Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.”

Art. 2º, DUDH.[i]

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Direito, filosofia, dignidade da pessoa humana e autodeterminação como direito humano

 A liberdade é condição sine qua nom para que a pessoa humana, como detentora de direitos individuais exerça sua singularidade através da autodeterminação.

 Kant, ao abordar acerca do imperativo categórico, traz a expressão que mais tarde se tornaria um dos princípios da hermenêutica jurídica: “Toda pessoa é um fim em si mesma, e não um meio para realização de metas coletivas ou projetos dos outros”, citado durante o voto do relator do RE 845.779, Min. Luís Roberto Barroso[ii].

  A constituição federal traz dentre suas clausulas pétreas, no seu art. 1º, III a dignidade da pessoa humana, entendida como requisito para integrar garantias igualmente proporcionadas pelos direitos fundamentais[iii] sem a qual tornar-se-ia inexequível a interpretação dos direitos individuais, e a transformação do povo como seres individuais com garantias particulares; desta forma, a dignidade converte-se em sustentáculo constitucional internacional, como direito a ter direitos (Recht, Rechte zu haben)[iv] (ENDERS, 1997) bem como papel de direito originário a ter direitos (Recht auf Rechte)[v] (ENDERS, 2010).

 Dworkin, estabelece que para a devida legitimação do direito, o Estado deve adotar como padrão e fundamentos: equidade, justiça e o devido processo legal. Em especial, o conceito de justiça, para Ronald Dworkin, versa principalmente acerca do resultado que uma decisão traria; visando por este, propiciar, principalmente, interpretação dos operadores do direito com fundamentações através do respaldo a princípios jurídicos sobre direitos e deveres das pessoas.

 A análise dirigindo o protagonismo do sujeito de direitos não apenas como detentor de direitos e deveres, encontra-se preconizado na doutrina majoritária uma vez que [...] se reconhece a todas as pessoas uma igual dignidade e porque, no relacionamento com os poderes públicos, a pessoa humana é elevada à condição de fim último justificador da própria existência do Estado, que as Constituições consagram um elenco de direitos fundamentais destinados a assegurar juridicamente a autonomia, liberdade e uma vida condigna a todos os cidadãos (incluindo potencialmente, para prosseguir adequadamente esses fins, os direitos fundamentais de liberdade e de igualdade e os direitos fundamentais sociais)[vi].

 Entende-se desta forma, que não reconhecer os direitos de personalidade individuais de uma pessoa, através da alegação de incômodo subjetivo de terceiros, desta forma o minimalismo judicial com o qual tem-se abordado o tema por diversos executores do direito, choca-se de certa maneira, com valores constitucionais[vii]  uma vez se atêm ao caso específico, sem repercussão em outros casos concretos[viii].

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O recurso extraordinário

 O RE em questão fora reconhecido como objeto de repercussão geral, uma vez que a decisão atingirá, no mínimo, 778 outros processos similares, que foram suspensos, já que aguardam o julgamento do recurso extraordinário 845.779; trata-se da votação acerca do direito de uma transexual, de usar o banheiro feminino, Ama Filho, autora da ação, relata no caso, o constrangimento sofrido ao ser proibida de utilizar o banheiro de um shopping center de Santa Catarina, terminando por fazer as necessidades fisiológicas nas próprias vestes.

 Existe no cerceamento do direito de transexuais ao uso do banheiro do gênero com o qual se identificam, o que Sarmento descrevera como discriminação indireta, implícita, que violam o princípio da isonomia, aparentemente com propósito “neutro” (o silêncio, por exemplo, neste caso), mas cuja aplicação concreta mostra-se prejudicial e estigmatizam grupos vulneráveis[ix], como também suscita Bunchaft em seu artigo, citado anteriormente.

 Fere-se neste caso, não apenas o princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana, mas também outros direitos fundamentais como os dispostos no art.4, II; art.5, III, X. Sendo estes a prevalência dos direitos humanos, proibição do tratamento desumano ou degradante, a honra e vida privada; faz-se necessária a democratização para combater-se o falso reconhecimento[x] que se têm dado a essa minoria.

  Entende-se desta maneira, que é imprescindível para o respaldo legal no sentido de legitimação das garantias dos direitos individuais dos transexuais, somado com a decisão acerca da ADI 4.275 e RE 60.422, algo que esta parte das minorias vulneráveis, todavia não tiveram garantido: o reconhecimento como direito fundamental dos transexuais a serem tratados socialmente de acordo com sua identidade de gênero[xi]

 Enquanto houver o silêncio do poder judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, acerca deste recurso extraordinário, tampouco dar-se-á voz aos direitos político-sociais para que indivíduos possam viver conforme sua autonomia, liberdade e autodeterminação; faltar-se-á o alcance teórico para incrementar a efetivação de direitos de minorias estigmatizadas quando suas demandas são inviabilizadas pela ausência de valor epistêmico do processo político[xii]; como se ter garantidos seus direitos como pessoas humanas, fossem privilégios subjetivos.

 Nesse sentido, concluo com o pensamento do Ministro Luís Roberto Barroso durante seu voto:

“Deixar de reconhecer a um indivíduo a possibilidade de viver sua identidade de gênero em todos os seus desdobramentos é privá-lo de uma das dimensões que dão sentido à sua existência”.

REFERÊNCIAS

[i] Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.

[ii] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 845779. Procuradoria Geral da República. Voto do Ministro Relator, Luís Roberto Barroso. Data de julgamento: 19 de novembro de 2015. Disponível em < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2015/11/Transexuais-RE-845779-Anota%C3%A7%C3%B5es-para-o-voto.pdf> acessado em 3 de março de 2018

[iii] NOVAIS, Jorge Reis. Dignidade da pessoa humana – v. I Dignidade e Direitos Fundamentais.  p. 78. Almedina, 2016.

[iv] ENDERS, Christoph. Die Menschenwürde in der Verfassungsordnung, Tübingen, 1997, p. 502 (apud NOVAIS, 2016)

[v] ENDERS, Christoph.  The right to have rights: the concept of human dignity in German Basic Law, Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, 2010, p. 3 (apud NOVAIS, 2016)

[vi] NOVAIS, Jorge Reis. Dignidade da pessoa humana – v. I Dignidade e Direitos Fundamentais.  p. 69. Almedina, 2016.

[vii] MESQUITA, Caio Cipriano. 2016. O ACESSO AO BANHEIRO POR TRANSEXUAIS COMO CONDIÇÃO BÁSICA PARA O APODERAMENTO DO ESPAÇO PÚBLICO: A UTILIZAÇÃO DA TEORIA DO DESACORDO MORAL RAZOÁVEL NO RE 845.779/SC. Disponível em < http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/25487/1/2016_tcc_ccmesquita.pdf> acessado em 28 de fevereiro de 2018

[viii] BUNCHAFT, Maria Eugenia. O “direito dos banheiros” no STF: Considerações sobre o voto do ministro Luís Roberto Barroso no RE n. 845.779 com fundamento em Post, Siegel e Fraser. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v.8. P.154, 2016. Disponível em <http://abdconst.com.br/revista15/banheirosMaria.pdf> acessado em 3 de março de 2018

[ix] SARMENTO, Daniel. Livre e Iguais. Lumen Juris, 2006. (apud BUNCHAFT, 2016)

[x] FRASER, Nancy. Scales of Justice: Reimagining political space in a globalizing world. Columbia University Press, 2010. (apud BUNCHAFT, 2016)

[xi] BRASIL, op. cit. 

[xii] BUNCHAFT, Maria Eugenia. Op. cit., p. 158-159.