PROCESSOS E TRAJETÓRIAS EM UM CAPSad: observações e análises de um estágio em saúde mental

RESUMO

 Este artigo propõe uma visão geral do funcionamento do CAPSad em um município do interior de São Paulo. Serão observados os meios de entrada dos usuários neste centro, registrando notas dos padrões, procedimentos ou hábitos nos tratamentos. Os dados que compõe este trabalho foram obtidos através de um estágio extracurricular em Psicologia na Secretaria Municipal de Saúde, sendo este o setor responsável por regular e coordenar as estratégias de intervenção que afetam aos pacientes, familiares e profissionais acolhidos por estes dispositivos de atendimento à saúde. O artigo será baseado nos novos modelos de atendimento pós Reforma Psiquiátrica e nos regulamentos previstos nas políticas públicas de saúde vigentes.

 

INTRODUÇÃO

A partir da Reforma Psiquiátrica até a atual organização do Sistema Único de Saúde, as políticas públicas e agências de saúde municipais e estaduais passaram por notórias mudanças práticas e teóricas: se até 1970 o tratamento de saúde mental estava centralizado nas internações em hospitais e asilos psiquiátricos, houve, a partir daí, uma mudança no paradigma teórico, sendo paulatinamente substituído por atendimentos em centros, ambulatórios e unidades básicas de saúde, sustentados por um modelo assistencialista; se os pacientes psiquiátricos (que serão identificados ao longo do artigo) eram potenciais internos de hospícios, hoje são divididos e tratados em espaços específicos. Esse deslocamento não foi incidental. Ao contrário, ele faz parte de um processo complexo em que teoria e prática estão dispostos ao lado de políticas públicas que ponderam também seus próprios interesses, como disposição de recursos, segurança pública, promoção de saúde e visões ideológicas que podem divergir muito entre si (WETZEL, KANTORSKI e SOUZA, 2008).

Para entender melhor o debate proposto, é necessário, primeiramente, expor brevemente as funções específicas dos vários setores de atendimento psiquiátrico, já que cada um deles trata em separado e especificamente uma parcela de pacientes. Estes pacientes são categorizados mediante um atendimento unificado feito por Unidades Básicas de Saúde (UBS) do município. A partir deste primeiro atendimento, é produzida uma hipótese diagnóstica através de processo documental – e é através desta primeira produção de documentos que o paciente é encaminhado a determinados setores para dar início ao tratamento. A proposta do artigo, a partir da dinâmica abordada, é descrever a trajetória dos pacientes do CAPSad, mostrando os percursos destes pacientes e algumas divergências em relação àqueles encaminhados via UBS (uso como exemplo os pacientes adultos do Ambulatório de Saúde Mental), procurando elementos que alimentam os pressupostos que rotulam os CAPS como agências complementares (Conselho Federal de Psicologia, 2013). 

O CAPS e o Ambulatório são as duas agências especializadas em atendimento psiquiátrico pelo SUS. Em ambas os pacientes fazem acompanhamento periodicamente com uma equipe multiprofissional. Além das duas agências citadas, os pacientes podem ser encaminhados pelas Unidades Básicas de Saúde:

  • À própria ala de matriciamento da UBS, em casos de transtornos psiquiátricos leves ou atendimentos preventivos, para elaboração dos devidos encaminhamentos;
  • Ao Pronto-Socorro Municipal (PS) se for urgência, como casos de surtos psicóticos, abusos eventuais ou atentados que colocam em risco a vida[1];
  • Ao Núcleo de Atendimento da Infância e Adolescência – NAIA, que realiza o tratamento com crianças e adolescentes.
  • Ao Ambulatório Médico de Especialidades (AME) e Hospital-Dia, ambulatórios de especialidades geridos pela Fundação Santa Casa de Misericórdia[2];
  • Às comunidades terapêuticas conveniadas com o município;
  • Ao Hospital Psiquiátrico[3] em casos urgentes, sendo o PS a porta de entrada;
  • À Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE);
  • Outras unidades de atendimento sem vínculos documentados com a Prefeitura Municipal, como as Clínicas-Escola de Psicologia das instituições de Ensino Superior do município.

A procura por atendimento pode partir da iniciativa de um órgão público, incluindo instituições como a Defensoria ou Promotoria Pública, o Conselho Tutelar, ou por requisições diretas de autoridades municipais, assim como de pessoas físicas que, utilizando algumas destas (ou outras) instituições, procuram por intervenção. Nestes casos, o paciente não faz a avaliação médica pelas UBS: os requerentes acionam diretamente a Coordenação de Saúde Mental por meio de pedido oficial e este setor da Secretaria Municipal de Saúde agenda a avaliação no dispositivo de saúde indicado ao caso. Os casos de crianças a partir de 13 anos de idade com vícios em álcool ou drogas podem ser encaminhados ao CAPSad, já que o NAIA não é especializado em pacientes usuários de entorpecentes. Os casos em que os pacientes não possuíam pré-diagnóstico eram ocasionais, pois bastava saber se o paciente (adulto) era usuário de entorpecentes[4] para orientá-lo ao CAPSad; o não-uso de drogas e os diagnósticos de psicoses ou neuroses graves faziam com que o paciente fosse orientado diretamente ao Ambulatório. Eventualmente, o ponto nevrálgico para início do tratamento em saúde mental não é a UBS; aliás, o CAPSad, como já adiantado, independe da condução preliminar de qualquer setor, ainda que possa haver a interferência de terceiros. De qualquer modo, a produção de documentos, sejam laudos, encaminhamentos, ofícios ou respostas para processos judiciais, mostram-se imprescindíveis à designação da conduta dos atendimentos clínicos. 

Ambulatório de Saúde Mental

Os Ambulatórios de Saúde Mental são dispositivos que, atuando de forma conjunta aos instrumentos assistencialistas, substituíram os antigos manicômios após a Reforma Psiquiátrica. Surgiram a partir de denúncias aos hospitais psiquiátricos que mercantilizavam a loucura e não correspondiam aos pressupostos de cuidados[6] aos usuários, mas não atenderam à risca às prerrogativas de cuidados inicialmente estabelecidas. Conforme afirmam Santos, Oliveira e Yamamoto (2009, p.315) são dois os tipos de ambulatório que surgiram com a proposta da Reforma: 

O ambulatório tradicional, resultado da proposta de “ambulatorização”, oferece atenção médica curativa, atividades exclusivamente de consultas psiquiátricas e psicológicas. Já o ambulatório da Reforma é todo serviço ambulatorial que dirige suas ações tomando como diretriz o paradigma da Reforma Psiquiátrica. 

O segundo tipo de ambulatório propõe-se a atuar dinamicamente na realidade do paciente, retirando das mãos do médico o poder curativo e oferecendo aos usuários atendimentos individuais, em grupo, familiares e comunitários (na área de referência dos serviços de saúde). No município em questão, a posição da unidade ambulatorial neste processo de mudança é incerta, as transformações agem vagarosamente e noções de evolução, mudança, adequação e iniciativa são obliteradas por uma prática médica que não demonstra evidências concretas de transformação ou refinamento. Isto foi notado pelos meios de entrada dos pacientes nesta agência; pelas técnicas de registros dos pacientes e tratamentos e pela baixa eficácia da técnica comunicacional entre profissionais. A incerteza, pois, é marcada pelo período em que a pesquisa foi desenvolvida, diante drástica mudança no corpo da equipe que afetou severamente toda a dinâmica de atendimento.

A entrada do paciente no Ambulatório se configura por meio do agendamento prévio com a equipe multidisciplinar para pacientes com transtornos graves[7]. A prática, no entanto, torna difícil estabelecer a prioridade dos requisitos de entrada no Ambulatório: se apenas pacientes com transtornos psicológicos graves são encaminhados ou se os médicos encaminham pacientes conforme a demanda ou lotação dos setores que ofertam, por exemplo, o processo de atendimento prioritário tende a tornar-se irrelevante. É possível afirmar que apenas pacientes com transtornos graves permanecem em atendimento pelo Ambulatório, ainda que existam relatos informais de diagnósticos definitivos fundamentados em sintomas transientes. Recentemente, por razões políticas e salariais que fogem ao recorte deste artigo, os médicos psiquiatras deixaram o Ambulatório, dificultando a entrada de pacientes bem como o atendimento médico dos pacientes que já faziam tratamento, pois [estes] precisaram ou se deslocar e aguardar a fila de espera de outro setor ou encurtar a espera pagando por consultas particulares[7]. A prática, no entanto, torna difícil estabelecer a prioridade dos requisitos de entrada no Ambulatório: se apenas pacientes com transtornos psicológicos graves são encaminhados ou se os médicos encaminham pacientes conforme a demanda ou lotação dos setores que ofertam, por exemplo, o processo de atendimento prioritário tende a tornar-se irrelevante. É possível afirmar que apenas pacientes com transtornos graves permanecem em atendimento pelo Ambulatório, ainda que existam relatos informais de diagnósticos definitivos fundamentados em sintomas transientes. Recentemente, por razões políticas e salariais que fogem ao recorte deste artigo, os médicos psiquiatras deixaram o Ambulatório, dificultando a entrada de pacientes bem como o atendimento médico dos pacientes que já faziam tratamento, pois [estes] precisaram ou se deslocar e aguardar a fila de espera de outro setor ou encurtar a espera pagando por consultas particulares[8].

Os procedimentos efetuados com os usuários do Ambulatório são registrados pelos profissionais em prontuário no papel. Os pacientes são identificados conforme o número do prontuário e o médico que os atenderam. A estrutura física do prédio está desgastada pela umidade e tempo; há estantes e ficheiros de metal em todos os espaços, organizando numericamente os [aproximadamente] dois mil pacientes assistidos. Além das informações das informações contidas nos prontuários, a equipe se comunica em encontros imprevisíveis nos corredores do Ambulatório. Serão realizadas, a partir deste ponto, não apenas a comparação, mas a descrição da dinâmica do atendimento de um CAPSad. 

CAPSad

A rede pública de serviços em saúde mental assiste às pessoas com transtornos psíquicos e físicos. Os Centros de Atenção Psicossocial são unidades de saúde regionais ou locais instalados conforme a quantidade populacional compreendida e prevê, através do modelo assistencialista da Reforma, o rompimento dos paradigmas da doença e a promoção de saúde. A Portaria/SNAS nº 224 - De 29 de janeiro de 1992 e a Portaria/GM nº 336 - De 19 de fevereiro de 2002 (esta reitera a primeira) regulamentam a manutenção, as obrigações e as diretrizes que determinam os tipos de CAPS a serem instalados no município. São regulamentadas inclusive, por estas portarias, as competências e recursos do CAPS que serão citadas à frente.

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