O celular

Segunda-feira, seis horas da manhã. O celular, na verdade um smartphone, aciona o despertador e nos acorda.

Caminho até a panificadora para comprar pães para o café da manhã. Depois de um banho e do café, confiro a hora no celular. Visto a roupa do trabalho e levo as crianças à escola. Estaciono o carro por alguns instantes e confiro os e-mails que recebi pelo celular. Chegando ao trabalho, ligo para casa pra dizer à esposa que esqueci a chave de casa no encosto do sofá. Mais tarde, é ela que liga pra dizer pra eu não me esquecer de passar na farmácia de manipulação para comprar o seu remédio.

Dois sinais me dizem que acabei de receber mensagens. Confiro e descubro que o meu plano de saúde já venceu. Pelo celular, transfiro o dinheiro da minha poupança para a conta do plano de saúde através da internet.

Confiro mais quatro vezes a hora até chegar o momento de buscar as crianças na escola. Antes disso, acessei mais cinco vezes a internet e falei com meia dúzia de pessoas pelo celular, a maioria clientes.

Ao chegar à escola, sou informado pela minha filha que haverá uma festa em homenagem aos pais na sexta-feira, com a presença dos mesmos. Confiro a data pelo calendário do celular. O outro filho diz que a professora quer uma pesquisa sobre Santos Dumont para a próxima terça-feira. Confiro a data pelo celular de novo e procuro o nome de Dumont pelo Google.

Cerca de 70% do meu trabalho é realizado com o celular: checagem e envio de e-mails, envio de planilhas de custos para fornecedores, envio de orçamentos para clientes, recebimentos de propostas de contratos com fornecedores, checagem de participação em licitações públicas, etc. Sem demora, mais duas mensagens de texto são anunciadas enquanto dirijo. Confiro, pela internet, a previsão do tempo para à tarde e uso o programa de mapas para conferir o endereço de um cliente.

Já em casa, entro no quarto para tirar a roupa do trabalho e me sinto despido de alguma coisa antes de tirar a camisa. É o celular, que esqueci no porta-luvas do carro. Volto e percebo que recebi mais duas mensagens e três e-mails. Confiro tudo enquanto retorno ao quarto. Após o almoço, já me preparo para retornar ao trabalho, colocando o celular no bolso novamente.

Durante a tarde, checo e-mails, mensagens no WhatsApp, faço cálculos no celular, converso com clientes e fornecedores, agendo consultas, confirmo visitas, vejo a hora certa, previsão do tempo, notícias econômicas, cotação do dólar, congestionamentos, etc. Tudo pelo celular.

À noite, de volta à minha casa, após verificar as últimas chamadas e conferir se o despertador está programado corretamente, deito na cama e pego no sono. Acabo sonhando que acordava no outro dia sem celular. Perdia, assim, mensagens, e-mails, contatos telefônicos de clientes, fornecedores, colegas de trabalho, amigos, familiares, etc. Perdia a hora, esquecia qual era a data e o dia da semana em que estava, esquecia compromissos, enfim, estava totalmente perdido no tempo e no espaço.

Demitido, deprimido e sem saber o que fazer, resolvia então abandonar a cidade e me isolar de tudo. Alugava um barco dizendo que ia pescar, mas, na verdade, dirigia-me a uma ilha deserta, onde pudesse reaprender a pescar e caçar para sobreviver, onde aprendesse a observar as fases da lua, os equinócios e os solstícios anuais, a hora do dia pela posição solar, as marés, os regimes de chuvas, os pontos cardeais, a direção dos ventos, enfim, voltasse a depender da natureza e não de um mísero celular que parecia ter nascido comigo.

Finalmente, chegava ao lugar paradisíaco com todas as características que esperava: praia, coqueiros, muitas árvores e provavelmente animais para servir de alimento. Explorava o lugar e descobria que nele havia um habitante. Cabelos e barba grandes e grisalhos, vestes simples e rasgadas, pele queimada do sol, sem dúvida, era um ermitão que esquecera há muito tempo como é dura a vida na metrópole. Eu corria em sua direção para perguntar seu nome e para pedir que me ensinasse tudo o que sabe sobre a natureza e explicasse todas as coisas que aprendera em todo esse tempo de contato com a mãe natureza. Ao me ver, ele me olhava surpreso e, diante de minhas perguntas, franzia a testa com ar de preocupação, coçava a cabeça e dizia:

― Ah, meu filho! Depois que a onda levou meu celular, eu não sei mais nem que dia é hoje!