Artigo: Agostinho, Estado Não Laico para o Estado Laico.

Introdução

É incalculável a contribuição desse grande filósofo medieval. Nem mesmo a altiva ciência moderna que afirma a morte da filosofia com os descobrimentos científicos pode sustentar um contra-argumento na estruturação gradual do pensamento pragmático/funcional que de forma direta ou não Agostinho sustentou em suas obras: “A Cidade de Deus” e “Confissões”, o engodo da pseudociência ao afirmar que todo o saber rende-se aos pés do código “científico” escancara-se nas violentas lacunas que a origem da vida impõe, e as propostas científicas de macro evolução que não apresentam vias propriamente comprovadas. A parte do discutir sobre Leis e Teorias, Agostinho atuou no campo especulativo da filosofia/teologia, portanto, fixaremos nosso olhar no contexto filosófico e sociológico que influenciaram fortemente a produção de um dos maiores filósofos da Idade Média, Santo Agostinho de Hipona.

  1.  As Invasões e a Realidade Social

          A Cidade de Deus e Confissões abrangem argumentos para necessidades diferentes, na primeira está um tratado para o Cristianismo como instituição social, comunitária, política; na segunda a preocupação é com a Cristandade, ou seja, a pessoa, o viver diário e devocional a Jesus, o Cristo. No presente artigo desenvolveremos uma crítica sobre a primeira.

Em 14.08.410, Alarico conquistou Roma... A queda de Roma abalou o Império.

Todos, cristãos e não cristãos, acusavam o Cristianismo:

O Deus do amor e da caridade não serve para institucionalizar, isto é, organizar e defender uma civilização e uma cultura. (AGOSTINHO, p.17)

         

A realidade de Roma mudou, o alvoroço da invasão trouxe um triste cenário de violência, estupros e execuções em público, o luto e a dor dos sobreviventes subjugam a alegria da cidade mais gloriosa e populosa (quase um milhão pessoas) do mundo. Esse é o fundo histórico do filósofo, uma crise generalizada do império e suas instituições, inclusive religiosa. Agostinho está seguro de que a sobrevivência do império depende do Cristo, Jesus, que teve sua mensagem sufocada por políticos gananciosos e clérigos corruptos. Dessa forma A cidade de Deus elabora um manual de sobrevivência às invasões germânicas, uma posição espiritual que impulsione os romanos para uma resposta religiosa/filosófica.

          O bispo Aurélio Ambrósio é o responsável pela influência religiosa, Agostinho se torna cristão por suas pregações.

A influência de Ambrósio dá-se primeiramente pela força que o bispo exercia em sua força pessoal e oratória. Mesmo antes da conversão, quando não dava atenção para os pregadores cristãos, Agostinho já escutava e admirava o bispo de Mediolano (atual Milão). Essa relação encontrou força no zelo de Ambrósio pelo povo desfavorecido, pois, ele derretia os objetos de prata da igreja e distribuía pães para a população que sofria com a miséria. Para o bispo, essa relação de sofrimento do povo estava intimamente relacionada a questões espirituais, dos pagãos na igreja cristã, uma teoria chamada Arianismo. Ambrósio encontrou na perseguição dessas forças estrangeiras a forma de defender o seu povo. Arianos, judeus e pagãos são todos inimigos de Deus. Ambrósio tinha tanta expressividade que excomungou o imperador Teodósio I por ter realizado uma ofensiva militar que matou sete mil pessoas em Tessalônica, o imperador tentou ir à missa com seus soldados e foram todos impedidos pelo bispo, depois de meses de penitência, o imperador foi aceito novamente na igreja. É nesse espírito fervoroso, destemido e implacável de Ambrósio que Agostinho norteia sua carreira.

Roma está em pedaços, à população está refém de invasores sem qualificações técnicas para administrar a cidade, além da exposição da violência que gera um sentimento de morte na população levando um número incalculável de suicídios. Mas para levantar sua voz cristã, Agostinho precisou estabelecer filosoficamente que o Cristianismo não foi derrotado, o império sim, mas a religião não.

Para uma cidade agora sem sustentação política, o bispo de Hipona propõe uma cidade sustentada pela fé.

 “Não vás para fora, volta-te para dentro.

É no interior do homem que mora a verdade”. (AGOSTINHO, p.20)

1.1 O Cristianismo não tem culpa

Essa afirmação fica conhecida como “Revolução Copernicana da Fé”. A base que sustenta o conceito do bispo de Hipona é sua afirmação de que o Cristianismo não é responsável pela destruição de Roma. Primeiramente ele responsabiliza a administração, ou seja, não há razões espirituais ou religiosas para o ocorrido, mas sim a má gestão em contratar os bárbaros para defesa do império. A cidade foi entregue a pessoas desconhecidas que enxergam na aproximação do império o favor dos deuses para uma nova terra a explorar.

“Quem não vê, depois de breve exame, como é fútil a presunção

de ser invencível sob a tutela de defensores vencidos

e de à perda de suas divindades atribuir a própria”. (AGOSTINHO, p.31)

Depois de estabelecer a base de seu conceito, ou seja, que o Cristianismo não é responsável pela queda da cidade, o filósofo busca estruturar uma visão sociológica profunda, um verdadeiro analgésico no psicológico deprimido da população.

“Deus... faz o Sol erguer-se sobre os bons e os maus e

chover sobre justos e injustos”. (AGOSTINHO, p.34)

         

Na atualidade esse pensamento pode parecer lógico, mas para a Idade Média onde as coisas existem na expressão das forças divinas, isso é revolucionário. Basear uma derrota, frustração, perda, vitória, avanço ou ganho, exclusivamente aos elementos humanos e ponderar a interferência divina como impossível de ser raciocinada, definitivamente é uma destruição do pensamento místico da época. Com isso Agostinho posicionou sua base e agora sacudiu a segurança religiosa da população, chamando a atenção para uma nova forma de pensar sobre a vida. E a melhor forma de explicar sobre a vida é falando sobre a morte.

“O que sei é não haver morrido pessoa alguma

Que não devesse morrer um belo dia”. (AGOSTINHO, p.40)

         

Para os cristãos a vida pode ser longa ou breve, pode encerrar em paz ou em guerra, mas o que realmente importa é como se vive e não como se morre. Agostinho afirma que o santo (cristão) vive como um estrangeiro em terra distante, pois, sua terra é no céu. Ser privado de sepultamento nada priva o cristão, os invasores podem não permitir o enterro dos cristãos, mas jamais impedirão a entrada no céu. Outro aspecto abordado é referente ao fato de muitos serem levados cativos. Depois da anestesia (filosófica) vem à cirurgia (sociológica), talvez o processo mais doloroso e complexo abordado pelo filósofo.

“Ao invés de responder a nossos inimigos,

cuidemos de consolar nossas irmãs”. (AGOSTINHO, p.46)

          Agostinho apela ao povo romano para que “olhe” para a situação das mulheres, a humilhação é tamanha que o suicídio começa a ser praticado em longa escala, e é nesse momento que o filósofo encontra a forma de extrair o pensamento religioso ultrapassado e convocar os romanos para uma renovação de mentalidade. Na frase em destaque ele afirma que não deseja responder aos inimigos, ou seja, não quer construir uma resposta teológica para a desolação de Roma, responder os problemas com soluções bíblicas desvirtuam a população para o fatalismo e a banalidade da morte, mas Agostinho planeja algo diferente do tradicional, deixar os invasores de lado e tratar de consolar/cuidar das mulheres. Essa alteração do foco parece ser pequena, mas como em uma cirurgia, “o corte” foi preciso.

 

“Não matarás não excetua pessoa alguma, mesmo quem a recebe”. (AGOSTINHO, p.50)

         

          Primeiro Agostinho trata de “estancar o sangramento”, invocando teologicamente a falta de lógica do suicídio, sua maneira de impedir um genocídio das mulheres romanas é expor que o sofrimento é momentâneo e que nada se compara a vida que está preparada para os cristãos no céu, as mulheres que optam pelo suicídio podem ter a permissão popular, mas não a de Deus. É importante frisar que o filósofo confirma sua dor em relação às suicidas na forma de que seu sofrimento é impossível de ser medido. Mas combate tal prática.

          Essa postura mostra muito mais do que um sentimento de dor em relação às mulheres, até mesmo porque homens e meninos estão sendo cruelmente executados, mas o foco recai sobre os que vivem, justamente porque são eles que podem mudar, os mortos são lembranças, os vivos, são! A mudança que Agostinho fomenta não é revolucionária, nem bélica, sua posição ofensiva contra os germânicos é uma questão de lógica. Quando se abre a janela do quarto e assisti tamanha violência, não há muito que fazer ou pensar além de apontar contra os feitores de tal terrorismo. No momento em que a guerra é o veículo da convenção social, os invasores devem morrer. Muitos salientam o elemento violento no discurso de Agostinho contra os bárbaros, convido os juízes a se colocarem no lugar desse pensador, o que fariam se seus iguais passassem pelos mesmos horrores e que em suas mãos houvesse apenas uma pena?

Conclusão

          A base foi preparada com a defesa do Cristianismo, seu argumento é uma verdadeira revolução, se a religião era buscada para as respostas de tudo na vida, o filósofo registra que, vencemos ou perdemos devido a nossa administração, e esperar encontrar respostas divinas é impossível, pois, os planos de Deus jamais serão compreendidos pelo homem. Depois dessa bordoada no pensamento popular, ele cuida dos ferimentos do povo, pois, seja a vida perfeita ou terrível na terra, o melhor espera os cristãos no céu. As romanas culminam o discurso. Na saliência do sofrimento das mulheres ele condena a fome por expansão e poder do império à custa do sofrimento dos outros.

          O ponto máximo é a proposta de desvirtuar a religiosidade com o estado. Agostinho não afirma que Deus não intervém, apenas esclarece que não é possível entender a forma com que o Criador governa as coisas. Por isso ele apela pelo que é acessível, se não é possível entender o governo de Deus, não é possível representa-lo na terra, logo, não há possibilidade de haver uma liderança política por meios religiosos. Isso é o que chamo de Proto-Estado-Laico. Laico significa leigo, desprovido sobre teologia, a proposta de Santo Agostinho de um estado não leigo para um estado laico. É estranho, mas é assim “Estado Não Laico para ser Laico”.

Bibliografia:

AGOSTINHO, Santo de Hipona. A cidade de Deus: (contra os pagãos), parte I / Santo Agostinho; introdução de Oscar Paes Lemes. 2. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990.