Literatura do mundo bíblico: a literatura bíblica

Aos escritos que nos dias atuais fazem parte da bíblia podemos denominar de “literatura bíblica”. Nunca é demais repetir que esses escritos representam a mensagem de Deus para a humanidade. Podemos, inclusive, dizer que os diversos textos e livros que compõem a bíblia formam um canal de comunicação de Deus com a humanidade.

No site www.capuchinhos.org (2008), na página da Bíblia on line, os freis capuchinhos de Portugal dizem que por meio da bíblia Deus “revela a si mesmo e nos dá a conhecer o mistério da sua vontade”. E os freis continuam, afirmando que essa revelação, aos homens ocorre por meio de “outros homens”:

Deus falou aos homens através de outros homens por Ele escolhidos para esse fim, mas sobretudo por meio de seu Filho, Jesus Cristo (Heb 1,1-2). Desse modo, a Palavra de Deus tornou-se linguagem humana sem deixar de ser Palavra de Deus, assim como o Filho de Deus se fez homem sem deixar de ser Deus; e sujeitou-se, tal como Ele, às limitações e condicionamentos da palavra humana, excepto no erro formal (CAPUCHINHOS.ORG, 2008)

A literatura bíblica, portanto, é a palavra de Deus. Mas é uma palavra – canal de comunicação – que depende duplamente do homem primeiro para ser captada e redigida e depois entendida e vivenciada. No primeiro momento pessoas “escolhidas” interpretaram sua vida como sendo espaço de uma ação divina e, em resposta a isso, registraram essa experiência que, num determinado momento foi redigida. Somente muito tempo depois foi que outros homens, ao lerem essa mensagem escrita, se convenceram de que o texto em questão era palavra de Deus.

Para dizer de outra forma, podemos nos valer das palavras do pastor H. H. Rowley. O que ele afirma a respeito dos profetas e dos apocalípticos, pode ser dito a respeito de toda a literatura bíblica. Confiramos suas palavras:

Eram homens que falavam para sua própria geração e o faziam porque sentiam um impulso divino dentro de si. A forma e o conteúdo de sua mensagem variavam de idade para idade, de acordo com as circunstâncias e condições de seus dias. Mas a mensagem era sempre o consciente pronunciamento aos homens a respeito do que era crido ser palavra de Deus a eles ( Rowley, 1980, p. 15. Grifos nossos).

Num segundo momento, o texto escrito e preservado, gerou nas pessoas ou grupos de pessoas um processo de sintonia ou a necessidade de confrontar sua vida com a proposta do texto. Dessa forma o texto como que passou a cobrar uma resposta do homem-comunidade. E assim, em todas as épocas esse texto/palavra de Deus dependeu e esperou do homem uma resposta.

E aqui se manifesta um problema. Não em relação à palavra de Deus, mas em relação ao homem que a redigiu e a interpreta. Ocorre que estamos distantes do mundo que produziu essa Palavra: Distantes culturalmente, pois vivemos no mundo com valores diferentes daqueles do oriente onde a bíblia se formou; distantes cronologicamente, pois vivemos no tempo presente e a palavra de Deus nasceu ao longo de dois mil anos de história e foi concluída há cerca de dois mil anos. Além disso há uma distância geográfica: vivemos num cantinho do Brasil, na América e a bíblia vem do oriente onde viveram os povos que a redigiram.

O site www.capuchinhos.org (2008) os freis portugueses comentam essa distancia afirmando a necessidade de se entender os condicionamentos que separam o mundo atual do mundo que produziu o texto bíblico.

Condicionamentos de tempo: Os livros da Bíblia são fruto do seu tempo. Por isso, se quisermos entender a mensagem de Deus, temos de conhecer o tempo e as circunstâncias históricas em que foi escrito cada um deles.

Condicionamentos de espaço: Os livros da Bíblia nasceram em vários lugares geográficos, cada qual com o seu ambiente próprio: uns na Palestina, outros no mundo helênico e outros no Império Romano. E um livro também é filho do meio em que nasceu.

Condicionamentos de raça: Os livros da Bíblia procedem quase todos do povo semita, mais concretamente do povo judeu, que tem um modo de pensar e de se exprimir muito diferente do nosso. É preciso conhecê-lo, para entender a Palavra de Deus.

Condicionamentos de cultura: Os livros da Bíblia são obra de muitos autores com mentalidade e cultura diferentes, às vezes distanciados entre si por vários séculos. Tudo isso marcou a Bíblia e deve ser tido em conta, pois os autores sagrados, embora escrevessem sob inspiração de Deus, não foram privados da sua personalidade. (CAPUCHINHOS.ORG, 2008. grifos nossos)

Por causa dessas distâncias ou desses condicionamentos o homem atual tem dificuldades para compreender o texto bíblico. Por isso a literatura bíblica parece ser ou é vista como algo complexo.

Além disso, também em virtude dessa distância/condicionamento, nem sempre o homem de hoje se dá conta de que essa literatura é exigente. Não só precisa ser lida com critério, como também precisa ser estudada a partir da compreensão do contexto em que o texto foi produzido. Portanto, a literatura bíblica, para ser melhor entendida, depende de estudo.

É claro que quem ensina é o Espírito de Deus, mas ao homem cabe preparar o ambiente. A semente provém de Deus, mas a preparação do terreno a ser semeado depende do homem. Deus não age sozinho, ele quer contar com a participação humana; Ele quer depender da participação humana. E essa participação/preparação corresponde ao estudo pessoal-comunitário/eclesial e também científico.

Do ponto de vista pessoal-comunitário/eclesial é necessário que o leitor-orante tenha presente que a mensagem divina destina-se a criação-formação-desenvolvimento de uma sociedade melhor. Não se destina apenas à satisfação pessoal, mas social/eclesial. Se Deus quisesse apenas a satisfação pessoal, não haveria necessidade da vida eclesial.

Do ponto de vista científico cabe aos biblistas (exegetas) utilizarem-se dos recursos, inovações e descobertas das outras ciências. A arqueologia, a linguística, a história, a sociologia, a antropologia, a filosofia... e outras ciências sempre trazem inovações e descobertas. O homem de fé e o cientista da fé é aqueles que sabe utilizar essas inovações para lançar novas luzes sobre a literatura bíblica e, dessa forma, poder compreender melhor essa mensagem de vida.

Podemos dizer mais: é necessário que o leitor do texto bíblico parta da fé pessoal, mas leve consigo um farnel de informações: de história, de literatura... sem desprezar as informações da arqueologia, da filosofia e da sociologia. É necessário que se saiba distinguir um mito de uma novela; diferenciar um poema de uma epopeia... Tudo isso ajuda a clarear a mensagem de Deus para nós, hoje. Uma mensagem que tem roupas do passado, mas que anima a festa do presente.

Referências complementares

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CAPUCHINHOS.ORG. Bíblia on line/Bíblia Sagrada. modificada em 26 de abril de 2008. Disponível em: https://capuchinhos.org/biblia/index.php/B%C3%Adblia_Sagrada Acesso em: 12/11/2017.

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_____________________. Canônicos e deuterocanônicos: diferenças que não separamIn: www.webaertigos.com. Publicado em 04 de agosto de 2017. disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/canonicos-e-deuterocanonicos-diferencas-que-nao-separam/152712. Acesso em 19/01/2018

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Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação; filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO