RESUMO

O presente tem por objetivo realizar uma leitura e análise da obra A Origem das Desigualdades Entre os Homens, também conhecida como Segundo Discurso, de autoria do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau. Assim, no desenvolvimento da pesquisa, foi elaborado um estudo referente ao pensamento de Rousseau no que diz respeito às questões do Estado de Natureza, a degeneração e desnaturalização do homem desse estado, bem como verificar se existiu no Segundo Discurso alguma proposta de Rousseau que sugerisse o retorno do homem ao seu Estado Natural. Dessa forma, prosseguiremos na primeira parte deste trabalho analisando as argumentações de Rousseau, no Segundo Discurso, sobre o Estado de Natureza e o homem, na intenção de responder as seguintes perguntas: houve mesmo um Estado de Natureza? Se houve qual sua origem? E o porquê da importância desse Estado de Natureza para Rousseau? Como viviam os homens no Estado de Natureza? Como eram os relacionamentos dos homens no Estado de Natureza? Qual a essência do homem natural? Já na segunda parte do trabalho apresentaremos os principais motivos que ensejaram a saída do homem desse estado, analisaremos como se deu o processo de degeneração e desnaturalização do homem como fator principal, segundo Rousseau, que culminou nas desigualdades sociais. A seguir, analisaremos se houve ou não uma proposta de Rousseau para o retorno do homem ao Estado Natural e se houve, o que deveria retornar ao Estado de Natureza, seria o homem físico ou homem metafísico, ambos pensados por Rousseau no Segundo Discurso.

Palavras-chave: Rousseau. Estado de Natureza. Liberdade Natural. Retorno à Natureza. Bom Selvagem.

 

ABSTRACT

The purpose of the present work is to analyze and analyze the Origin of Inequalities among Men, also known as Second Discourse, by the Genevan philosopher Jean-Jacques Rousseau. Thus, in the development of the research, a study was made concerning Rousseau's thought regarding the questions of the State of Nature, the degeneration and denaturalization of the man of that state, as well as to verify if there was in the Second Discourse a proposal of Rousseau that suggested the return of man to his Natural State. In this way, we will continue in the first part of this work analyzing the arguments of Rousseau, in the Second Discourse, on the State of Nature and the man, in order to answer the following questions: was there even a State of Nature? If so, what was its origin? And why the importance of this State of Nature to Rousseau? How did men live in the State of Nature? How were the relationships of men in the State of Nature? What is the essence of the natural man? Already in the second part of the paper we will present the main reasons that led to the departure of man from that state, we will analyze how the process of degeneration and denaturalization of man as main factor, according to Rousseau, culminated in social inequalities. Then we will analyze whether there was a Rousseau proposal for the return of man to the Natural State and if there was, what should return to the State of Nature, would be the physical man or metaphysical man, both thought by Rousseau in the Second Discourse.

Keywords: Rousseau. State of Nature. Natural Freedom. Return to Nature. Good Wild.

 

  1. INTRODUÇÃO

 

Em que consiste o retorno ao Estado de Natureza, proposto por Jean-Jacques Rousseau no Segundo Discurso? A questão da origem das desigualdades sociais entre os homens tem sido objeto de estudos desde os tempos mais primordiais da humanidade. A história dessa busca constante e permanente pelos homens tem sua maior justificativa na busca da aquisição da paz e bem-estar social, que fossem possíveis e acessíveis a todos.

Pretendo demonstrar neste trabalho acadêmico os principais argumentos e opiniões do filósofo e escritor genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) acerca desse assunto. Analisarei de forma clara e objetiva seu pensamento inovador quanto à defesa do Estado de Natureza, como fonte original da paz, igualdade e felicidade humanas.

Rousseau viveu a força e a intensidade do movimento Iluminista no século XVIII, com seus ideais desbravadores em defesa da razão (luz), por uma maior liberdade econômica, social e política, contra o que seria o antigo regime (trevas). Os iluministas acreditavam que o antigo regime já estaria há muito tempo ultrapassado em suas crenças, mitos e lendas, oriundos de um pensamento impregnado de ignorância e apoiado pelos seus senhores, o clero e a nobreza. O poder do clero e da nobreza objetivava a manutenção de suas posses e a dominação da humanidade, que dessa forma permaneceria em um estado constante de estagnação, submissão perpétua e desigualdade social. “O século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura” (CASSIRER, 1994, p.23). Foi também neste período iluminista que surgiram muitos filósofos, tais como Immanuel Kant (1724-1804), Montesquieu (1689-1755), John Locke (1632-1704), Voltaire (1694-1778) e David Hume (1711-1776). Os quais despontaram como ícones no horizonte iluminista com seus pensamentos racionalistas, promovendo um verdadeiro culto a razão humana, nessa época a razão era considerada uma força que servia como um ponto de fusão e expansão dos desejos e das realizações das ideias de todo o século XVIII. Aponta Cassirer que:

