Literatura do mundo bíblico: a geografia e o período

Na maioria das vezes a expressão “mundo bíblico” indica os escritos da bíblia. Mas também pode ser entendido como o universo geográfico e histórico do surgimento da bíblia. Nesse universo localizam-se nações de três continentes (Egito, na África; Grécia e Roma, na Europa e vários povos da região mesopotâmica, na Ásia). O oriente e o ocidente se encontrando ao redor de um centro: o povo hebreu ou israelitas. Povo que viveu a experiência de produzir a bíblia.

Por vezes também nos referimos à própria vida dos israelitas como sendo o chão-mundo originante da bíblia. Pode-se dizer que a vida se converte em texto. A vida, na forma de tradição oral, passa pela escrita e se transforma em bíblia: “Entre a vida, donde brotou e a escrita em que foi fixada, passando pela tradição oral, a BÍBLIA foi vestindo as formas de expressão e comunicação das várias épocas e gerações” (BÍBLIA Comigo, 2017. Grifos no original).

Isso implica dizer que ao longo de várias épocas, diferentes povos e regiões sempre se buscou informações e conhecimentos com a finalidade de mais se aproximar do mundo bíblico. Mundo esse inserido num contexto histórico e geográfico.

O universo geográfico compreende porções da Europa (Grécia e Roma) e a região chamada “crescente fértil” – vales férteis próximos de rios da Mesopotâmia e do Egito. A crescente fértil é

uma área excelente para agricultura, embora esteja cercada por terras áridas. As primeiras sociedades dotadas de escrita e de uma estrutura social complexa formaram-se nessa região, conhecida como o berço da civilização. (ALVES; OLIVEIRA, 2016, p. 43. grifo no original)

A respeito dessa mesma região, onde nasceram e se desenvolveram vários processos civilizatórios, nos informa Santiago (2017):

A região é frequentemente denominada o "berço da civilização", por ser ali o local de nascimento e desenvolvimento de vários povos, que atestadamente, antes de quaisquer outros em outras regiões do planeta, iniciaram o processo de desenvolvimento civilizatório como até hoje o reconhecemos, como por exemplo, através do estabelecimento em um determinado local em detrimento do nomadismo, o desenvolvimento de cidades, da agricultura, da roda, da escrita, de diversas ferramentas, além do desenvolvimento do comércio, isso tudo já existente por volta de 8000 anos atrás naquela mesma área. (SANTIAGO, 2017)

Quando falamos em Mesopotâmia e Egito, além de vários milênios de história, devemos ter em mente uma longa sucessão de povos e reinos que se sobrepuseram dominando uns sobre os outros. Povos esses que produziram valiosas inovações nos conhecimentos, sendo uma delas a escrita. Uma região relativamente grande, mas inóspita devido à presença de desertos e montanhas. E foi, justamente, nos vales dos rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia e do rio Nilo, no Egito, que se desenvolveram importantes civilizações, as quais, ainda hoje têm algo a nos dizer em função de suas contribuições para a humanidade.

No universo geográfico, do mundo bíblico, também se inserem os impérios grego e romano. Além de serem duas das bases da civilização ocidental, entre esses povos se sedimentou a escrita alfabética, utilizada em nossa sociedade. E foi justamente o alfabeto greco-latino – ao lado da escrita hebraica – que nos legou o patrimônio da bíblia.

O mundo bíblico está situado em um período histórico de aproximadamente dois mil anos: embora gire ao redor dos israelitas, diz respeito a vários povos com os quais os israelitas interagiram ao longo de sua história. Começa por volta de 1900 aC, com as tradições a respeito de Abraão e termina no final do ano 100, de nossa era, com os últimos escritos do Novo Testamento.

É claro que as regiões desse universo foram povoadas muito antes do povo bíblico ali se estabelecer. No continente africano os historiadores mencionam vários povos habitando as margens do Nilo, tais como os cuchitas – na região da Núbia, ao sul do Egito, no atual Sudão e os egípcios (os cuchitas e os egípcios são mencionados várias vezes na bíblia). Da mesma forma na região mesopotâmica várias civilizações se desenvolveram, entre elas podemos mencionar os acádios e sumérios (povos mais antigos) e posteriormente os medos, os assírios, os babilônios, entre outros.

E se admitirmos a África como berço da humanidade, podemos retroceder até o paleolítico – aproximadamente cem mil anos antes de Cristo – e nesse período perceberemos a presença humana nessa região genética da humanidade e da sociedade urbanizada. Em que pese essa origem africana, uma das cidades mais antigas de que se tem notícia foi localizada em escavações na atual Turquia. Entretanto os primeiros rudimentos de escrita (cuneiforme) que se tem notícia foram localizados em escavações da civilização suméria e teria sido produzido durante o quarto milênio antes de Cristo.

Cerca de meados do quarto milênio a.C., um povo de que não se sabe nem a etnia nem a ascendência linguística, conhecido por “Sumérios”, invadiu a parte sul da Mesopotâmia e conquistou essa região aos seus habitantes primitivos. A partir dos últimos séculos do quarto milênio, os sumérios […] cultivando uma literatura bastante evoluída [deixaram] arquivos e documentos de um vasto e complexo sistema jurídico, administrativo, comercial e religioso.

A certa altura, durante os primeiros 500 anos da sua ocupação, os sumérios começaram a usar a escrita [...] cuneiforme. (QUEIROZ, 2005).

Como estamos percebendo, nesse universo espaço-temporal desenvolveu-se essa que foi uma das mais importantes obras da humanidade: a escrita. Tão importante que a historiografia tradicional dividiu a evolução humana em antes e depois da escrita (pré-história e história), como, por exemplo, afirma Gomes (2007): “A escrita causou uma revolução tão significativa nas comunicações, que os historiadores estabeleceram o encerramento da Pré-História e o nascimento da História no período em que o homem começou a escrever”.

