Literatura do mundo bíblico: Mesopotâmia e Egito

Quando falamos em Mundo Bíblico não podemos nos deter apenas na Palestina, espaço em que se instalaram os israelitas. Sua história está associada e interligada a diversos povos mesopotâmicos, aos egípcios, aos gregos e aos romanos. De várias formas e por diferentes motivos essas regiões e povos são reincidentes nos escritos bíblicos.

Estamos chamando a produção dessas regiões de literatura extra-bíblica por motivos óbvios: não fazem pare dos escritos que compõem aquilo que denominamos de bíblia. Alguns são textos muito mais antigos que os mais antigos escritos veterotestamentários. Mas são outras literaturas.

Vamos partir de uma indagação: Que tipo de literatura o mundo antigo produziu? De forma simplificada poderíamos dizer que os povos antigos, independentemente de local ou época produziu escritos religiosos narrando seus mitos e cerimônias sagradas; jurídicos/comerciais, para definir acordos e registrar transações comerciais; e históricos para registrar os feitos dos monarcas. Em relação aos egípcios Burns (1986, p. 61) afirma que “a literatura egípcia era, em grande parte filosófica e religiosa”.

Por sua vez Giordani (1981, p. 59) nos informa que a escrita hieroglífica, além de ser muito antiga “encerrava algo de misterioso e sagrado”. Com o transcorrer do tempo os sacerdotes fizeram uma simplificação dos hieróglifos, criando o hierático, o qual era usado quase que unicamente por eles. Usando “inscrições pintadas em couro, fazenda e, principalmente, no papiro” (GIORDANI, 1981, p. 59) os sacerdotes popularizaram o hierático no final do terceiro milênio aC, durante a I dinastia. E o mesmo autor, comentando a literatura egípcia, continua:

A literatura egípcia foi extremamente rica. Na pedra, na madeira ou nos papiros, os egípcios cultivavam o prazer de escrever, realizando uma notável obra que encerra diversos gêneros literários: a Epopeia, a Lirica, a Sátira, o Romance, o Conto Popular, a Didática e a própria história (GIORDANI, 1981, p. 92)

Por fim, podemos concordar com vários autores os quais afirmam haver semelhanças entre alguns escritos egípcios e textos bíblicos. Giordani (1981) menciona como exemplo o fato de que as “Trinta Sentenças do Intendente do Trigo do Egito apresentam estreita semelhança com algumas passagens dos Provérbios de Salomão”. E no mesmo parágrafo o autor ressalta “que o fato de um hagiógrafo haver utilizado qualquer obra de outra literatura, não afeta, em si, a doutrina da inspiração bíblica” (GIORDANI, 1981, p. 94).

Tendo sido rica, a literatura egípcia desenvolveu um gênero de texto que nos é bastante popular, em virtude de sua referência no cinema: trata-se do livro dos mortos que não verdade, como comentam alguns altores trata-se muito mais de um livro dos vivos e para a vida que da morte. Trata-se de textos que eram deixados nos túmulos com orientações para a vida pós morte. Vários deles são conhecidos atualmente.

Também não nos é estranha a literatura mesopotâmica. Entre os povos que se sucederam na Mesopotâmia, os sumérios (juntamente com os acádicos) são mencionados como um dos primeiros a produzir um processo de comunicação escrita. Seguramente sumérios e acádicos, foram povos que “desemprenharam importante papel na História Antiga da Mesopotâmia” afirma Giordani, (1981, p. 123)

E isso ocorreu porque esses povos foram precursoras na organização da sociedade urbana, com um sistema sociopolítico estruturado. E justamente em razão dessa organização urbana foi que sentiram a necessidade e desenvolveram o processo de comunicação escrita. “A mais alta realização dos sumérios foi o seu sistema de leis” anotado-as em tabuinhas de argila, afirma Burns (1986, p. 80),

E assim, se admitirmos que os escritos mais antigos de que se tem notícia são mesopotâmicos e egípcios, podemos buscar uma resposta mais precisa para nossa indagação inicial. Então reformulemos a indagação: sobre o que escreveram os egípcios e os mesopotâmicos? Os escritos desses povos tiveram alguma influência sobre a literatura bíblica?

E da mesma forma que a literatura egípcia influenciou – ou tem correspondente na literatura bíblica – entre os mesopotâmicos não foi diferentes. O texto de Enuma-elish, justamente as primeira, quarta e quinta tabuinhas lembram, perfeitamente, a narrativa do gênesis sobre a criação do mundo.

Depois de o herói Marduk ter conquistado e lançado por terra os seus inimigos, e ter feito o mesmo ao arrogante inimigo e ter estabelecido o triunfo de Ansar sobre o inimigo e ter alcançado o propósito de Nudimmud, sore os deuses cativos ele fortaleceu a sua prisão, para Tiamat, que ele conquistou, ele se voltou. E o senhor permaneceu sobre as partes ocultas de Tiamat, e com o seu implacável bastão ele esmagou a sua caveira.

