Danilo Lemos de Miranda

Paola Mendes Bello

 

1 INTRODUÇÃO; 2 POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE EXERCÍCIO DE SERVIÇOS PÚBLICOS POR PARTICULARES; 3 O EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA SOBRE SERVIÇOS PÚBLICOS; 4 OS LIMITES À DISCRICIONARIEDADE DO PODER DE POLÍCIA E CICLO DE POLÍCIA; 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

RESUMO

Trata-se de estudo acerca do serviço público e do poder de polícia, com o objetivo de identificar quais são os limites à discricionariedade do poder de polícia exercido sobre atividades particulares praticadas com vistas à prestação de serviço público em regime de delegação. Para tanto, aborda-se a titularidade dos serviços públicos diante da possibilidade constitucional de seu exercício por particulares. Segue-se, a partir daí, um estudo sobre as características do poder de polícia e a possibilidade de seu exercício em relação a serviços públicos. Por fim, faz-se uma análise dos próprios limites à discricionariedade do poder de polícia e ao ciclo de polícia.

 

Palavras-chave: Serviço Público. Regime de Delegação. Poder de Polícia. Discricionariedade e Limites. Ciclo de Polícia.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O problema central deste artigo gira em torno de identificar quais os limites aplicáveis à discricionariedade do poder de polícia exercido sobre atividades particulares praticadas com vistas à prestação de serviço público em regime de delegação. Neste sentido, o objetivo principal é analisar os conceitos de serviço público e poder de polícia, relacionando-os e tendo em vista as suas características fundamentais sob a ótica da proporcionalidade.

Neste contexto, é importante analisar a possibilidade constitucional de exercício de serviços públicos por particulares, para investigar os limites impostos nestes casos e a possibilidade do exercício de poder de polícia em tais situações. Isto porque a prestação dos serviços públicos é o meio principal pelo qual são realizados os direitos sociais previstos na Constituição da República.

Ademais, o estudo possui grande relevância prática, uma vez que todos os indivíduos, em um momento ou outro, são usuários de serviços públicos. Portanto, é relevante examinar como o poder de polícia incide sobre as atividades particulares praticadas no exercício de serviços públicos (em regime de delegação), mas tendo em vista os limites à sua discricionariedade diante da singularidade destes casos.

Tendo em vista estas circunstâncias, o presente artigo foi organizado em três capítulos, cada um deles referente a um dos objetivos específicos desta pesquisa.

No primeiro capítulo, o objetivo é examinar a titularidade dos serviços públicos diante da possibilidade constitucional de seu exercício por particulares. No segundo, busca-se estudar as características do poder de polícia e a possibilidade de seu exercício em relação a serviços públicos. E, por fim, no último, almeja-se identificar os limites à discricionariedade do poder de polícia e ao ciclo de polícia.

Foram utilizados os tipos de pesquisa qualitativo e quantitativo, ou seja, foi pesquisado o que já foi produzido acerca do serviço público e do poder de polícia, bem como sua discricionariedade e limites no ordenamento jurídico brasileiro, e, ao final, foi apresentado o ponto de vista sobre os limites à discricionariedade do poder de polícia no regime de delegação de serviço público. Já o método de abordagem foi o dedutivo, uma vez que esse ponto de vista foi formado a partir do que já foi produzido. E a técnica de pesquisa utilizada foi a bibliográfica, buscando os entendimentos doutrinários a respeito.

 

2 POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE EXERCÍCIO DE SERVIÇOS PÚBLICOS POR PARTICULARES

 

Para compreender a possibilidade de exercício de serviços públicos por particulares, é necessário primeiro entender o próprio conceito de serviço público. Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo (2010, p. 671) conceitua serviço público como “toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral [...] que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça às vezes” mediante regime de Direito Público, tendo, desta forma, prerrogativas especiais.

Já Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 107) define serviço público “como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”. Isto levando em consideração todo o enfoque doutrinário a respeito da evolução dos serviços públicos, bem como os elementos subjetivos, materiais e formais.

E por fim, faz-se importante citar Hely Lopes Meirelles (2011, p. 374), que entende por serviço público “todo aquele que é prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado”.

Embora não seja possível negar a existência de diversas teorias e variações por trás do conceito de serviço público, não cabe aqui expô-las, por não ser este o objeto principal do presente trabalho. Aqui, por enquanto, basta perceber que, como regra, os serviços públicos são prestados pelo Estado. Porém, a própria CF/88 autoriza o exercício de serviços públicos por particulares. É o que se extrai do Art. 175: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.

Da análise desta norma, a doutrina conclui que, embora a titularidade dos serviços públicos seja sempre do poder público, é possível o seu exercício por particulares, ao que José Carvalho dos Santos Filho (2014, p. 354-355) dá o nome de “delegação negocial”, classificando-a como uma forma de descentralização da Administração Pública.

Vale notar que a doutrina costuma diferenciar a titularidade do serviço público de seu mero exercício. Neste sentido, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2016, p. 748) ressaltam que a titularidade dos serviços públicos “é exclusiva do Estado”, ressaltando que “a delegação nunca transfere a titularidade do serviço público, de sorte que o particular que a recebe assume a condição de mero executor daquela atividade”.

Feitas estas primeiras observações acerca da possibilidade constitucional de exercício de serviços públicos por particulares, cabe agora tratar das formas por meio das quais é possível o exercício de serviços públicos por particulares. Do já transcrito Art. 175 da Constituição é possível extrair as duas espécies mais conhecidas: concessão e permissão. Mas a doutrina costuma se referir também a outras duas modalidades: autorização e parceria público-privada (PPP).

O conceito de concessão pode ser encontrado na Lei nº 8.987/1995: “a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado” (Art. 2º, II).

Interpretando o comando legal, Odete Medauar (2007, p. 319) leciona que a “concessão de serviço público é a transferência da prestação de serviço público” pelos entes da Administração Direta, “mediante concorrência, a pessoa jurídica ou consócio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho por sua conta e risco e por prazo determinado”.

A partir da soma do conceito legal com o conceito doutrinário, é necessário extrair as características principais deste instituto que é a concessão. A primeira delas é que deve existir um poder público concedente, no caso a União, um Estado, o Distrito Federal ou um Município. A segunda é que “a concessionaria é uma pessoa jurídica ou consórcio de empresas que executa o serviço por sua conta e risco, por prazo determinado”. E a terceira, é que a concessionária, em regra, recebe o seu pagamento diretamente do usuário do serviço, que paga uma tarifa. A quarta é que “o concedente fixa as normas de realização dos serviços, fiscaliza o seu cumprimento e impõe sanções aos concessionários”. E, por fim, a última característica é que “a concessão formaliza-se por instrumento contratual [...] precedido de concorrência” (MEDAUAR, 2007, p. 319-320).

Por sua vez, permissão e autorização podem ser analisadas em conjunto. Por meio delas, a Administração Pública também transfere a execução dos serviços públicos. Nada obstante, é importante frisar que permissão e concessão são institutos distintos apesar de suas diversas semelhanças, tais como a prestação de serviços públicos por particulares e a remuneração por tarifas pagas pelos usuários (MEDEAUAR, 2007, p. 326).

Neste sentido, apesar de tratá-los em conjunto, é necessário distinguir estes institutos. E isto, segundo Odete Medeauar (2007, p. 327), pode ser feito em dois aspectos, quais sejam: a) “a concessão é atribuída a pessoa jurídica ou a consócio de empresas”, diferentemente da autorização que é designada a pessoas físicas e jurídicas; b) para que se tenha o retorno do alto investimento das concessões estas possuem uma maior duração, já as permissões possuem durações de curto ou médio período, pois não tratam de grandes investimentos. Já as autorizações possuem a sua formalização por ato administrativo discricionário e precário.

Por fim, as parcerias público-privadas constituem um instituto recente no ordenamento jurídico brasileiro, onde se tem a participação do setor privado na implantação de melhorias e gestão da infraestrutura pública. Estas atuam em diversos setores como rodovias, ferrovias, hidrovias, portos etc. Para Hely Lopes Meirelles, são uma “alternativa à falta de recursos estatais para investimentos nessas áreas”. (MEIRELLES, 2011, p. 450)

Hely Lopes Meirelles (2011, p. 450) leciona que as parcerias público-privadas são conceituadas como concessão na Lei nº 11.079/2004, porém elas são uma concessão especial, uma vez que o particular irá prestar o serviço em seu próprio nome e não assumirá o risco completo do empreendimento, visto que o Poder Público também contribuirá no mesmo financeiramente visando a sua manutenção e realização.

Ainda sobre o assunto, Hely Lopes Meirelles (2011, p. 450-451) fala sobre as duas modalidades das parcerias público-privadas, quais sejam: concessão patrocinada e concessão administrativa. A primeira se dá “quando a concessão de serviços ou de obras públicas envolver uma contraprestação do Poder Público adicionalmente a tarifa cobrada dos usuários”, ou seja, além da tarifa que os usuários irão pagar para usufruir do serviço, o poder público também terá uma prestação pecuniária com o particular. Já a segunda, é “quando a remuneração do serviço é feita integralmente pela Administração, ainda que ele envolva execução de obra ou fornecimento de bens”.

Pelo exposto, ficou claro que apesar de a titularidade dos serviços públicos ser exclusiva do Estado, o ordenamento jurídico vigente admite diversas formas de seu exercício por particulares. Tal observação é indispensável para o estudo que segue, acerca da possibilidade de exercício do poder de polícia sobre serviços públicos.

 

3 O EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA SOBRE SERVIÇOS PÚBLICOS

 

Se os serviços públicos são de titularidade exclusiva do Poder Público, mas podem ser realizados por particulares mediante regime de delegação, cabe analisar a possibilidade de exercício do poder de polícia sobre estas atividades. Com efeito, o Código Tributário Nacional define o poder de polícia da seguinte forma:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

 

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, define o poder de polícia em dois conceitos, o clássico, sendo compreendido como a “atividade estatal que limitava o exercício dos direitos individuais em benefício da segurança”, e o moderno, que é o adotado pelo direito brasileiro, este seria para a mesma autora a “atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público” – sendo que este referido interesse público atua nos mais diversificados ramos da sociedade, como saúde, moral, meio ambiente etc. (2014, p. 124).

No mesmo sentido, Hely Lopes Meireles (2011, p. 137) define poder de polícia como sendo a capacidade da Administração Pública, em prol da coletividade ou do próprio Estado, de restringir a utilização de bens ou inibir a prática de atividades e direitos individuais.

A partir destes dois conceitos, observa-se que a definição de poder de polícia gira em torno da restrição de interesses individuais com fundamento em interesse público. Ou seja, o poder de polícia possui seu âmbito de incidência sobre as condutas particulares, que possam afetar os interesses da coletividade direta ou indiretamente (ALEXANDRINO, 2016, p. 273).

Neste contexto, é necessário fazer considerações sobre o princípio da supremacia do interesse público, uma vez que o mesmo está ligado às funções do poder de polícia, visto que este último se utiliza de tal postulado como fundamentação para o seu exercício. Assim, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 65-66) leciona que o princípio da supremacia do interesse público “vincula a atividade administrativa em toda a sua atuação”, portanto, o poder de polícia se vincula com o mesmo de forma a reprimir o interesse privado em função do público.

Em síntese, como o poder de polícia encontra fundamento no interesse público para restringir interesses privados, é de se concluir que sua incidência, ao menos como regra, se dá sobre atividades particulares (pois nestas é que o interesse privado prevalece). Disso decorre uma aparente impossibilidade de que o mesmo recaia sobre a prestação de serviços públicos, uma vez que estes são de titularidade exclusiva do Estado e visam o interesse público.

Entretanto, já ficou claro no capítulo anterior que, embora os serviços públicos sejam de titularidade exclusiva do Estado, é possível que particulares o exerçam. Nestes casos, como os serviços públicos estão sendo realizados por particulares, poderiam estar sujeitos também à incidência do poder de polícia.

Embora a doutrina seja escassa a respeito deste tema, é possível verificar na jurisprudência uma aceitação quanto a esta possibilidade.

Exemplo clássico neste sentido diz respeito à possibilidade de que órgãos de defesa do consumidor realizem fiscalizações de polícia e, mais do que isto, apliquem sanções administrativas em face de concessionárias de serviços públicos, especialmente fornecedoras de energia elétrica e água.

No julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 476062/SP, datado de 03/04/2014, o Superior Tribunal de Justiça legitimou multa aplicada com fundamento no poder de polícia pelo PROCON de São Paulo à concessionária responsável pelo fornecimento de energia elétrica local, em razão de interrupção do fornecimento de forma abusiva, verificada em ato de fiscalização da referida entidade administrativa (BRASIL, 2014).

A propósito, decisões desta natureza, em que o a jurisprudência legitima atos de polícia praticados especialmente por órgãos de defesa do consumidor em face de concessionárias de serviço público cuja atividade constitui relação de consumo são recorrentes. Diversos outros casos, com decisões de conteúdo bastante semelhante, constam da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29964/RN (BRASIL, 2009) e no Recurso Especial nº 1138591/RJ (BRASIL, 2009).

