* texto escrito em 1986

A criança ultrajada - introdução

"Quando uma mulher toma a si alguns dos atributos masculinos, deve triunfar, porque se ela intensifica suas outras vantagens através de um acréscimo de energia, o resultado é uma mulher tão perfeita quanto se possa imaginar"

Goethe

Eva Duarte nasceu pobre. Um dos 5 filhos ilegítimos, tidos pela mãe, de um ?aristocrata rural? de Los Toldos. Estava fadada à humilhação e à vergonha.

Sua mãe, a ?outra?, bem como os filhos ? entre os quais estava a pequena Eva, de sete anos de idade ? foi impedida de ir às exéquias do amásio. A família, de poderosos latifundiários, nunca poderia aceitar a presença ?daquela mulher? ali.

Pois bem, filha ilegítima, nascida em uma família sem muitos recursos, com muitos irmãos, Eva procurou sobreviver da melhor maneira possível.

Marilyn Monroe, que tem muito em comum com esta personagem, foi estuprada pelo padrasto, da mesma forma, Eva ?deu um mau passo na vida?. Tinha 15 anos quando conheceu Augústin Magaldi e foi a própria mãe quem a entregou ao cantor de tangos.

Isso tudo é ?lugar comum?, alardeado aos quatro cantos do mundo pela famosa ópera rock. No entanto, ela foi uma pessoa de carne e osso, teve sentimentos, refletiu, viveu e amou...por que nunca é recuperada enquanto ser humano, a sua subjetividade própria?

A história, tornada hermética e impermeável, enquanto construção teórica hiper elaborada, tem se esquecido de resgatar o sentimento. Foi somente com a ?história das mentalidades? que as questões ? consideradas supérfluas e comezinhas pelos áulicos da ?história científica? ? voltaram a ser estudadas.

A dificuldade consiste em retraçar o percurso que vai das regularidades  discursivas, permeadas em torno do ?senso comum? da maioria dos historiadores, à figura real e concreta, à existência física de Eva Perón, não o mito, mas a mulher.

Sobre os últimos anos de sua vida, um misto de euforia e agonia, a própria Eva nos legou a sua obra autobiográfica (a qual só encontramos em inglês, com o título My mission in life) à qual hei de referir-me em outra parte, no entanto, os primeiros anos de sua vida permanecem na penumbra.

Não é difícil de reengendrar o preconceito social da época, recolocando esta pequena campesina ?no seu devido lugar?. Ela foi mais uma vítima de uma situação embaraçosa.

No entanto, a pequena campesina, a criança ultrajada, tinha muita energia. Graças a esta sua qualidade, ela pode não só sobreviver como ascender socialmente e chegar a ser o maior mito feminino da história da América Latina.

 A grande estadista - prólogo

  "Porque os homens são violentos e estão sempre possuídos pelas suas últimas idéias, um obstáculo maior os desvia de seu caminho. Mas uma mulher é perita no inventar planos, e, seguindo o caminho tortuoso, chega, habilmente, a seus fins"
Goethe

"Eva surgiu promovida diretamente desde o aparato de Estado. Uma vantagem exclusiva que não esgota, porém, o fenômeno de sua transcendência política."¹

Eva era o ?arco-íris? da Argentina. Assim ela foi mostrada ao mundo na sua "tournée" triunfal pela Europa. Sua presença efetiva, junto ás massas e à imprensa mundial, acordaram o mundo para a realidade da América Latina. É somente à partir desta excursão pelos países europeus que Eva irá identificar-se indelevelmente à própria Argentina. "Evita" passa a ser a própria Argentina personificada, gloriosa alegoria de sua suposta riqueza e prosperidade.

Mas, no entanto, e a mulher Eva Duarte Perón? O que poderíamos falar sobre a sua figura humana? Ou será possível que deva sempre ser reduzida á figura de uma ?miragem política??

Fiando-nos nas palavras da própria Eva somos levados a crer que ela foi um espírito livre, que possuía um raciocínio arguto e profunda intuição.

  Ligando a figura mundialmente conhecida, de "Evita", uma glória ?hollywoodiana? de proporções desmedidas, com a moça simples, a criança ultrajada, podemos chegar à conclusão de que Eva foi, possivelmente, uma personalidade dividida. De um lado, repleto de altruísmo e generosidade, há a moça simples, ?revoltada com a injustiça?, de outro, no entanto, a mulher seduzida pelo poder. No âmago de suas preocupações sociais mais profundas, como o salário e as seguranças empregatícias para a dona de casa, encontra-se uma infância pobre e uma mãe humilhada pelas circunstâncias.

Promovida pelo peronismo, e sendo principal fator de legitimação deste, a figura de Eva irá se confundir com a de uma grande estadista. Eva torna-se mais importante do que a própria imagem da Argentina real, uma vez que esta imagem é representada revestida de um aparato e de uma glória que não correspondem à realidade social da época.

Figura chave de um regime ancorado no paternalismo e na demagogia, Evita resiste, no entanto, como uma imagem ao mesmo tempo alheia e superior ao mesmo. Mais do que uma estadista, mais do que um pivô ou um esteio sobre o qual o governo de Perón se apóia, Evita ganha voz própria porque ela encarnou em si uma série de ambições e de pretensões sociais. Sua transcendência está consubstanciada na sua fantástica ascensão sócio-política.

Uma bela mulher, que venceu na vida através dos mecanismos próprios a uma mulher, só poderia espelhar um sistema de poder centrado na sedução. É só através da sedução coletiva das massas, e do fascínio, da ascese que esta sedução acarreta, que pode firmar-se um regime deste tipo.

Uma atriz mediana, uma beleza mediana, revestida de poder, tem tudo para tornar-se um grande sucesso. O poder faz parte do fascínio, é um artifício a mais que coroa a aparatosa indumentária de Evita. A bela Eugênia de Montijo, ou Sissi certamente não seriam lembradas como tão belas e sedutoras se não fossem respectivamente a imperatriz da França e a imperatriz da Áustria. A coroa impregna o semblante de uma tal voluptuosidade majestosa, que não pode ser alcançada nem pelo mais eficaz cosmético do planeta.

O seu discurso, mantido com invejável regularidade, faz de Evita a mulher dos sonhos de todo argentino. Ela é dona de fantásticos dons de oratória e de retórica. A adoração pública, a ansiedade e a excitação advindas da fantástica escalada social, o fato de ter sido tornada o centro das atenções, teriam embaraçado Evita, mas, Eva Duarte era uma atriz! A representação de um papel social, o protocolo e a etiqueta, em nada diferiam dos papéis que ela havia desempenhado no cinema e nas novelas de rádio. A estadista estava embutida no corpo de atriz.

Durante sua estada na Europa, Evita deu provas de sua eficiência, exercendo funções de chancelaria. Na realidade, foi este o seu melhor papel, sua grande atuação. Evita, desempenhando as funções de um chanceler, era digna de ser laureada com um Oscar. Longe estavam os dias dos papéis ?açucarados? no cinema e da série As grandes mulheres da história , levada ao ar semanalmente numa rádio portenha.

Sua existência, enquanto mito político, é altamente demonstrativa de sua relevância, enquanto imaginário. Evita consegue reunir os atributos múltiplos de uma sedução e de uma ascese coletiva, via deificação e transcendência.

Aliás, é nos aspectos místicos e míticos que irá firmar-se a figura da estadista: um arremedo de Estado Teocrático  - cujo centro da adoração é a própria Evita ? irá sucumbir ante a força de um mito ainda maior, o da reforma social. A política ?teocrática?, embora não passe de postulação, será abortada pelo discurso da reforma social. O mito do Estado que se faz reformador social é ainda mais forte, no imaginário coletivo, do que o mito da teocracia. O ?culto à personalidade?, prática comum no antigo mundo socialista, é um exemplo de como as duas práticas podem ser conciliadas. Evita soube servir-se igualmente bem de ambas.

Mestra na sedução seduzirá multidões inteiras, milhões rendem-se ante ao seu fascínio. Arguta e perspicaz, cedo percebeu qual era a sua nova função, dentro do Estado e da sociedade Argentina. Enquanto foi viva, encarnou a mais refinada forma de populismo já vivenciada. Uma grande estadista, sem dúvida nenhuma.

 A sacrossanta cortesã da casa rosada - climax

 "As pessoas excepcionais vivem para além dos limites da moralidade; em última análise, o impacto delas é o de uma causa física como o fogo ou a água"
Goethe

"Mas nem Mussolini nem Hitler levaram a sua loucura auto-induzida ao ponto de tentarem publicamente usurpar o lugar de Deus. Perón tentou.(...)Foi nesse ponto que começou a divinização de Perón. Evita deu o tom: ?Só há um Perón...Ele é um Deus para nós...Nosso sol, nosso ar, nossa vida.? Um ministro de governo equiparou Perón a Cristo, Maomé e Buda, como fundador de uma grande doutrina religiosa! A máquina de propaganda começou a espalhar folhetos e alusões dessa espécie.

Ao mesmo tempo, empreendia-se uma campanha para canonizar Evita. Em outubro de 1951, ela foi apresentada a uma multidão peronista como ?Nossa Senhora da Esperança? e o próprio Perón rematou a reunião, proclamando um novo feriado, o ?Dia de Santa Evita?. Depois da morte de Evita, em 1952, aneurose deliberada se agravou. Um porta-voz peronista, falando da sacada do palácio do governo, dirigiu-se a ela como ?mãe nossa que estais no céu?. Exibiu-se um filme intitulado Evita imortal e a revista Mundo Peronista divulgou na capa uma Evita santificada, a quem não faltava a auréola."²

O anjo-demônio, figuração constante em toda a história das artes no ocidente, encontra em Evita sua mais perfeita consubstanciação. ? A fantasy of the bedroom and a saint?, como bem sintetizaram Tim Rice e Andrew Lloyd, na monumental ópera-rock.

A ?mãe dos descamisados?, a ?santa?, era tida por muitos como uma mulher à toa, que subiu na vida através do sexo. No entanto, mesmo a figura da mulher fatal, da adorável sedutora, na é em absoluto uma novidade na cultura ocidental. A novidade está em associar numa mesma figura os hábitos mundanos e seráficos. O único precedente é Madame de Maintgenon, que disciplinou os hábitos libertinos de Luís XIV e sua corte.

A sacralização da figura de Evita, tida como ?espontânea?, surgida no seio do povo, foi na realidade um processo lento e traumático. Esta divinização representa uma perversão dos princípios religiosos ? nos quais, entrementes, parece apoiar-se -  uma vez que estes princípios vão sendo amoldados à imagem e semelhança do Estado Peronista, sincopados por uma convulsão intestina. O paternalismo, a demagogia, a manipulação da mídia estão na gênese deste processo e são as causas mais imediatas do sucesso deste regime.

Como fator de legitimação das relações de poder, a figura da mãe, da ?líder espiritual da nação? não poderia ter sido melhor escolhida: de Cornélia, a mãe dos Gracos, à Elizabeth I ou Vitória, passando por Catarina da Rússia, os povos têm venerado figuras às quais é acrescido um aspecto eminentemente afetivo ao exercício do poder. Os aspectos transcendentes e místicos destas mulheres, que continua a fascinar as gerações subseqüentes, ainda estão por ser suficientemente investigados e explicados.

Acresça-se à mulher ?mistificada e mitificada? a deificação e sacralização, própria dos povos latinos (?santa mama?, ?santa madre?, ?madrecitta?, etc...) à figura da mãe, como bem provam as regularidades discursivas, e poderemos ter uma pequena nuance de quem foi Evita. É bom não esquecer que a Igreja Católica havia realizado um longo trabalho de reforço em relação á figura da mãe, na forma da devoção à Virgem Maria.

A mulher fatal, coberta pela mantilha da fé, coberta de ósculos pelas crianças carentes, sentir-se-á muito à vontade no seu novo papel de ?mãe da pátria? e de ?líder espiritual da nação?. O estatuto de legitimação afetiva e religiosa do qual ela se revestiu foi suficientemente efetivo, por si próprio, para garantir um ?esquecimento coletivo?, uma reconstrução coletiva do passado. Os efeitos dessa deificação são retroativos: ela é santa hoje, logo, foi santa ontem!

Os caracteres mundano-seráficos dos quais Evita estava revestida são surpreendentes unicamente porque igualmente atuantes e intensos: não se anulam mutuamente. Evita hoje é santa e igualmente é ?prostituta?...Os dois discursos podem ser encontrados, concomitantemente, tanto na Argentina de hoje quanto podiam ser encontrados na Argentina do período.

O mundo assistiu em êxtase à viagem de Evita. Sua estada na Europa foi amplamente divulgada na imprensa do mundo todo. Seu charme e seu ?glamour? conquistaram ?tietes? masculinos nos cinco continentes...

Na realidade o mito da Cinderela, da gata borralheira é muito caro às décadas de 40 e de 50. Hollywood fez questão de difundi-lo até porque as maiores estrelas que o cinema já teve, como Jean Harlow, Marilyn Monroe e outras tantas, eram pessoas ?mais ou menos comuns?, retiradas das ruas e ?glamourizadas? da noite para o dia.

Filmes como Nasce uma estrela, Passeando com minha garota e outros tantos, não só reiteram o mito da gata borralheira do século XX, como reafirmam o ideal, alardeado aos quatro ventos por Evita, de que qualquer um pode subir muito alto, ainda que tenha saído da lama.

A loura platinada Argentina, como suas contemporâneas de Hollywood, precisou ter seu passado reconstruído. Afinal, sair da lama das ruas, altamente positivo, não é a mesma coisa, em absoluto, do que sair de uma situação ?menos que honesta? em Los Toldos.

Neste sentido, o marketing do governo peronista fez um trabalho excelente. Chegaram ao requinte de mudar o local de nascimento de Evita, transferindo-o de Los Toldos para Junin. Assim, ficavam abafados todos os escândalos envolvendo Evita e sua mãe (que teve 5 filhos bastardos) acontecidos naquele povoado.

Ironicamente, a mesma Evita que, ao morrer, teve um processo de canonização aberto no Vaticano, irou o alto clero e a aristocracia ao proibir os enterros nas igrejas, tornadas ?de domínio público?. Esta perversão intestina, uma vez que procede de uma católica num país católico, só ajudou a firmar o mito de ?la madre de los descamisados? e da ?santa do povo argentino?.

Ainda no tocante à perversão intestina, Evita não seria uma novidade. Os grandes santos da Igreja Católica, como Francisco de Assis e Joana D?Arc, por exemplo, foram exatamente aqueles que se posicionaram abertamente contra as ?posturas oficiais? da Igreja, em suas respectivas épocas. São Francisco realiza uma verdadeira revolução no seio da Igreja. Não fora a imprensa do século XX, com a sua perícia em vasculhar a intimidade das personalidades, e Evita poderia mesmo ter sido canonizada, afinal, Maria Madalena também o foi!

Feminista e líder sindical, como quer Julia Silvia Guivant, a figura de ?Santa Evita? talvez fosse hoje venerada no altar mor da catedral de Buenos Aires, não fosse a intensa campanha anti-Evita promovida por Rojas, sucessor de Perón.

A morte da corista ? desfecho

"Quem nasceu para governar, quem se convenceu que todos os dias o destino de milhares de criaturas repousa em suas mãos, desce do trono como para dentro da sepultura"
Goethe

 

 

Em 23 de dezembro de 1985, aniversário de minha avó (que viveu de 1904 a 1998) uma de suas amigas, uma senhora argentina, de nome Dona Magitta, nos contava que Evita desfilou em carro aberto, amparada por soldados, com um colete ortopédico para se manter ereta, nos últimos dias de sua vida. Sabia que estava às portas da morte e, no entanto, os deveres de Estado haviam se tornado a sua única razão de viver.

Desmaiada, ela ia ?podre por baixo daquele luxo todo?, como disse Dona Magitta, que lhe é francamente desfavorável. Aliás, esta senhora, referia-se sempre a Evita Perón como ?putana?. Dizia mais, que a mãe de Evita, tomada por uma crise histérica, foi á janela e gritou com todas as suas forças que Perón era um assassino, porque o ditador teria mandado exterminar um irmão ?inconveniente? de Evita, assim que esta entrou em agonia.

No entanto, em meio a toda a repugnância que o termo ?podre? pode causar (ainda mais associado ao termo ?putana?, podendo ser uma clara alusão às doenças venéreas) há uma admiração incontida e mal disfarçada, que a velha senhora demonstrou nos olhos brilhantes e chorosos, no saudosismo com que lembrou do desfile da agonizante Evita, a ?putana? que sujeitou-se ao papel de legitimadora e consolidadora do governo de Perón, até os últimos dias de sua vida.

A mulher desmaiada, mantida ereta a altos custos, só não é mais digna de pena do que sua mãe, que Perón mandou calar. Os soldados teriam invadido o apartamento da velha, fechado as janelas e mantido-a reclusa até o final do apoteótico e macabro desfile.

Quase um cadáver, sem cores, as roupas esplendidas e a maquiagem carregada, Evita é já um fantasma passeando em carro aberto. Sua consciência está longe; a obra que acaba de escrever, no intervalo de suas dores atrozes, o juízo que o futuro fará de si e de Perón.

Nesta obra³ ela declara que não era uma feminista que gostaria de comportar-se como homem; ela gosta de usar batom e boas roupas, desconfia de mulheres que não gostam. Mas ela protesta contra a ausência de mulheres no poder, brigando nas comissões contra a energia atômica no Vaticano. Enquanto falava da santidade da maternidade e do lar, como muitas outras antes dela, ela chegou a propor salários para as donas de casa. Evita sempre clamou que todas as suas ações eram fundadas em amor e respeito a Perón e que ela era a ponte entre ele e o povo. Ao mesmo tempo em que trabalhava para dar sustentação ao peronismo, ela mobilizava as mulheres, conseguindo o voto feminino em 1947, bem como a lei do divórcio.

 "No one ever seemed capable of speaking of Eva Péron in dispassionate terms. Those who benefited from her large charity foundation glorified her. Others vilified her. But certainly no one ignored Evita."­4

 Deixemos Eva falar:

 

"Eu descobri um sentimento fundamental em meu coração, que governa completamente o meu espírito e a minha vida. Este sentimento é a minha indignação quando confronto-me com a injustiça.

Sempre que eu posso recordar-me, toda injustiça tem machucado meu coração como se algo o perfurasse. Memórias de injustiças, contra as quais eu me rebelei em todas as idades, quase marcam-me.

Me lembro muito bem que eu ficava triste por dias inteiros quando primeiramente apercebi-me que há pobres e ricos no mundo; e a coisa estranha é o fato da existência dos pobres não me ferir tanto quanto o conhecimento de que os ricos existiam.(...)

Um dia ouvi pela primeira vez dos lábios de um trabalhador, que havia pobres porque os ricos são tão ricos; e esta revelação causou uma forte impressão em mim.

Um pintor pode falar porque ele vê e sente as cores? Um poeta pode explicar porque é poeta?

Talvez seja por isso que eu nunca pude dizer porque sinto-me ultrajada pela injustiça; e porque nunca fui capaz de aceitar a injustiça como uma coisa natural, como a maioria dos homens aceitam.

Até agora, ainda que não possa entender por mim mesma, é certo que meu sentimento de indignação com a injustiça social é a força que tem me levado pela mão, desde as minhas lembranças mais antigas, até o dia de hoje...E esta é a causa principal que explica como uma mulher que, aos olhos de algumas pessoas, parece ?superficial?, comum e indiferente, pode decidir levar uma vida de sacrifícios além da compreensão.

(...)Antes de entrar no mérito da questão, é sempre bom lembrar que Perón não é apenas presidente da República; ele é também o líder do seu povo.

(...)também, qualquer um que me conhece um pouquinho ? e não digo apenas agora, mas também quando eu era uma simples garota Argentina ? sabe que eu nunca poderia atuar na comédia fria das salas de visitas dos aristocratas.

(...)mas, também, eu não era apenas a esposa do presidente da República. Eu era também a esposa do líder dos argentinos (...) eu tinha de ter dupla personalidade: uma, a Eva Perón esposa do presidente, cujo trabalho simples e agradável era um emprego de feriado, honrarias e performances de gala; a outra, Evita, mulher do líder do povo, que tem depositado nele toda a sua fé, toda a sua esperança e todo o seu amor.

Uns poucos dias do ano eu interpretava o papel de Eva Perón; e eu acho que eu representava melhor durante esta época, neste papel, porque a mim parece que nunca desagradei.

A imensa maioria dos dias eu sou, por outro lado, Evita, uma ligação direta entre as esperanças do povo e as mãos ocupadas e sensíveis de Perón. A primeira dama peronista da Argentina. Este papel é uma atuação difícil para mim, e há algo em mim que faz eu nunca estar completamente satisfeita comigo mesma.

Não há nenhum sentido para nós falar de Eva Perón. O que ela faz aparece, hiper ampliado, nos jornais e revistas de todos os lugares.

Por outro lado, é interessante falar sobre Evita; não apenas porque eu sinto todas as dificuldades de tornar-me ela, mas porque aqueles que entenderem Evita certamente acharão mais fácil de entenderem os seus descamisados , já que o povo, por si próprio, jamais se sentirá mais importante do que é. Jamais se tornará uma oligarquia o que, aos olhos de um peronista, é a pior coisa que poderia acontecer.

(...)meu trabalho no movimento das mulheres começou a crescer, exatamente como meu trabalho no serviço social e a minha atividade nas ?trade-unions? , pouco a pouco, e mais pela força das circunstâncias do que por decisão minha.

(...)as feministas do mundo irão dizer que começar um movimento de  mulheres neste caminho é sofrivelmente feminístico...começar reconhecendo para certas atividades a superioridade do homem. No entanto, eu não estou interessada em críticas. Além disso, reconhecer a superioridade de Perón é uma coisa diferente, até porque é minha intenção escrever apenas a verdade.

(...)elas sentem-se dominadas pela indignação, por não terem nascido homens, ao invés de sentirem-se recompensadas pelo prêmio de terem nascido mulheres.

Elas acham, intensamente, que é um infortúnio ter nascido mulher. Elas estão ressentidas com mulheres que não deixam de ser femininas. Elas estão ressentidas com os homens porque eles não as deixariam ser como eles; as ?feministas?, a imensa maioria das feministas do mundo, tão longe quanto eu pude enxergar, continuam a ser uma estranha espécie de mulheres, que nunca me parecem inteiramente mulheres. (...) eu senti que o movimento das mulheres em meu país e ao redor do mundo tinha de ansiar a uma missão sublime...e tudo o que eu sabia sobre o feminismo parecia-me ridículo. Assim, não sendo lideradas por mulheres, mas por aquelas que querem tornar-se homens, facilmente pareceria feminismo, mas não é! O feminismo passou assim da esfera do sublime a do ridículo. Esta é a maneira pela qual eu sempre tentei abordar a questão.