Cortou todos os canais do sangue dela, e fez com que o vento do Norte o arrojasse para os lugares secretos. Os seus pais atentaram, e se regozijaram e ficaram alegres; presentes e ofertas lhe foram trazidos. Então o senhor descansou, olhando intensamente para o corpo dela morto, enquanto dividia a carne de [Tiamat], e punha em prática um plano desenvolto.

Ele a separou como um peixe sem escamas em duas metades; metade dela a estabeleceu com uma coberta para o céu. Fixou uma plataforma, postou uma sentinela, e ofereceu-as para não deixarem as suas águas saírem. (ENUMA-ELISH, 2013)

 

Na epopeia de Gilgamesh, quando o povo lamenta suas dores os deuses os ouvem. Como se pode ler na narrativa do Êxodo 2,23-25; 3,1-6, ocasião em que Iahweh ouve, vê e desce para libertar seu povo. O texto em questão afirma:

Os deuses escutaram o lamento do povo. Os deuses do céu gritaram para o Senhor de Uruk, para Anu, o deus de Uruk: "Uma deusa o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à força de seus braços. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos; e é este o rei, o pastor de seu povo? Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado, nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre." Depois de Anu ter escutado seu lamento, os deuses gritaram para Aruru, a deusa da criação: "Vós o fizestes, oh, Aruru, criai agora um outro igual; que seja tão parecido com ele quanto seu próprio reflexo;que seja seu segundo eu, coração tempestuoso com coração tempestuoso. Que eles se enfrentem e deixem Uruk em paz." (EPOPEIA DE GILGAMESH, 2017)

No parágrafo seguinte, dessa mesma narrativa a deusa que ouve a reclamação age como o Deus bíblico da criação, criando um homem do barro:

A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu. Havia nele virtudes do deus da guerra, do próprio Ninurta. Seu corpo era rústico, seus cabelos como os de uma mulher; eles ondulavam como o cabelo de Nisaba, a deusa dos grãos. Ele tinha o corpo coberto por pelos emaranhados, como os de Samuqan, o deus do gado. Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. (EPOPEIA DE GILGAMESH, 2017)

Como se pode perceber a literatura mesopotâmica também pode ter influenciado aqueles que fizeram a redação final do texto da bíblia. Sem questionar a inspiração divina para a redação bíblica, não podemos negar a ação humana nesse processo inspirado. E o homem, como não poderia deixar de ser, é sempre um ser situado; um ser cultural; um ser que recebe as influências do seu contexto histórico e geográfico. Por esse motivo, a forma textual da bíblia, ou seja, a bíblia enquanto literatura humana é resultante da interação cultural.

Referências e leituras complementares

ALVES, Alexandre; OLIVEIRA, Letícia F. Conexões com a história. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2016

BÍBLIA comigo: disponível em: https://www.capuchinhos.org/biblia2/biblia-comigo acesso em 25/11/2017.

CAGLIARI, Luiz Carlos. A Origem do Alfabeto. Disponível em: https://dalete.com.br/saber/origem.pdf acesso em 26/12/1017

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. S. Paulo: Ática, 2000.

CARNEIRO, Neri de P. O Nascimento da História ou o processo humano. In: www.webartigos.com. Publicado em 25 de Janeiro de 2010. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/o-nascimento-da-historia-ou-o-processo-humano/31570#ixzz4zqXSiVCy. Acesso em 29/11/2017

ENUMA-ELISH: O Épico Da Criação. Tradução L.W. King. Disponível em: https://docplayer.com.br/37012145-Enuma-elish-o-epico-da-criacao-l-w-king-tradutor.html . Acesso em 15/07/2013

EPOPEIA DE GILGAMESH - Tradução de Carlos Daudt de Oliveira. Disponível em: https://geha.paginas.ufsc.br/files/2017/04/A-Epop%C3%A9ia-de-Gilgamesh.-Tradu%C3%A7%C3%A3o-de-Carlos-Daudt-de-Oliveira.-Martins-fontes-2011.-ISBN-85-336-1389-X.pdf. Acesso em 02/09/2017

GIOVANI, Mário Curtis História da Antiguidade Oriental. 5 ed. Petrópolis: Vozes. 1981

GOMES, Eduardo de Castro. A escrita na História da humanidade . In. Dialógica, Revista Eletrônica da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas. vol.1 n.3. 2007. Disponível em: https://dialogica.ufam.edu.br/dialogican3.htm. Acesso em: 16/11/2017

QUEIROZ, Rita de C. R. de. A informação escrita: do manuscrito ao texto virtual. in. Laboratório de Interação Mediada por Computador - UFRGS. Portal da escrita coletiva - links. 2005. Disponível em: https://www.ufrgs.br/limc/escritacoletiva. Acesso em 16/11/2017

SANTIAGO, Emerson. Crescente Fértil. In: infoescola.com. Diponível em: https://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/ acesso em: 30/ 11/ 2017

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação; filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO