A Torah ocupa lugar central no judaísmo. Tanto as formas de pensamento e de espiritualidade como todos os cismas se definem, no judaísmo, em relaçaão à Torah. Toda a tradição rabínica formou-se em torno da Torah e se enxerta inteiramente nela. Presentemente, na vida de cada dia, é a Torah que concretiza todos os benefícios de Deus a seu povo.

A estima sem igual que tinham pela Torah originou, já no decorrer dos últimos séculos da era bíblica, verdadeira devoção. Disso há a expressão característica no Salmo 119 e igualmente na literatura extrabíblica, como nas partes mais antigas da Mishnah. Essa devoção tende a personificar a Torah, a identificá-la com a Sabedoria, a conferir-lhe uma preexistência junto a Deus e a considerá-la como um dos fundamentos da criação. As especulações dos cabalistas darão a essas idéias da Torah prolongamentos sutis. O lugar que a leitura solene da Torah e o lugar que os próprios rolos da Torah ocupam na sinagoga, bem como as honras litúrgicas de que os cercam, provam essa veneração. O mesmo se poderia dizer dos piedosos cuidados, minuciosamente determinados, que presidem à confecção dos rolos da Torah.

De acordo com uma sentença que remonta aos tannas do séc. II a.C., quando Deus disse a Israel no Êxodo (19,15) “Pertencer-me-eis”, isso significa “Estareis voltados para mim e ocupados com as palavras da Torah e não absorvidos por outras questões”. A vida inteira do judaísmo girará efetivamente em torno da Torah, de seu estudo e prática.

O imenso esforço de estudo, continuado durante séculos por grande número de fiéis no correr da vida inteira, é prova do apreço que o judaísmo tradicional dá ao estudo da Torah. Esse vasto empreendimento de estudo soube conservar o espírito da religião da Torah e não perdeu de vista o que tinha em mira: não um conhecimento teórico da Torah, mas um cumprimento mais exato de suas prescrições, que são “um caminho que conduz à vida”, à justiça, à santidade. Mesmo quando a discussão se torna sutil ou mais abstrata, o alvo continua a ser a ação, a prática. Num trecho característico do Talmud relata-se uma discussão que trata da questão “que é mais importante: o estudo ou a prática?” Rabi Tarfon respondeu: “É a prática”. Mas rabi Akiba replicou: “É o estudo. O estudo é maior, pois ele é que leva à ação”. 

As observâncias da ‘Torah’

Observando fielmente os preceitos da Torah é que o israelita renova a Aliança e realiza a missão de Israel. Ora, o papel da Aliança e da Torah não se limita a certos momentos da vida; cobre-lhe a vida inteira. Nada mais lógico, pois, nessa perspectiva, que multiplicar as prescrições de modo a encerrar a vida toda do indivíduo, da família, da comunidade, de todo o povo como numa rede de observâncias, para fazer de cada gesto, de cada ato, um cumprimento da Torah - uma mitzvah - para consagrar assim a vida toda do israelita, do nascimento até a morte.

A atividade secular dos doutores das academias, escolas e tribunais rabínicos, dos autores ou dos compiladores dos grandes compêndios e codificações, tinham por alvo transmitir toda a Torah, definir-lhe e assegurar-lhe a observância tão perfeita quanto possível. Para isso, procuravam-se determinar as condições de aplicação dos diversos mandamentos da Torah nas diversas circunstâncias; cercá-la de um muro protetor, formado por preceitos suplementares destinados a afastar qualquer perigo de transgressão. Como nos domínios do direito e da jurisprudência, essa atividade legal podia facilmente desviar ora para determinado rigorismo legalista, ora para uma casuística de tendência oposta. Na própria literatura rabínica essas deformações são, uma a uma, severamente criticadas.

A multiplicidade dos preceitos não se fazia, porém, sem inconvenientes. Por isso, procurava-se muitas vezes - desde Hillel o Velho(c.70 a.C.-10d.C.), que já resumira a Torah no amor do próximo - introduzir alguns princípios gerais e uma hierarquia de valores na legislação. Era a essa mesma necessidade de ordem e de clareza que deviam responder, mais tarde, as codificações. Desde o começo da tradição rabínica, já se haviam contado os preceitos contidos na Torah e estabelecido uma lista que se tornaria clássica, compreendendo 613 preceitos, dos quais 248 positivos e 365 negativos. De acordo com o seu objeto, esses preceitos são de importância diversa, e os rabinos os classificaram muitas vezes segundo a ordem de gravidade. Mas como mitzvot - cumprimento da Torah -, têm todos o mesmo valor religioso.

A doutrina da kavanah - intenção religiosa com os motivos em que se inspira - desempenha papel importante na espiritualidade judaica, e a tradição não cessa de propor ao israelita, para a ação, para as observâncias, os mais altos e mais desinteressados motivos: cumprir a Torah de certo modo, por ela mesma, porque é a vontade de Deus, e para ser fiel à responsabilidade tomada por Israel para com Deus, quando se concluiu a Aliança. Mais fundamentalmente ainda: é preciso cumprir os prceitos da Torah para realizar o alvo da eleição de Israel, que é o de glorificar a Deus, santificar-lhe o nome e dar testemunho dele perante o mundo todo.