SUSPENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: POSSIBILIDADES

Por tirciane chuvas aragão albuquerque | 18/06/2016 | Direito

O artigo ora apresentado versa sobre as circunstâncias que podem permitir a suspensão de direitos fundamentais consagrados. Turistas que visitavam São Luís foram atingidos por uma “cegueira branca”, que contaminou a todos os que tiveram contato com a doença, levando o Governo do Maranhão a deixar em quarentena em um antigo convento da cidade todos os afetados e os que com eles tiveram contato. A doença se espalhou pela ilha de Upaon-açu, motivo que levou o Governo Federal a decretar estado de defesa, e posteriormente, estado de sítio na ilha.  

            As garantias dos direitos fundamentais de todos os cidadãos da ilha foram suspensas, e eles ficaram isolados, sem qualquer contato direto com o mundo exterior. Os cegos do convento foram os mais afetados. O resultado foi o surgimento de um verdadeiro “estado de natureza”.

            Após algum tempo, a cura para a cegueira foi encontrada e o Estado restabeleceu a ordem na ilha. Porém, o grupo do convento entrou com uma ação contra o Governo local, com pedido de indenização.          A União justificou a “redução” das garantias constitucionais alegando que as medidas tomadas foram necessárias e adequadas, restringindo-se às possibilidades do momento.

O tema suscita o direito de pagamento de indenização por parte do Estado. O preâmbulo e o artigo 1º da Constituição Federal asseguram os direitos fundamentais; o Pacto São José da Costa Rica, mesmo sendo infraconstitucional, é um tratado do qual o Brasil é signatário; a quarentena foi estabelecida antes da decretação dos estados de defesa e de sítio; a CRFB de 88 prevê a suspensão das garantias constitucionais dos cidadãos, mas não as especifica; e, hierarquicamente, a lei que prevê a decretação de estado de sítio é inferior aos princípios fundamentais que baseiam o ordenamento pátrio.

Pois bem. Os direitos humanos são inerentes aos indivíduos pela simples razão de pertencerem à pessoa humana, e a sua dignidade corresponde à aspiração maior da sua existência, sendo que seus direitos fundamentam a essência do atual regime Democrático.

O ordenamento pátrio reafirma esse compromisso já no preâmbulo, assegurando “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos [...]”. E segue com o seu art. 1º:

Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Assim, a Constituinte de 1988 acolheu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito, e dessa forma, é do Estado a tarefa de preservá-la, promovendo condições que a tornem possível de realização prática. Nesse sentido, o estudioso Ingo Wolfgang SARLET (2001, p. 111-112) destaca a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental:

“[...]traduz a certeza de que o art. 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral (que ela, em última análise, não deixa de ter), mas que constitui uma norma jurídico-positiva com status constitucional e, como tal, dotada de eficácia, transformando-se de tal sorte, para além da dimensão ética já apontada, em valor jurídico fundamental da comunidade[...]”.

O valor acolhido no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana deve ser preservado acima de tudo, o que não ocorreu no estado de quarentena instaurado na ilha. Os contaminados foram abandonados em condições sub-humanas, apesar da gravidade da situação. Assim como os estados de sítio e de defesa não podem ser decretados pelo Chefe do Poder Executivo Federal com total e irrestrita discricionariedade, a condução desse momento de legalidade extraordinária deve ser feita de modo a minimizar seus efeitos junto ao cidadão.

Canotilho defende que "o regime das situações de exceção não significa suspensão da constituição, mas sim um regime extraordinário incorporado na Constituição e válido para situações de anormalidade constitucional". (CANOTINHO, 1993, apud FACCIOLI, 2002).

Alexandre de Moraes (2002, p. 1615) ratifica que "jamais haverá, em concreto, a possibilidade de supressão de todos os direitos e garantias individuais, sob pena de total arbítrio e anarquia, pois não há como se suprimir, por exemplo, o direito à vida, à dignidade humana, à honra, ao acesso ao judiciário".

Existe um agravante no fato de a quarentena dos primeiros afetados ter sido estabelecida pelo Governo antes da decretação dos estados de defesa e de sítio. Ainda que se tratasse de medidas de prevenção e emergência, o Estado não agiu dentro da legalidade ao isolar o grupo e deixá-lo em uma situação de abandono, já que não havia assistência às necessidades básicas dos que lá permaneceram.

A própria Constituição Federal (art. 136, § 1º, inciso II) prevê a responsabilidade do Governo Federal pelos prejuízos causados a terceiros. A União pode ocupar e usar temporariamente os bens e serviços públicos, mas “... na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes”. E no seu art. 141, “Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes” (grifo meu).

Em se tratando de estado de sítio (art. 137 da CF), de fato a Constituição prevê a suspensão das garantias constitucionais dos cidadãos, mas não as especifica, e em nenhum momento ousa incluir nessa suspensão os princípios fundamentais.

Por fim, é importante lembrar que as ideias do filósofo liberal John Locke lançaram a base sobre a qual a moderna democracia liberal foi construída, sendo que um século mais tarde, chegaram a inspirar a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. De uma forma geral, para ele, a vida, a liberdade e a propriedade são direitos naturais dos homens, e para preservar esses direitos, os homens deixaram o Estado de Natureza e estabeleceram um contrato entre si, criando o governo e a sociedade civil. Nesse sentido, o Estado é a instituição garantidora desses direitos, mas não pode sobrepor-se à pessoa humana.

No Segundo Tratado Sobre o Governo Civil (LOCKE, 1973, p. 92,93), Locke fala da “Extensão do Poder Legislativo”, que o considera supremo, porém:

“[...] não poderá ser mais do que essas pessoas tinham no estado de natureza antes de entrarem em sociedade e o cederem à comunidade; porque ninguém pode transferir a outrem mais poder do que possui, e ninguém tem poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre outrem, para destruir a própria vida ou tirar a vida ou a propriedade de outrem[...]”. (LOCKE, 1973, p. 93)

Além de não poder sobrepor-se ao indivíduo - ainda que tenha autoridade para garantir e proteger seus direitos -, a partir do momento em que o Estado não garante esses direitos, é justo que os que não os tiveram garantidos sejam devidamente indenizados.

Ademais, mesmo tendo ferido a Lei Fundamental, os crimes cometidos durante o estado de exceção jamais culminarão na punição de alguém. O mínimo de justiça que se pode fazer é indenizar as vítimas da quarentena.

Diante do exposto, acredita-se na possibilidade de indenização das vítimas do confinamento no Convento das Mercês. A condenação do Governo Federal permitiria o pagamento destas indenizações, a título de danos materiais e morais, visto que foram isolados do digno convívio social e humano, submetidos a condições sub-humanas e tiveram seus direitos fundamentais ilegalmente suspensos.

REFERÊNCIAS

  1. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 11. ed. Rio de Janeiro: Ed. Roma Vitor, 2007.
  1. FACCIOLLI, Ângelo Fernando. O Estado extraordinário: fundamentos, legitimidade e limites aos meios operativos, lacunas e o seu perfil perante o atual modelo constitucional de crises. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3079>. Acesso em: 20 mar. 2010.
  1. LOCKE, John. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural. Editor: Victor Civita, 1973.
  1. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.
  1. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  1. SARLET, I.W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

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