Em todos estes casos, vale ressaltar, o STJ expressamente destacou que as sanções de polícia aplicadas (multas) encontravam fundamento no poder de polícia, admitindo, assim, a sua incidência em relação a serviços públicos prestados por particulares mediante regime de delegação.

Um tema que fica aberto na análise destas decisões diz respeito à análise das manifestações do poder de polícia (por alguns circunscritas dentre de um tal ciclo de polícia). Com efeito, durante a análise das jurisprudências, mencionou-se pelo menos duas destas manifestações, a fiscalização de polícia e a sanção de polícia. Ao lado destas duas, entretanto, existem outras, que serão melhor analisadas no capítulo seguinte.

Antes disto, contudo, cumpre notar que poder de polícia não se confunde com serviço público. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 7), o último visa “algo material: fornecer água, iluminação elétrica, comunicação telefônica, telegráfica, recolhimento de lixo, tratamento médico, ministério de aulas etc”, ao passo em que o primeiro consiste na “expedição de provimentos jurídicos”, que habilitam, impedem ou sancionam determinada atividade.

Tanto é verdade que algumas atividades do poder de polícia podem ser delegadas a atividade privada, que são os chamados poderes de polícia delegados. Neste sentido, o mesmo Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 7) afirma que “certos atos materiais” podem ser delegados, o que novamente apenas ficará mais claro a partir da análise do ciclo de polícia a partir do capítulo que segue.

 

4 OS LIMITES À DISCRICIONARIEDADE DO PODER DE POLÍCIA E CICLO DE POLÍCIA

 

Assim, sabendo que o poder de polícia pode incidir sobre serviços públicos, especialmente quando prestados por particulares mediante regime de delegação, importante analisar os limites ao poder de polícia nestes casos. Para tanto, é necessário primeiro analisar as formas de manifestação do poder de polícia e, por assim dizer, o chamado ciclo de polícia. Neste sentido, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2016, p. 281) aponta como fases do ciclo do poder de polícia os seguintes: a ordem de polícia; o consentimento de polícia; a fiscalização de polícia; e a sanção de polícia.

A ordem de polícia é fase inicial de qualquer ciclo de polícia, consistente nas imposições legais que estabelecem os limites para a prática de atividades privadas e uso de bens, que são regulados pelo poder de polícia. Pelo princípio constitucional da legalidade, a “ordem primária” estará contida em uma lei, entretanto poderá ser regulada por atos normativos infralegais que poderão dar os devidos comandos para que os mesmos tenham a devida isonomia e possam ser observados pelos administrados e pela própria Administração. (ALEXANDRINO; PAULO, p. 282).

O consentimento de polícia se traduz “na anuência prévia da Administração, quando exigida, para prática de determinadas práticas privadas ou para determinado exercício de poderes concernentes a propriedade privada” (ALEXANDRINO; PAULO, 2016, p. 282), portanto, o consentimento de polícia nada mais é que a aprovação do poder de polícia para que o administrado executar determinadas ações.

Hely Lopes Meirelles (2011, p. 145), ao cuidar do assunto, fala que o administrado se utilizará de alvará nos casos em que as atividades ou exercício de direitos forem subordinados ao poder de polícia. Este alvará existirá de duas formas: o precário e o definitivo. O primeiro se expressa como uma autorização e o segundo como uma licença podendo ser revogado sumariamente. Pois bem, o definitivo, além desta característica, também será vinculante para a Administração e advém de um direito subjetivo do administrado, como nos casos das edificações, desde que cumpra com todos os requisitos das normas edilícias. Já o precário será também discricionário, pode ser concedido propriamente por liberalidade da Administração, desde que não exista nenhum impedimento legal para a sua expedição.

A fiscalização de polícia consiste no fato de que a Administração pode, preventivamente, supervisionar as atividades e bens sujeitos ao seu controle. É, assim, um importante meio para, de fato, saber se os administrados estão cumprindo o que foi expedido no alvará que visa o interesse da coletividade. Além disso, a fiscalização de polícia, por óbvio, será importante meio para a aplicação das sanções. (MEIRELLES, 2011, p. 145-146).

Segundo Odete Medauar (2007, p.339) as medidas que resultam do poder de polícia necessitam da observância por parte do administrado, sendo que do descumprimento destas decorre as sanções de polícia, que são medidas legais e coercitivas para exigir o cumprimento do ato pelo particular.

Para Dirley da Cunha Júnior (2012, p. 96), caso não houvesse as sanções de polícia, a Administração Pública seria frustrada, uma vez que, nos casos em que os administrados não cumprissem a ordem da autoridade competente, não existiria nenhum meio para que obrigasse o mesmo a cumprir aquilo que foi visto como o melhor para o bem-estar social.