Cabendo ressaltar, entretanto, que o conceito “pré-história”, pode ser enganoso, pois pode nos sugerir que antes da escrita não havia história. Respondendo a essa questão podemos dizer que história e pré história são duas faces da mesma aventura humana. E mais:

a história nasce com o ser humano. Ou seja, a partir do momento em que se manifesta sua consciência de si o homem inicia seu processo histórico. O que caracteriza o nascimento do ser humano portanto, caracteriza também o nascimento da história. Dessa forma, o longo período que a história tradicional chama de pré-história já é um período histórico. A ação humana no mundo é uma ação histórica, pois sempre é uma ação datada. (CARNEIRO, 2010).

Em espaços e tempos tão diversos, evidentemente, foram produzidos diferentes tipos de escrita (cuneiforme, hieroglífico, alfabético), de gêneros literários e de textos. E isso ocorreu não só porque as sociedades evoluíram, mas por que a evolução produziu novas necessidades: a necessidade de registro. Pensando nisso, numa outra oportunidade já afirmamos:

Podemos dizer que a partir de 4000 aC, nas proximidades dos rios Tigre e Eufrates começaram a se desenvolver algumas das mais antigas cidades e com elas todo um emaranhado sistema de administração, comércio e, consequentemente, novas exigências. Entre as novas exigências da vida urbana aparece a necessidade de registro tanto de elementos do cotidiano político como, principalmente, de transações comerciais. Esse, podemos dizer, é o "momento" do nascimento da história enquanto processo de registro de fatos do cotidiano. (CARNEIRO, 2010).

O nascimento da escrita, portanto, está associado a estas importantes dimensões da vida social: o comércio, a política e a religião. O comércio pelo registro das transações; a política pelo enaltecimento dos monarcas e seus feitos militares; a religião por ser um dos mecanismos mais antigos de agregação social, preservação de valores e manutenção da sociedade.

Mesmo sendo Egito e Mesopotâmia as regiões onde a escrita teria nascido, foi no universo greco-romano, que se definiu aquilo que hoje chamamos de alfabeto. Uma criação que facilitou a preservação das tradições, das crenças, dos conhecimentos e das demais dimensões vida social e da cultura.

No esforço para adaptar à sua língua o sistema de escrita já estabelecido para os fenícios, os gregos seguiram o mesmo princípio acrofônico da escrita fenícia. Começaram adaptando os nomes das letras lendo-os à moda grega. Assim, ale passou a se chamar alfa, beth passou a se chamar beta, e assim por diante. O conjunto das letras recebeu um nome composto pela soma das duas primeiras, ou seja, alfabeto (Cagliari, 2017. grifo no original)

Com o alfabeto greco-latino (que teve como um de seus principais pontos de origem a cultura fenícia) foram produzidos praticamente todos os escritos neotestamentários – inclusive vários apócrifos dos gêneros apocalípticos, epistolares e evangélicos.

Entretanto a ideia de documentar não só o cotidiano mas a interpretação que dele se faz, é anterior aos gregos e romanos. Remonta aos “povos das cavernas”, os quais registraram suas impressões e interpretações do dia a dia em desenhos nas paredes da cavernas. Desenhos que, no transcurso das origens da escrita, e de forma estilizada podem ser aproximados dos ideogramas egípcios e a escrita cuneiforme dos mesopotâmicos.

Não cabe, aqui, comentar as criações dos chineses, indianos e dos vários povos pré-colombianos que também organizaram seus sistemas de comunicação. Nosso objetivo é entender apenas o caminho que nos leva às origens da escrita que teve influência sobre os escritos bíblicos.

Assim, quando buscamos as origens da escrita – e particularmente dos escritos bíblicos – devemos percorrer um longo período histórico e inúmeras regiões em diferentes continentes. Partindo disso podemos dizer que a escrita não é obra de um só tempo e lugar, mas é uma criação que se desenvolveu em um período longo e num espaço muito amplo. Nesse enorme espaço-tempo desenvolveram-se não só os primeiros modelos de comunicação escrita como também muitos dos gêneros literários que ainda hoje apreciamos e utilizamos.

Referências

ALVES, Alexandre; OLIVEIRA, Letícia F. Conexões com a história. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2016

BÍBLIA comigo: disponível em: <https://www.capuchinhos.org/biblia2/biblia-comigo> acesso em 25/11/2017.

CAGLIARI, Luiz Carlos. A Origem do Alfabeto. Disponível em: <https://dalete.com.br/saber/origem.pdf> acesso em 26/12/1017

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. S. Paulo: Ática, 2000.

CARNEIRO, Neri de P. O Nascimento da História ou o processo humano. In: www.webartigos.com. Publicado em 25 de Janeiro de 2010. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/o-nascimento-da-historia-ou-o-processo-humano/31570#ixzz4zqXSiVCy. Acesso em 29/11/2017

GOMES, Eduardo de Castro. A escrita na História da humanidade . In. Dialógica, Revista Eletrônica da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas. vol.1 n.3. 2007. Disponível em: <https://dialogica.ufam.edu.br/dialogican3.htm>. Acesso em: 16/11/2017

QUEIROZ, Rita de C. R. de. A informação escrita: do manuscrito ao texto virtual. in. Laboratório de Interação Mediada por Computador - UFRGS. Portal da escrita coletiva - links. 2005. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/limc/escritacoletiva>. Acesso em 16/11/2017

SANTIAGO, Emerson. Crescente Fértil. In: infoescola.com. Diponível em: https://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/> acesso em: 30/ 11/ 2017

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação; filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO