AUTARQUIA MUNICIPAL DE ENSINO SUPERIOR DE GOIANA- AMESG

FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROFESSOR DIRSON MACIEL DE BARROS - FADIMAB

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE GOIANA- ISEG

ESPECIALIZAÇÃO EM METODOLOGIA DO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA

 

Paulo Roberto de Farias Souza[1].

[email protected]

 

Orientadora: Carla Karina Freitas da Silva

Coorientadora: Andréia Paula da Silva

 

LÍNGUA COMO IDENTIDADE CULTURAL DE UM POVO: UMA ANÉLISE A PARTIR DO FILME NARRADORES DE JAVÉ

RESUMO

Este presente artigo visa analisar a língua como identidade cultural de um povo, como sistema variável que se constrói ao longo da história, que estabelece interação e relação de poder entre os falantes. Essa análise se fará a partir do filme Narradores de Javé, de Eliane Caffé, exibido em 2003. Este é um exemplo perfeito da dominação da elite e do poder da língua enquanto identidade histórica e cultural de um povo, fadado ao esquecimento em decadência da incapacidade de utilização do discurso a seu favor. Dar-se-á relevância aos conceitos de Dijk (2008) no que se refere ao poder estabelecido entre as classes falantes de uma mesma língua e também do abuso desse mesmo poder; Thompson (2000) na abordagem da concepção de ideologia que se materializa no discurso que, por sua vez é materializado pela linguagem; Antunes (2009) no tocante a relação existente entre língua, cultura, identidade e povo; e, por fim, Lucchesi (2004) quando aborda-se a língua na concepção de sistema e na questão das mudanças linguísticas. Observa-se aqui um olhar voltado para realidade social, cultural, e acima de tudo linguística dos indivíduos do filme Narradores de Javé. Essa perspectiva vale-se das teorias dos autores acima mencionados.

Palavras – Chave: Língua, Identidade, Poder.

ABSTRACT

This gift article aims to analyze the language and cultural identity of a people, as a variable system that is built throughout history, establishing interaction and power relationship between speakers. This analysis will be done from the Storytellers film, Eliane Caffé, displayed in 2003. This is a perfect example of the domination of the elite and the power of language as a historical and cultural identity of a people, doomed to oblivion in decline of disability the use of speech in their favor. It will give relevance to the concepts of Dijk (2008) with regard to power established between the speakers of the same language classes and also the abuse of that power; Thompson (2000) in addressing the ideology of design that is embodied in speech, in turn is embodied in the language; Antunes (2009) regarding the relationship between language, culture, identity and people; and finally Lucchesi (2004) when it approaches the language in system design and issue of language changes. It is observed here a look facing social, cultural, linguistic and foremost of individuals of Yahweh Storytellers film. From this perspective it draws on the theories of the aforementioned authors.

Key - Words: Language, Identity, Power.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por finalidade através da análise de discurso e pesquisa de caráter qualitativo estudar a língua como meio identificador de um povo e que é por meio dela que um falante pode transmitir sua ideologia. Assim também, identificá-la como sistema que possibilita interação social e que é por meio dessa interação que se revela a busca de poder entre as classes. Objetiva-se ainda compreender o processo construtivo permanente da língua, ou seja, a língua em uso e entender a relação existente entre língua, cultura, identidade e povo.

Pois, não podemos definir língua apenas como um conjunto de signos, regras gramaticais e um sistema que se prende a sua utilização centrada na palavra ou nos enunciados solitários. Uma vez que a língua é movimento e está num processo construtivo permanente, é viva. Como nos afirma Irandé Antunes (2009) “a língua comporta a dimensão de sistema em uso [...] mesmo na condição e sistema, continua fazendo-se, construindo-se.”

Em outras palavras é uma língua que constitui o falante, que cresce junto com ele e assim ganha forma. Dessa maneira ela entrelaça- se à cultura, à história e aos costumes sociais de um povo específico, tornando-se um fenômeno que estabelece comunicação. A língua também é um fator determinante do povo como meio de transmissão através da comunicação das suas ideologias.

            Seguindo dessa concepção de língua como identidade de um povo, valendo-se obviamente que ela é móvel, viva e construída junto ao falante analisar-se-á o filme “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé, exibido em 2003, que será a obra corpo desta pesquisa. Os teóricos que auxiliarão nesta linha de pesquisa serão: Antunes (2009), Dijk (2008), Thompson (2009), Freire (2006), Bakhtin (1999) e Lucchesi (2004).

A escolha do tema se deu a partir da leitura do livro de Irandé Antunes, “Língua, texto e ensino – Outra escola possível” (2009), e foi amadurecida após uma conversa com a professora Andréia Paula. Pois, a mesma sugeriu que o tema fosse desenvolvido em torno da análise do filme mencionado acima.

 

  1. 1.    Língua, Identidade e Ideologia

 

Todos os conhecimentos e estudos lingüísticos produzidos no século XX estão relacionados à visão de Ferdinand Saussure. Sua definição sobre língua é que ela é um sistema de signos que exprimem ideias, a um só tempo. O mesmo é centrado na palavra, prende-se ao signo, fica desvinculado das suas funcionalidades, condições de uso e é preso a frases isoladas.   Esses estudos Saussurianos não ficaram aí, eles foram desenvolvidos por outros lingüistas que passaram a valorizar o contexto social e o poder que a língua tem de envolver quem a fala.

Um desses estudiosos foi Irandé Antunes (2009), lingüista brasileira, que nos afirma e leva-nos a concepção de que a língua muitas vezes, diante dessa teoria de sistema de signos, é reduzida, focada apenas na morfossintaxe enfatizando as nomenclaturas e não dá importância aos sentidos, a funcionalidade e nem a finalidade comunicativa. Essa visão restringe a língua. Impede-nos de termos uma visão ampla. Acaba assim, por separar a língua do povo, da identidade e da cultura.

A partir dos estudos lingüísticos voltados à sociolingüística, parte da lingüística que estuda as conexões entre linguagem e sociedade e o modo como usamos a linguagem em situações sociais diversas, percebe-se que esse conceito muda, a língua não é tida como imutável, mas, sim, como um sistema mutável, variável, que se constrói ao longo da história. Segundo Marcuschi (2000) “a língua é uma atividade de natureza sócio-cognitiva, histórica e situacionalmente desenvolvida para promover a interação humana”. Assim sendo, é impossível estudar a língua sem voltar-se para o povo que a fala, a cultura, na qual, estão inseridos, a função e intenção com que essa língua é utilizada. Uma vez que a linguagem é a base ou o suporte através da qual tudo passa de um indivíduo para outro, ou seja, ela é a mediadora na comunicação.

Através da linguagem verbal, escrita ou gesticulada acontece a interação, portanto, estudar a língua fora do contexto interacional é negar o seu sentido mais amplo de mediar atitudes sociais entre indivíduos.

Restringir-se, pois, à análise dos fatos da língua, como se ela estivesse fora das situações de interação, é obscurecer seu sentido mais amplo de condição mediadora das atuações sociais que as pessoas realizam quando falam, escutam, lêem ou escrevem. É subtrair das línguas o que de mais significativo elas têm: seu poder de significar, de conferir sentido às coisas, de expressar esses sentidos e, sobretudo, de mediar as relações interpessoais envolvidas na interação social. (IRANDÉ, 2009. P. 21-22)

A partir dessa concepção sociolinguística da autora, falante e língua não estão em caminhos separados. A língua é um processo, um fazer permanente, um trabalho coletivo, produzido pelos falantes em cada momento em que há interação por meio da fala ou da escrita como defende Irandé (op. Cit) e também Marcuschi (2000).

Essa interação dá a língua o caráter de uma atividade social e ao mesmo instante de que ela não é um produto acabado como nos afirma Lobato (1952) “uma língua não para nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre”. Outro fator importante que mostra a dinamicidade da língua é o dialogismo presente nela, este é um princípio constitutivo da linguagem.

Portanto, quando se fala nessa mobilidade, nessa evolução lingüística é perceptível as variantes, os falares, os diversos modos que essa língua vai adquirindo ao longo da história e na vida dos falantes. Essas variações vão fazendo surgir mais uma definição da língua, não um simples sistema de signos, mas a língua que identifica e caracteriza um povo. Dessa forma, se tratando de identidade linguística não podemos esquecer ou omitir o uso dessa língua e sua funcionalidade, uma vez que ela é um fator importante para evolução da língua como fenômeno histórico social e de interação humana. E a partir do momento que somos constituídos pela língua, construímos nossa identidade através da interação com o mundo que nos transforma; e por conseguinte, transformamos-o.

Essa visão do fenômeno linguístico como atividade e fazer humano traz os estudos da língua para consideração das intenções sociocomunicativas que visam à intenção dos interlocutores.

[...] com efeito, a compreensão do fenômeno linguístico como atividade, como um dos fazeres do homem, puxou os estudos da língua para a consideração das intenções sociocomunicativas que põem os interlocutores em interação; acendeu, além disso, o interesse pelos efeitos de sentido que os interlocutores pretendem conseguir com as palavras em suas atividades de interlocução. (ANTUNES, 2009.p.20)

E assim, através da comunicação, da fala, da interação entre os interlocutores, do uso que a língua se torna viva. As funções dela são perceptíveis a partir da intenção do falante, dependendo do que ele almeja conseguir ao utilizá-la.

Dessa forma, língua e falante não andam por caminhos opostos, contudo faz-se heterogênea, diversificada, individual tendo em vista a realidade histórica-social e cultural de um determinado povo. Nunca distante da dimensão de sistema em uso e que ao ser utilizado traz uma finalidade. Para Lucchesi 2004, “o próprio modo de existir da língua é determinado pela sua finalidade”. Nesta visão a língua abandona o conceito de um conjunto de signos com significante e significado, de regras ou sentenças gramaticais para ser um fenômeno social.

 O sujeito é constituído pela língua e a partir do momento que passa a utilizá-la começa a construir sua identidade e transmite sua ideologia. Ideologia que na maioria das vezes serve para determinar uma relação de poder que se dá de forma mais direta nas situações cotidianas de cada um.

Para a maioria das pessoas, as relações de poder e dominação que as atingem mais diretamente são as caracterizadas pelos contextos sociais dentro dos quais elas vivem suas vidas cotidianas: a casa, o local de trabalho, a sala de aula, os companheiros. (THOMPSON, 2009, p.18)

O autor destaca que não é a interação, o convívio, o meio social que propícia esse fenômeno ideológico da língua entre os indivíduos, ou seja, a interação entre eles. Para Thompson o conceito de ideologia se dá a partir de um interesse geral ligado às características de ação e interação, de poder e dominação, enfim, no meio social. Até porque é por meio da palavra, da linguagem e do discurso que percebemos as manifestações ideológicas.

 Portanto, a relação entre o social e o individual, signo e ideologia, é dinâmica e sempre aberta às reformulações. Essa comunicação se dá de forma livre, tão livre quanto o falante que possui livremente a melhor maneira de estabelecer interação.Pois, é na sociedade que circulam de forma concreta as vertentes ideológicas.

  1. 2.    Linguagem e poder

Desde a antiguidade o ser humano traz consigo a necessidade de comunicação. Para que essa atividade se concretize ele utiliza-se dos diversos modos de linguagens, especificamente, as imagens reproduzidas nas rochas das cavernas, gestos e sinais.

Com a evolução do homem, evolui sua linguagem surgindo a cada dia novas expressões no vocabulário da língua, expressões que caracterizam e trazem novas significações, o que chamamos de dialogismo. Na perspectiva bakhitiniana, o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e a condição para o sentido do discurso, toda enunciação é marcada pela interação verbal e social. Deste modo, podemos atribuir a linguagem a importância de facilitar o processo comunicativo, não dispondo de uma forma fixa, mas de formas diversificadas.

No tocante à linguagem verbal, do uso da língua falada ou escrita, o domínio ideológico coincidirá com o domínio dos signos. Bakhtin (1999) afirma que a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, ela é o modo mais puro e sensível de relação social. É a partir da palavra que as formas ideológicas da comunicação social são reveladas. Assim sendo, para ele, o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes, pois, a língua não é apenas um veículo de transmissão de informação, mas sobretudo, instrumento de poder.

Neste processo de relações entre si em que o indivíduo vive, estabelecido pela interação, em meio à vida social, se estabelece uma busca de poder, ou melhor, uma luta de classes e o meio utilizado como forma de dominação é a linguagem.

Thompson (2009) nos afirma que são as formas simbólicas utilizadas que sustentam a relação de poder e o campo de contestação em que a luta se trava por meio da palavra e símbolos como pelo uso da força. Vale salientar que a linguagem não favorece um ser falante diante de outros, mas são suas escolhas linguísticas no discurso, na fala, que convencem o outro de suas convicções, manipulam-no, garantindo-lhe uma relação de dominação. Dijk, diz que “[...] a língua é a mesma para todos. Em outras palavras, o abuso de poder só pode se manifestar na língua onde existe a possibilidade de variação ou escolha [...]”

Observa-se, assim, que a força e o poder existentes entre um indivíduo e outro, entre um grupo social e outro, dependerá muito da posição e das ideologias dos primeiros. Dependerá das escolhas linguísticas no seu discurso. Tudo girando em torno dos efeitos da língua na sociedade, uma vez que a linguagem constitui um dos mais poderosos instrumentos de ação e transformação social.

Esse instrumento forte é perceptível na sociedade, como já fora dito, mas de modo bem particular nas classes que a formam. Classes que divergem e até possuem poderes umas sobre as outras, indivíduos que por possuírem uma cultura escolarizada, letrada, status social, conhecimento, riquezas manipulam e ocupam um lugar dominante diante dos grupos que não dispõem das mesmas condições.

É assim que se dá a dominação, quando um determinado grupo dispõe de poderes ou possibilidades que não são acessíveis a todos, valendo-se deles para sustentar, dominar e transmitir sua determinada ideologia. E, dessa maneira, a luta mencionada por Thompson (2009) é travada e as escolhas citadas por Dijk (op. Cit) conduz a luta e garante a vitória dominante de um ser sobre outro.

No que se refere ao poder social, que possui muitos conceitos em termos de controle, ou melhor, controle de um grupo sobre outro e seus membros, é então definido como controle sobre ações de outros, ligadas diretamente à comunicação entre os indivíduos, a partir do discurso. Logo, deve-se observar se o interesse de dominar vem de quem exerce algum poder e se isso é contrário aos interesses do indivíduo que sofre a influência dos poderosos, se assim for, aí há uma relação de abuso.

Então o discurso de controle entre sujeitos é uma maneira mais óbvia de como o discurso e o poder estão relacionados. Um manda e o outro obedece, sempre há um que não possui liberdade, não é livre para se expressar, pois, o discurso controla as mentes:

O controle se aplica não só ao discurso como prática social, mas também às mentes daqueles que estão sendo controlados, isto é, aos seus conhecimentos, opiniões, atitudes, ideologias, como também às outras representações pessoais ou sociais. (DIJK, 2008, p. 18)

Observa-se assim que controlando as mentes, as atitudes também serão controladas. Isso é trabalhado a partir do discurso, do poder da fala, que ao ser dirigido a um determinado público ou pessoa a ideologia do emissor vai prevalecendo diante da do interlocutor. Esse processo se dá de maneira indireta, mas tem um grande poder de dominação e convencimento. É, verdadeiramente, o que se pode chamar de “lavagem cerebral”.

Diante desses conceitos de como a linguagem favorece o poder e de como esse se faz através do discurso, não se pode esquecer que todos são falantes de uma mesma língua dinâmica, todos portadores de um mesmo falar, conscientes de suas variações, mas guiados no processo interacional, de troca de informações é a mesma.

Mas, dentro desse grupo de pessoas, de falantes, de interlocutores existem os que não dominam a língua escrita, fator de fragilidade, que representa uma carência dessas pessoas e muitas vezes a massa dominante utiliza-se dessa realidade para exercer seu poder de dominação sobre eles. A essas pessoas atribui-se a denominação de analfabetos. Podem até dominar a língua falada, expressar seus sentimentos, suas histórias, no entanto, não conseguem a escrita. Não conseguem transformar em palavra escrita o que é dito através da fala.

Paulo Freire (2006) fala muito da importância do ato de ler e da alfabetização. O quanto as pessoas que não leem, não passaram pela educação escolar são oprimidas, é claro que a leitura antes de ser da palavra ela é do mundo. Todavia essa não é suficiente diante de uma sociedade elitizada que massacra e oprime pela informação, pela ideologia egoísta de uns, nessa situação a palavra terá o poder de salvação:

O caráter mágico emprestado à palavra escrita, vista ou concebida quase como uma palavra salvadora, é uma delas. O analfabeto, porque não a tem, é um “homem perdido”, cego, quase fora da realidade. É preciso, pois, salvá-lo, e sua salvação está em passivamente receber a palavra – uma espécie de amuleto – que a “parte melhor” do mundo lhe oferece benevolentemente. (FREIRE, 2006, p.28-29)

Isto mostra que o homem que não sabe ler é considerado como esse “homem cego”, fácil de ser manipulado, que pode conhecer a palavra falada, porém, não dispõe da palavra escrita como luz para conduzir suas ideologias e convicções. A todo instante a palavra que o homem precisa é salvadora, é através dela que se transmite quem é, no que se acredita e se almeja.

Porém, para a elite, a massa, o povão, é incapaz de ser conhecedor e de ter sabedoria. Ele e tudo que o envolve não tem importância. Para ilustrar esse pensamento volta-se mais uma vez a Freire (2006):

Do ponto de vista autoritariamente elitista, por isso mesmo reacionário, há uma incapacidade quase natural do povão. Incapaz de pensar certo, de abstrair, de conhecer, de criar, eternamente “de menor”, permanentemente exposto às ideias chamadas exóticas, o povão precisa ser “defendido”. (FREIRE, 2006, p. 32)

De acordo com esse pensamento, a sabedoria popular não existe, a memória e as lutas travadas pelo povo não têm importância, isso é um grande desejo elitista. Dessa forma, é muito mais fácil obter o controle desejado pelos dominadores sobre a massa. Desejar que esse povo seja elitizado é sequestrar deles a própria identidade individual e como grupo.

Assim, segundo Dijk (2008), o controle de um grupo sobre outro acontece porque os dominadores têm acesso a uma gama cada vez maior e diversificada de papéis, gêneros, oportunidades e estilos de discurso. Controlam pelo diálogo, não são apenas falantes, mas tomam iniciativas em encontros verbais ou discursos públicos, determinam o que querem dizer, como dizer e a quem dizer.

  1. 3.    Um olhar sobre o filme “Narradores de Javé”

 

O filme brasileiro Narradores de Javé, exibido em 2003, é um exemplo perfeito da dominação da elite elitista e poderosa e do poder da língua que traz a identidade histórica e cultural de um povo, fadado ao esquecimento em decorrência da incapacidade de utilização do discurso a seu favor.

O enredo retrata a história de um povo que vive num vilarejo denominado, Javé, o qual corre o risco de ser inundado pela construção de uma barragem. Isso tira a tranquilidade de todos, que tentam modificar essa realidade ameaçadora, que possivelmente destruirá Javé e seu povo.

Em meio aos costumes, simplicidade e variações linguísticas próprias da região, eles são informados pelos engenheiros que a única forma de salvar o lugar seria a elaboração de um dossiê, no qual deveriam estar documentados, fatos de valor históricos que tenham o caráter de patrimônio cultural, e que se tornem assim, identidade dessa população, uma vez que não possuem nenhum documento, apenas chegaram e ali permaneceram.

Esse lugar tem uma característica comum a vários povoados existentes nesse imenso país, esquecido pelos governantes: não há escolas, museus, livros, bibliotecas, enfim, não têm acesso a fontes culturais que os tornem conhecedores do que precisam fazer para mudar a situação e evitar o desastre.

Assim sendo, se reúnem na Capela do vilarejo para que todos possam chegar a um denominador comum sobre o que fazer. Apresentam a ideia dada pelo engenheiro da necessidade de escreverem a história do lugar, pois, esse escrito traria para eles o valor de patrimônio histórico e asseguraria a posse da terra. Havendo a necessidade de documentar tais fatos, entre eles, o famoso Antônio Biá, ex-carteiro do lugar que fora expulso por estar envolvido em falcatruas e difamações era o único que podia ajudar nessa tarefa, pois a maioria deles não sabiam escrever.

Biá, assume a missão sem querer, mas esta é a única alternativa que ele tem para pagar sua dívida com o povo. Essa atividade vai se revelando cada vez mais difícil, visto que cada entrevistado apresenta sua visão e opinião de como o vilarejo surgira, sempre colocando a si ou alguém dos seus parentes como protagonistas da situação, embora partindo e voltando ao mesmo ponto, o que dificulta a elaboração do tão desejado “documento da salvação”, mesmo que as condições para escrevê-lo sejam favoráveis.

Durante esse período, o poder de Biá aumenta, e chega o momento do dossiê ser apresentado às autoridades, mas isso não acontece, pois Biá apresenta o livro de registros em branco e com essa atitude, as esperanças se perdem. Agora não há mais o que fazer, apenas retirar dali o que era de valor para cada cidadão e esperar que as águas inundem o lugar. E mais uma vez ele enfrenta a ira dos javélicos.

Mas, ao analisar o comportamento do ex-carteiro vê-se que seu argumento convence, pois sabia da impossibilidade de os relatos comporem um documento científico e da fragilidade local perante o poder que afetaria a comunidade. Embora ele não estivesse em condição econômica diferente em relação aos outros moradores, a vivência com a cultura letrada contribuiu para reflexões com base em critérios reais e legais, como o caso da inexistência dos documentos da posse das terras.

Outra vez expulso, o escrivão some por alguns dias, retorna, porém, antes de tudo e passou a registrar efetivamente a história do Vale de Javé, mas com visão de quem foi dali expulso pelas águas e não de quem usufruiria dos benefícios da barragem.

Diante do que é relatado na obra de Eliane Caffé, percebe-se que a mesma conduz o espectador a reflexões mais complexas do que apenas o humor encontrado no filme. Pode-se perceber a importância da oralidade, uma vez que a cultura dos javélicos é totalmente oralizada, mostrando também, o quanto é essencial a cultura letrada, ou seja, a língua escrita. Muitos seriam os fatores a serem abordados e estudados no filme, mas, o que em nenhum momento poderia ficar despercebido é o valor que a leitura e a escrita possuem na vida das pessoas. A língua em si, seja escrita ou falada, nos permite uma identificação, o acesso e o direito à cidadania.

Partindo da concepção de língua como identidade de um povo, valendo-se obviamente do fato de que ela é móvel, viva e que é construída a cada dia junto ao falante, pode-se encontrar no Filme “Narradores de Javé”, esse processo concretizar-se, pois dentro da vida interacional desse povo vemos seus modos de uso da língua, as características sociais e culturais deles. A língua não está distante da realidade histórica e cultural dos javélicos e desenvolve-se nas mesmas condições do seu falante.

Retomando Marcuschi (2000) supracitado no primeiro capítulo, “a língua é uma atividade de natureza sócio-comunicativa”, ela não se faz distante da vida social e comunicativa dos falantes. Porém, eles não dispõem de situações econômicas que proporcionem qualidade de vida, como também não dispõem de lugares que favoreçam o crescimento intelectual deles e os ajudem na formação de argumentos precisos para salvar o povoado. O reflexo disso é a ausência do uso da língua escrita que neste dado momento seria a “palavra da salvação” como é caracterizada por Freire (2006) no capítulo anterior.

Vemos, portanto, um povo que domina a linguagem falada, a palavra oralizada, que são portadores de um discurso, mesmo que marcado pelos dialetos e sotaques próprios da região. Discurso este e o modo dinâmico de utilizá-lo que identificam e caracterizam esse povo. Essa realidade não é imposta, mas sim natural. Pois, segundo Castro (2007) já citado no primeiro capítulo, as diversas identidades linguísticas são estruturadas no início da vida no processo de interação com a família e o meio no qual vive. Portanto, o povo javélico é portador de uma história, cultura e identidade que é marcada apenas pela língua falada.

Mesmo em meio aos desencontros orais de seus discursos, conseguem mostrar suas ideologias, suas histórias através da fala, da linguagem verbal falada. A obra cinematográfica traz um desafio diante do que é abordado no enredo, que é a necessidade de salvar o povoado através da palavra escrita. Porém, perdem o poder de salvá-la por não conseguirem fazer um levantamento coerente de informações necessárias para o dossiê. Não existe uma unificação nos relatos, no discurso, cada cidadão deseja relatar os fatos puxando para si, para a participação de seus supostos descendentes na história de fundação do vilarejo.