Vale ressaltar sobre as sanções que as mesmas são descritas na lei, e, em regra, são as seguintes: “multa, interdição de atividade, fechamento de estabelecimento, demolição de construção, embargo administrativo de obras, destruição de objetos, inutilização de gêneros” (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 96), além de outras com previsão legal.

Retornando ao contexto da delegação de atividades públicas, é necessário observar quais destas fases do ciclo de polícia podem ser transferidas para entidades com personalidade jurídica de direito privado, visto que há uma grande divergência doutrinária quanto ao assunto. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2016, p. 284-285) sintetizam a discussão no âmbito dos tribunais superiores, destacando que o STF possui posição no sentido de que o ciclo de polícia em si não poderia ser delegado a entidades privadas, ao passo em que o STJ admite a delegação de duas das fases do ciclo de polícia, o consentimento e a fiscalização, por serem atos meramente materiais.

Visto isto, vale notar que a doutrina aponta que o poder de polícia possui alguns atributos, a saber: discricionariedade; autoexecutoriedade; e coercibilidade (ALEXANDRINO; PAULO, 2016, p. 286-289).

O primeiro deles, a discricionariedade, é vista pela doutrina de Hely Lopes Meirelles (2011, p. 142) como uma liberdade que a Administração Pública possui para agir de acordo com a “oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, bem como de aplicar as sanções e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum interesse público”. Levando-se, logicamente, em consideração todos os limites legais desta atuação.

O segundo dos atributos é a autoexecutoriedade que, segundo os mesmos posicionamentos Hely Lopes Meirells (2011, p. 143), seria a capacidade que a “Administração teria executar diretamente sua decisão por seus próprios meios, sem intervenção do judiciário”. Desta forma, os atos praticados pela competência do poder de polícia serão válidos independentemente de autorização judicial, pois ele possui dentre os seus atributos a autoexecutoriedade. Ademais, vale ressaltar que, se o particular se sentir lesado pelo ato da Administração Pública, o mesmo poderá recorrer ao Judiciário para relatar o fato e este, por sua vez, poderá decidir sobre a decisão da Administração.

Ainda sobre a autoexecutoriedade, Di Pietro (2014, p. 128) leciona que ela não existirá em todos os momentos do poder de polícia, tendo a sua existência em dois pontos distintos, sendo o primeiro quando a lei autorizar de forma expressa, visto que a Administração Pública deve obedecer ao princípio da legalidade, e o segundo momento nos casos descritos como de urgência.

Por fim, o último atributo é o da coercibilidade que, de forma simples, seria a “característica que torna o ato obrigatório independentemente da vontade do administrado” (MARINELA, 2013 p. 236). Há doutrinadores ainda que acreditam que este atributo do poder de polícia é indissociável da aoutoexecutoriedade, visto que os dois atuam em conjunto.

Porém, para Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2016, p. 289), a coercibilidade não está presente em diversos atos de polícia, como os “atos preventivos de polícia tais como a outorga de licenças ou autorizações necessárias para o administrado exercer determinadas atividades privadas”.

Dentre estes três atributos, tem maior importância para o presente estudo o da discricionariedade, na medida em que cumpre analisar os seus limites, especialmente tendo em vista a situação até aqui enfrentada, qual seja, a da incidência do poder de polícia sobre serviços públicos exercidos por particulares. Com efeito, os serviços públicos, mesmo quando exercidos por particulares, devem ter em vista sempre o interesse público e, por isso, as limitações ao exercício do poder de polícia nestes casos devem estar ainda mais ressaltadas.

Assim, ainda que, em regra, o poder de polícia seja uma atividade discricionária, nos casos em que a lei estabelecer o seu modo de atuação, ele passa a ser vinculado e, desta forma, a autoridade de polícia só poderia atuar estritamente em conformidade com o que dispõe a legislação pertinente (DI PIETRO, 2014, 127).

Di Pietro (2014, p. 129-130), ao falar sobre os limites à discricionariedade, elenca-os da seguinte maneira “quanto à competência e à forma, aos fins e mesmo com relação aos motivos ou ao objeto”. Quanto à competência, a forma e aos motivos quer dizer que as normas legais deverão ser respeitadas, ou seja, deve ser obedecido o que está descrito na lei. Já quanto aos fins, os limites são impostos no decurso da finalidade daquele ato administrativo, visto que quando o ato não tiver como finalidade o bem da coletividade ocorrerá o chamado desvio de poder, e, desta forma, irá acarretar a “nulidade do ato com todas as suas consequências nas esferas civil, penal e administrativa”. Quanto ao objeto, que se traduz pelo meio de atuação, será limitado mesmo quando a lei lhe dispuser de várias opções, tendo lugar um importantíssimo princípio, qual seja, o da “proporcionalidade dos meios aos fins”, que revela o limite do poder de polícia quanto à restrição do direito individual até o momento que se equilibre novamente o bem-estar social.