(...)hoje as mulheres argentinas podem votar. Eu não vou repetir a expressão usada por um político que, oferecendo aos seus amigáveis cidadãos uma lei eleitoral começou a discursar, muito solenemente:

- Deixe o povo aprender como votar!

Não. Eu acho que o povo sempre sabe como votar. O problema é que nem sempre é possível para eles votar. A mesma coisa acontece com as mulheres.

(...)a mãe de família está excluída de todas as medidas de segurança social. Ela é o único trabalhador no mundo sem salário, ou garantia, ou limitação da jornada de trabalho, ou domingos livres, ou feriados, ou qualquer descanso, ou indenização por acidente de trabalho ou vantagens de qualquer tipo. Tudo isto, nós aprendemos em criança, pertence à esfera do amor...mas o problema é que depois do casamento, o amor voa para fora da janela, e isto tudo transforma-se em ?trabalho forçado?...obrigações sem nenhum direito! Serviço gratuito em pagamento pela dor e pelo sacrifício!

(...)e para sanar essa situação é necessário elevar o nível geral de cultura das mulheres. Independência econômica e progresso tecnológico podem ser usados para ajudá-las e suas tarefas, e para lhes conseguir a liberdade, sem perder os sinais de seu maravilhoso status de mulher; a única coisa que não pode e não deve ser perdida, o mínimo sinal de feminilidade, sob pena de que tudo o mais se perca.

(...)é por isso que eu amo Perón agora de uma maneira diferente do que amava antes: antes eu o amava por ele próprio...agora eu também o amo porque meu povo o ama!

Talvez em breve, quando eu tiver ido para o céu, alguém irá dizer de mim o que as crianças do povo têm vontade de dizer, quando suas mães também vão para o céu:?apenas agora entendemos que ela nos amava intensamente.? "5    

 A vida pós-tumular de Eva Perón

 "Nunca vi coisa mais para lembrar e menos lembrada, que a morte: sendo menos aborrecida que a verdade, têm-se em menos conta que a virtude"
Camões

Evita, morta e embalsamada, repousou tranqüilamente, embalada pelos olhares do povo argentino, durante três anos. Após este curto espaço de tempo, governado pelo viúvo inconsolável, ela sofreria a mais ignomioza das afrontas: após a renúncia (forçada) do general Lonardi (que havia deposto Perón), o almirante Rojas, que assumiu a presidência, encarregou o chefe de sua guarda pessoal, primeiro tenente Ernesto Fernandez, bem como o major Ivan Dália (irmão do do secretário geral do Ministério do Interior) e o coronel Ricardo Aramanho (chefe da coordenação do Estado Maior) de esbofetearem o cadáver de Eva Perón, urinarem no esquife e lançá-lo no Rio da Prata. Teriam mesmo cometido necrofilia e o sargento Júlio Rimais, que teria assistido ao nefando sacrilégio e divulgado o crime, foi assassinado.

Sabemos hoje que o esquife não foi lançado no Rio da Prata ou então existe uma cópia de cera, ou outra mulher embalsamada repousando no túmulo da família Duarte, no cemitério de La Recoleta.

O certo, no entanto, é que Evita nunca morreu, quem morreu foi Eva Péron.

Aquela que foi a alegoria gloriosa da Argentina, espelho da riqueza e prosperidade da nação, uma vez embalsamada, representa a estagnação de um regime que perdeu seu principal sustentáculo. A única analogia possível é Lênin. Em vida encarnou os ideais, anseios e aspirações da Revolução Bolchevique e, neste sentido, ele era a própria revolução, enquanto força e movimento transformador da sociedade. Uma vez morto, no entanto, tornou-se a alegoria de um regime senil e, literalmente, mumificado. Uma situação onde não há mais lugar para o movimento, a dinâmica das forças sociais, só poderia mesmo ser espelhada por uma múmia.

Da mesma maneira, Evita foi em vida o arco-íris glorioso da Argentina, a encarnação da alegria de viver, a aparição faiscante que eclipsava todos que estivessem ao seu redor. Neste sentido, ela representava os anseios mais profundos da nação Argentina, que queria ser reconhecida e respeitada no exterior. Em sua mirabolante excursão pela Europa, Evita não só conseguiu fazer com que a Argentina fosse conhecida e respeitada no exterior, como também tornou-se ela própria o sinônimo e a representação mais imediata da Argentina. Assim, quanto mais reluzente Evita fosse, tanto mais reluzente apareceria a Argentina aos olhos dos europeus.

Evita não é a alegoria genérica da Argentina. Ela é bastante datada: representa a Argentina peronista, o populismo consubstanciado em sua forma mais refinada. Neste sentido, Rojas acertou ao investir contra o próprio símbolo da era que ele tentava ofuscar.

Rojas tudo fez para desacreditar e desmerecer Evita junto ao povo: fez uma exibição pública de seu suntuoso guarda-roupa, de seus carros, abriu suas casa á visitação, alardeou aos quatro ventos que ela teria contas fantásticas na Suíça...Tudo em vão!  O povo ainda tinha fresca na retina a imagem faiscante de uma linda mulher, que falava, bem como poucas, exatamente o que eles queriam ouvir e que fazia, até pelo seu aparato e suas viagens ao exterior, com que sentissem orgulho de ser argentinos.

Foi então que, num último ato desesperado, investiu contra o corpo inerte de Evita. No entanto, ao invés de sepultar para sempre a memória da faiscante Evita, como era sua intenção, teve acesso apenas ao corpo sem vida de Eva Perón.

Evita havia se diluído, estava em todos os lugares! A sua identificação à sua pátria fora tão completa e consumada que agora, morta enquanto integridade física coesa, ela vivia, enquanto mito, em todos os recantos da Argentina.

Foi como alegoria gloriosa da Argentina, através de um especial da BBC inglesa, que dois jovens, Tim Rice e Andrew Lloyd, conheceram Evita. Em meados da década de 1970, mais de 20 anos após a sua morte, Eva Perón ainda era o símbolo máximo da Argentina.

Ao mesmo tempo intrigados e fascinados, movidos pelo carisma daquela mulher, realizaram a ópera-rock mais exuberante que já foi escrita. Supera todas as suas similares em brilho, fascínio, luxo...É  a eloqüente ressurreição de uma figura fascinante.

Através desta ópera ? a mais consagrada da segunda metade do século XX ? Evita continua viva em todos os palcos do mundo. Ela tornou-se uma figura ainda mais conhecida e comentada. Ela é hoje não apenas parte da história e da cultura portenha, como também do cenário cultural mundial.

 Luiz Carlos Cappellano

 Notas:

  1. Guivant, Júlia Sílvia (trad. De Andréa Henrich) ? Eva Perón e a questão política feminina na Argentina ? tese de mestrado sob orientação do prof. Doutor Manoel Tosta Berlink, apresentada ao IFCH da UNICAMP
  2. Scully, Michael ? Quanto custou Perón à Argentina in: Seleções do Reader?s Digest, Rio de Janeiro, março de 1956, n° 170 pp 29-37.
  3. Perón, Eva Duarte ? My mission in life trans. Ethel Cherry . New York, Vantage Press, 1953 .
  4. Hahnner, June E. ? Women in Latin American history . UCLA, Latin American Center Publications. University of California. Los Angeles, 1976. tradução: Ninguém nunca foi capaz de falar de Eva Perón em termos desapaixonados. Aqueles aos quais ela beneficiou com a sua grande fundação de caridade a glorificam. Outros a vilanizam. Mas certamente ninguém ignora Evita.