Com isso, o discurso deles vai perdendo força, embora todos tenham o mesmo objetivo, mas o poder da palavra salvadora abordada por Freire (2006) citado no segundo capítulo deste artigo, não existe. Não há nada que concretize, certifique o que eles narram e assim vão perdendo tempo nessa tentativa de mudar os rumos de Javé e seu povo.

Pois, para a sociedade elitizada os argumentos dos javélicos não teriam poder para impedir a construção da represa. É o que nos afirmou Paulo Freire anteriormente, quando disse:

Do ponto de vista autoritariamente elitista, por isso mesmo reacionário, há uma incapacidade quase natural do povão. Incapaz de pensar certo, de abstrair, de conhecer, de criar, eternamente “de menor” [...] (FREIRE, 2006. P.32)

            O discurso deles não interage com o discurso elitista. Portanto, a ideologia elitizada prevalece sob os conceitos e a ideologia do povão de Javé. Essa incomunicabilidade, esse controle se dá por determinados fatores: primeiro as condições financeiras, a posição social, conhecimentos e o discurso são diferentes. Depois, quem detinha o poder e o domínio da língua escrita eram os engenheiros e todos os que estavam por trás da construção.  Isso enfraquecia a mobilização javélica que já estava desencontrada em seu próprio discurso.

            A cultura letrada presente nos engenheiros, na sociedade elitizada que estava nas diretrizes da represa, faltava aos javélicos. Essa falta de letramento neles pode ter sido observado pelos engenheiros e os mesmos utilizaram a produção do documento, por já saberem que os mesmos não conseguiriam.

CONSIDERAÇÕES

Esse estudo possibilitou conhecer a flexibilidade da língua, assim como, proporcionou um conhecimento social, cultural e histórico. Uma vez que os estudos sociolingüísticos não separam a tríplice: língua, identidade e cultura. Pois, segundo Antunes (2009) vemos que, “é nesse âmbito que podemos surpreender as raízes do processo de construção e expressão de nossa identidade ou, melhor dizendo, de nossa pluralidade de identidades”. Assim sendo, é através da língua que um indivíduo estabelece interação, e ao mesmo instante através dela consegue transmitir suas ideologias ao mundo que o cerca. Essa linha de pesquisa ressaltou que mesmo dentro de uma pluralidade a língua que é opaca se faz concreta na comunicação, na vida e na história das pessoas, e porque não dizer de um povo, possibilitando a interação. A língua não distingue, mas sem dúvidas une os falantes, identificando-se como um sistema interacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. (Estratégia de Ensino; 10)

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.

CASTRO, Antonilma Santos Almeida. Língua e identidade: problematizando a diversidade linguística na escola.Sitientibus, Feira de Santana, n. 37, p. 135-149, jul./dez. 2007.

DIJK, Teun A. Van. Discurso e Poder. Judith Hoffnagel, Karina Falcone, organização. São Paulo: Contexto, 2008.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Izabel Magalhães, coordenadora da tradução, revisão técnica e prefácio. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, 2008 (reimpressão).

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 47. Ed. São Paulo, Cortez, 2006.

LOBATO, Monteiro. Emília no país da gramática. São Paulo: Brasiliense, 1995.

LUCCHESI, Dante. Sistema, mudança e Linguagem: um percurso na história da lingüística moderna. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

MARCUSCHI, Luiz Antônio (2000). “O papel da lingüística no ensino de língua”. Conferência pronunciada no 1º Encontro de estudos Linguísticos-Culturais da UFPE, Recife, 12 de dezembro de 2000. Mimeo. (Disponível na seção “Fórum” do site www.marcosbagno.com.br)

MURRIE, Zuleika de Felice et al.Projeto Escola e Cidadania para todos: Língua Portuguesa. São Paulo: Editorial do Brasil, 2004.

THOMPSON, Jonh B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 8 ed. – Petrópolis , RJ: Vozes, 2009.

 

[1] Graduado em Licenciatura Plena em língua portuguesa com habilitação em Língua Inglesa pela FADIMAB- Faculdade de Ciências e Tecnologias Prof. Dirson Maciel de Barros. Pós – Graduando em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela mesma instituição de Ensino Superior