Pois bem. O que importa perceber é que o poder de polícia, como regra, é discricionário, isto é, permite ao administrador utilizá-lo segundo critérios de conveniência e oportunidade. Nada obstante, esta própria discricionariedade está sujeita a alguns limites e, em se tratando da hipótese trabalhada de exercício do poder de polícia sobre serviços públicos, estes limites devem ser ainda maiores.

Como já dito anteriormente, esta possibilidade de exercício do poder de polícia sobre serviços públicos exercidos mediante regime de delegação não é tão trabalhada pela doutrina, apesar de amplamente aceita pela jurisprudência.

Por isso, é um tanto difícil elencar os limites aplicáveis a estes casos em específico. Porém, basta ter em vista, como destacado no capítulo anterior, que os serviços públicos sempre visam interesses públicos – mesmo quando prestados por particulares – para perceber que não é sempre que todas as fases do poder de polícia terão lugar nestas situações – por este motivo é que o ciclo de polícia foi estudado acima.

Com efeito, apesar de sujeitos ao poder de polícia, o serviço público exercido por particulares somente poderá ser objeto de ordem, consentimento, fiscalização ou sanção de polícia quando a utilização destas for interessante ao poder público. Por exemplo, imaginando as concessionárias de energia elétrica, não dá para imaginar a interdição de seus estabelecimentos quando esta implicar na impossibilidade de que o serviço público chegue à população, diferentemente do que ocorreria caso se estivesse diante de uma atividade econômica essencialmente privada.

Em síntese, o principal dos limites aplicáveis à discricionariedade do poder de polícia sobre serviços públicos prestados por particulares é o próprio interesse público.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Este artigo partiu da análise acerca da possibilidade constitucional de que particulares exerçam serviços públicos, tarefa que, em regra, incumbe ao Poder Público. Como visto, a própria Constituição da República é que confere esta incumbência ao Estado, mas, por outro lado, permite que ela seja realizada direta ou indiretamente – diretamente quando a própria administração a realiza e indiretamente quando realizada em regime de delegação.

Neste contexto, novamente a própria Constituição é que estabelece as principais formas por meio das quais estes serviços públicos podem ser prestados por particulares: permissão e concessão de serviços públicos. Ao lado destas, entretanto, a doutrina verifica outras, seja no próprio texto constitucional, seja em legislação infraconstitucional, recebendo destaque especial a autorização e a parceria público-privada.

Ao lado do estudo dos serviços públicos, foi analisado também o instituto do poder de polícia, cujo conceito básico sugere a conclusão de que ao Estado é permitido restringir atividades particulares em nome do interesse público. Esta definição sugere também que, ao menos como regra, o poder de polícia incide sobre atividades particulares – já que é nestas que os interesses privados prevalecem –, daí fazendo surgir indagação acerca da possibilidade de que os serviços públicos prestados mediante regime de delegação estejam sujeitos ao poder de polícia.

Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm entendido até que determinadas manifestações do poder de polícia (especialmente o consentimento e a fiscalização) podem ser delegados a particulares, ante seu caráter meramente material. Por sua vez, embora a doutrina não costume enfrentar o assunto, a prática administrativa e, especialmente, a jurisprudência dos tribunais superiores têm admitido a incidência do poder de polícia sobre serviços públicos realizados por particulares. O melhor exemplo disto são os atos de fiscalização e sanção dos órgãos de defesa do consumidor em face de concessionárias de serviços públicos, como fornecedoras de água e energia elétrica.

Ora, se os serviços públicos, mesmo quando prestados por particulares, devem sempre respeitar ao interesse público, é igualmente certo que, dificilmente, um particular vai se propor a prestá-lo se, por trás desta prestação, não houver interesses particulares. É sobre estes interesses particulares que o poder de polícia pode incidir quanto aos serviços públicos prestados mediante delegação. Por outro lado, o interesse público, que nunca pode ser esquecido em tais casos, serve como verdadeiro limite ao poder de polícia, especialmente quanto às fases da fiscalização e da sanção de polícia.

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