O abafador tem também um significado que relembra os recônditos caminhos que a morte percorre para buscar os escolhidos para a viagem eterna. Faz-me lembrar daquele filme do Ingmar Bergman, O Sétimo selo.  No filme a morte persegue o escolhido avisando-o que chegara a sua hora. Para tentar adiar a partida, o homem propõe a morte jogarem uma partida de xadrez. A morte concordou, pois ela nunca perde, e o jogo foi realizado. Jogar com a morte só se eu fosse um Kasparov, que tem na memória quase todas as probabilidades de jogadas, mesmo assim com reduzidas chances.

Mas voltando ao abafador, era assim que em Portugal e no Brasil colônia se designava o “mensageiro da morte”. Mas não era um mensageiro que chegava em espírito e somente o futuro morto conseguia vê-lo. O abafador era de carne e osso. Nas profundezas do Brasil até o século dezenove, quando um doente daqueles que não conseguia mais se levantar e se transformava em um peso para a família, o tal mensageiro da morte era chamado para acelerar o processo. A prática estava entre os costumes judaicos e dos cristãos novos, mencionada no Velho Testamento. Ele chegava a qualquer hora do dia ou da noite dava uma olhadinha no enfermo, reunia toda a família para as orações de praxe e depois pedia que todos saíssem do aposento, encostava a porta e iniciava o seu ofício.

Sozinho com o doente, o abafador, sentado sobre o peito do moribundo e com os joelhos sobre os seus braços, pegava o travesseiro e abafava o seu rosto. Em pouco tempo, o doente dava o seu último suspiro, sufocado. Às vezes era necessário, esganar o moribundo com as mãos, como narra o escritor Miguel Torga em seu conto “O Alma Grande”.

O abafador como um bom crente, fazia as orações de encomenda do corpo, ajeitando as mãos do defunto e fechando-lhe os olhos para tirar-lhe a expressão de horror. Em seguida os familiares eram chamados para entrarem e verterem as lágrimas pelo  morto.  As famílias bem aquinhoadas mandavam chamar, de longas distâncias, as carpideiras, profissionais especializadas nas últimas exéquias.

Ainda adolescente, descobri esse ritual de eutanásia e comentei com minha mãe. Ela fez o sinal da cruz e contou-me, em segredo, um sinistro caso contado por sua avó, que ocorreu em Minas no século dezenove. A história era de um doente muito rico, cuja demora em morrer estava causando muita ansiedade nos herdeiros que estavam loucos para colocarem as mãos no quinhão do patriarca. Foi aí que resolveram acelerar o processo chamando um abafador, que chegou a casa como um médico para fazer uma consulta. Como o serviço encomendado estava demorando demais, os familiares abriram a porta do quarto e se depararam com o abafador esganado ao lado da cama e o doente sentado e rezando. O final da história é previsível. O rico senhor deserdou todos os responsáveis pela encomenda e viveu mais alguns bons anos, até que chegou o seu dia, não sem antes deixar em testamento todos os seus bens para a Igreja. Quanto ao abafador, foi enterrado às escondidas num local ermo da fazenda e nunca mais se ouviu falar dele.

Não se sabe ao certo quando esse estranho ofício desapareceu de nossas plagas, mas no século XX não há menções sobre sua existência. Meu avô, bem velhinho, tinha horror a hospitais, pois segundo ele, as enfermeiras ministravam o chá da meia noite. Nunca soube do que era feito esse chá. Podia ser um chá envenenado que ele imaginava existir para se livrarem dos velhos sem futuro ou ainda um terrível abafador que atuava nos hospitais do interior para abrir vagas para novos enfermos.

E não faz muito tempo que uma “abafadora” moderna foi condenada em Curitiba por ter encaminhado dezenas ou talvez centenas de doentes terminais, aplicando técnicas mais avançadas. Segundo li nos jornais, injeções providenciais levavam os doentes para a outra dimensão antes do tempo.