. Uma dissecação – que se chamava “anatomia” – decorria de forma apressada durante quatro dias e efetuava-se ao ar livre. 

Ilustrações mostram um professor de Física impecavelmente vestido de beca e chapéu, sentado na sua alta cadeira (tipo “trono”) enquanto um dos tais cirurgiões barbeiros de pé, manuseando as entranhas de um cadáver estendido numa bancada de madeira. Nas mãos do físico vemos um livro – provavelmente Galeno – do qual se lê, a uma antisséptica distância. 

Os doutores da Física guardavam seus segredos fechados em línguas que os seus pacientes não sabiam ler e, por isso, não admira que desfrutassem do prestígio da sabedoria e do respeito temeroso do oculto. Aristocratas de todo o mundo acadêmico, guardiões dos meios de vida e de morte, eles permaneciam invulneráveis aos ataques dos leigos. De preferência, a pagarem-lhes seus elevados honorários ou a arriscarem-se a tratamentos dolorosos, as pessoas consultavam o boticário mais próximo, que pouco mais era do que um negociante de especiarias 

O mundo da medicina era um livro de separação de livros, de corpos, do saber e da experiência. No entanto, eram todas essas separações que constituíam a dignidade de uma profissão intimidadora. No final do século XV, qualquer médico que tivesse trabalhado para aprender as línguas acadêmicas tinha um interesse pessoal pela sabedoria tradicional e pelos dogmas aceitos. Isso requeria tanta paixão quanto saber e mais audácia do que prudência. 

Para abrir o caminho, esse homem precisava do saber de um profissional e, ao mesmo tempo, não podia estar comprometido com a profissão. Devia estar no mundo físico, mas não ser dele. O caminho para a medicina moderna não podia ser aberto por um professor de grande eminência, pois se exigia um vagabundo, um visionário; ou seja, um homem de temeridade mítica. O homem que ousasse apontar o caminho teria de usar o vernáculo e de gritar em vez de falar. 

No seu tempo, Paracelso (1493/1541) foi suspeito de charlatanismo e a sua fé em deus o empurrou para uma visão nova do homem e das artes de curar. Assim como a crença de Kepler na simetria divina do Universo confirmou a sua fé num sistema celeste copernicano, a fé na ordem divina do corpo humano inspirou Paracelso. Durante algum tempo ele prosperou em Estrasburgo como médico e, depois, quis a sua sorte que fosse chamado a Basileia para curar Johann Froben (que publicou o 1º Novo Testamento em grego) e seu amigo Erasmo, o qual Paracelso também tratou. Ambos ficaram tão impressionados que arrumaram-lhe um emprego de médico municipal e professor da Universidade local. Mas, os outros professores marginalizaram-no porque ele se recusara a fazer o juramento hipocrático e sequer era diplomado em Medicina. 

Apadrinhado pelo principal humanista da cidade, aproveitou essa oportunidade para explodir a instituição médica. Ao mesmo tempo, lançou o seu próprio manifesto a favor das artes curativas que esperava tomassem o lugar do tradicional juramento hipocrático. Assim como Lutero apelou à Igreja primitiva, Paracelso apelou sobre as cabeças dos bispos e cardeais da medicina aos princípios da medicina. Mostrou que não brincava quando atirou uma cópia das obras de Galeno à fogueira em julho de 1527, anunciando audaciosamente que seus cursos de medicina se baseavam na sua própria experiência com pacientes. 

Os sábios doutores se voltaram contra Paracelso e, quando Froben morreu, todos os seus inimigos se uniram contra ele. Sua sorte ruiu depois de perder uma ação judicial por cobrar honorários clínicos exorbitantes a um alto eclesiástico. O doente, com uma perturbação abdominal aguda, prometera-lhe a avultada quantia se o curasse. Mas depois, quando ele o curou apenas com bolinhas de láudano, recusou-se a pagar os honorários. O juiz pronunciou-se contra Paracelso, e este, após denunciar o próprio juiz, foi obrigado a sair da Basileia. 

Ele acabou se tornando um acadêmico ardiloso, um Don Quixote médico e em 1529 demorou-se em Nuremberg tempo suficiente para combater o tratamento da sífilis com doses venenosas de mercúrio e guáiaco, uma droga destilada da resina de uma árvore do Novo Mundo, supostamente destinada por Deus para curar a doença que vinha de lá. Depois, Paracelso vestiu “roupa de mendigo” para visitar Tirol a fim de estudar as doenças dos mineiros. 

Embora a pobreza e o frio de uma vida errante lhe tivessem abalado a saúde, ele continuava a tentar exercer a medicina. A sua truculência aumentou com os anos e, quando os sábios doutores o obrigaram a partir, acabou por ir para Salzburg onde morreu com a idade de 48 anos em setembro de 1541. 

A oposição dos doutores impediu que a maioria dos seus escritos fosse publicada durante a sua vida; mas, decorridos poucas décadas após a sua morte, as impressoras difundiram suas ideias para fora do alcance dos doutores. E ele tornou-se um herói romântico. Apesar – ou por causa – da sua fonte mística, o original conceito de doença de Paracelso viria a fornecer axiomas à medicina moderna. 

O conceito de doença prevalecente na Europa medieval tinha sido de autores clássicos e aperfeiçoado pelos doutores da Física. Eles diziam que a doença era a alteração do equilíbrio dos “humores” do corpo e a teoria médica não passava de uma parte da sua teoria geral da natureza humana. Dentro de cada pessoa havia 4 humores ([1]) (sangue, fleuma, bílis e atrabílis, ou bílis negra). Para eles, a saúde consistia no equilíbrio desses humores e a doença decorria de um excesso (ou insuficiência) de qualquer deles. 

Consequentemente, havia tantas doenças diferentes como indivíduos diferentes, porque a doença era uma perturbação das relações do humor de uma pessoa e, como não existia nenhuma norma para a temperatura do corpo, Francis Bacon observou que entre os homens havia “pessoas de todas as temperaturas”. O que era febre para uns podia ser normal para outros. 

Antes da invenção do termômetro, a “temperatura do corpo” era apenas um sinônimo de “temperamento”. Daí, a abrangente teoria dos humores era simultaneamente uma fisiologia, uma patologia e uma psicologia. Robert Burton definiu a doença como “uma afecção ([2]) do corpo, contrária à natureza” e, como uma doença era uma perturbação de todos os elementos do corpo, então as curas para as doenças teriam de tratar o corpo como um todo. 

Paracelso advogava uma teoria radicalmente diferente, baseada num conceito de doença completamente diferente com consequências de grande alcance para a ciência médica. A causa da doença não era o desajustamento dos humores do corpo dentro de uma pessoa, mas sim uma causa específica exterior ao corpo. Ele ridicularizava os “humores” como intervenções da imaginação, mas também se impacientava com os poucos anatomistas que tentavam assentar a medicina numa base mais sólida. 

Segundo Paracelso, quando Deus organizou o Universo arranjou um remédio para cada perturbação. As causas das doenças eram principalmente minerais e venenosos, trazidos pela atmosfera das estrelas. Ele moldou esse critério na sua linguagem revistada astrologia. A fé de Paracelso levava-o a acreditar que não havia doenças incuráveis, mas apenas médicos ignorantes. 

Os médicos acadêmicos tinham confinado suas receitas a remédios herbáceos que, por serem orgânicos, eram considerados apropriados para o corpo humano e, por isso mesmo, a botânica era matéria regular no currículo médico e durante séculos os preconceitos que inibiram a medicina limitaram também o estudo da botânica. 

A medicina e a botânica tinham-se tornado irmãs siamesas, parecendo que nenhuma delas poderia avançar sem a outra. Mas, Paracelso profetizou a sua separação. Por que não haveria os médicos de utilizar todos os recursos que Deus criara como minerais, vegetais, animais, orgânicos e inorgânicos para curar os males do corpo? Quem ousava dizer que minerais e metais não curavam? 

Em alguns casos – como no caso do mercúrio contra a sífilis – os médicos tinham experimentado remédios inorgânicos. Paracelso observou que a objeção de que os materiais inorgânicos eram “veneno” por serem estranhos ao corpo, era completamente tola, pois “todo alimento e toda bebida, se ingerido para além do sua dose, é veneno”. 

Sua fé levou-o a apoiar a doutrina das “assinaturas”, segundo a qual a forma (ou a cor) de uma erva sugeria o órgão que se destinava curar, como por exemplo a orquídea, que podia destinar-se a males dos testículos ou uma planta amarela a doenças do fígado. Dessa forma, ao contrário dos seus colegas mais respeitáveis, Paracelso não respeitava remédios populares. 

No seu tempo não havia o que se podia chamar uma ciência de química, e o estudo dos minerais e dos metais era dominado pelos alquimistas. Daí, Paracelso confiou aos alquimistas uma nova missão: _ transformar minerais e metais em remédios. Com isso, esperava desviá-los da busca da riqueza para a busca da saúde. 

Enquanto os doutores da Física se pronunciavam sobre o equilíbrio dos humores de seus pacientes ricos, Paracelso se dedicava ao estudo das doenças ocupacionais. Conhecia a vida dos mineiros, pois com apenas 9 anos foi trabalhar nas fundições de ferro no Tirol, regressando à sua cidade – vários anos depois –para gerir fábricas metalúrgicas e, durante essas décadas, observou as condições de trabalho desses trabalhadores. 

A doença dos mineiros, explicou, era uma doença dos pulmões que também provocava úlceras no estômago. Esses males provinham do ar que os mineiros respiravam e dos minerais absorvidos através dos pulmões e da pele. Estabelecia distinção entre envenenamento agudo e crônico e, além disso, Paracelso observou as diferenças entre as doenças causadas pelo arsênico, pelo antimônio e pelos alcalinos. Sua terapia para o envenenamento pelo mercúrio baseava-se na presunção de que, como o mercúrio se concentra em certas partes do corpo, o médico deveria fazer aberturas através das quais o mercúrio saísse.