 

Quando o século XVIII quer designar essa força, sintetiza numa palavra a sua natureza, recorre ao nome de “razão”. A “razão” é o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações. (CASSIRER, 1994, p.22)

 

O ideal iluminista apresenta como uma de suas principais características a busca científica de explicações para as questões mais remotas da História da humanidade, notadamente as questões relativas ao surgimento e desenvolvimento do processo político, concernentes, pois, aos fundamentos da sociedade e do próprio Estado. A fim de evitar e ao mesmo tempo contradizer as explicações de fundo teológico baseadas na força da autoridade da Igreja mediante a fé, bem como negar peremptoriamente as explicações de caráter naturalistas simplórias, “o pensamento sente-se ainda mais profundamente conquistado, mais apaixonadamente comovido por uma outra questão: a de sua própria natureza e do seu próprio poder.” (CASSIRER, 1994, p.21) O movimento iluminista acreditava poder fundamentar suas explicações e argumentos apoiando-se apenas em um impulso criador totalmente novo e inovador, uma espécie de progresso intelectual que se opõe ao apoio de qualquer autoridade, dogma ou tradição que pudesse validar suas criações e descobertas. Dessa maneira, o Iluminismo considerava-se um movimento autossuficiente. Sobre isto, nos diz Cassirer.

É uma época que sente, em seu próprio âmago, uma nova força atuando e que, não obstante, está menos fascinada pelas criações incessantes dessa força do que pelo seu modo de ação. Não contente de usufruir os seus resultados, ela explora a forma dessa atividade produtora para tentar analisá-la. É nesse sentido que se apresenta, para o conjunto do século XVIII, o problema do “progresso” intelectual. (CASSIRER, 1994, p.21-22)

Polemizando contra essa nova visão iluminista da promoção da racionalidade humana e do progresso intelectual, apresentados em moldes de um verdadeiro culto à razão, surgiu o filósofo Rousseau. Que por meio de duas obras, que ficaram conhecidas como Primeiro Discurso o texto Sobre as Ciências e as Artes (1749) e Segundo Discurso o texto A Origem da Desigualdade Entre os Homens (1755), as quais denunciaram o pretensioso progresso da razão defendida pelo Iluminismo, que prometia liberdade econômica e também política. Porém, era na realidade uma nova forma de perpetuar a mesma alienação humana, produzida pelos seus antigos senhores, clero e nobreza. No entanto, o homem moderno estava apenas substituindo os antigos senhores por um senhor mais novo e moderno, com ares de racionalidade, a saber, os filósofos e cientistas do Iluminismo.

Assim, no que diz respeito ao núcleo do pensamento iluminista e a posição de Rousseau, nos parece que, de certa forma existiu em Rousseau um espírito de duplo ânimo, uma vez que, em dado momento, ele se mantinha distante das premissas iluministas e, em outros, adotava uma postura de equilíbrio e comedimento. Esta posição é-nos apresentada claramente quando vemos Rousseau utilizando-se da racionalidade iluminista em favor da preservação e dos privilégios existentes no Estado de Natureza, do mesmo modo também vemos Rousseau utilizando-se do mesmo processo, só que desta vez, com argumentos contrários à destruição do progresso intelectual iluminista, em face de seu processo de desnaturalização do homem. “Não existe um século que tenha sido tão penetrado e empolgado pela idéia de progresso intelectual quanto o Século das Luzes.” (CASSIRER, 1994, p.22)

Um dos primeiros argumentos de Rousseau considerados contrários ao processo de desnaturalização do homem, em face de sua polidez e civilidade, resultando propriamente disso a corrupção do espírito humano, propagada pelo ideal das luzes com seu progresso intelectual. Toda essa argumentação é apresentada de forma sucinta em seu Primeiro Discurso, que tem como tema central, segundo Robert Wokler (2012), comentador das obras de Rousseau: “O tema central é que a civilização foi à perdição da humanidade, e que o progresso de nossas ciências e artes vem acompanhado pela corrupção de nossos costumes.” (WORKLE, 2012, p.35).

Dessa forma, ainda que Rousseau não mostre de forma objetiva no seu Primeiro Discurso como se deu essa desnaturalização do homem, conquanto ele nos apresenta o resultado dessa desnaturalização humana como exaltação do século XVIII, proposta pelo ideal das luzes.

Que cortejo de vícios não acompanha essa incerteza! Não mais amizade sincera e estima real; não mais confiança cimentada. As suspeitas, os receios, os medos, a frieza, a reserva, o ódio, a traição esconder-se-ão todo o tempo sob o véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade tão exaltada que devemos às luzes de nosso século. (ROUSSEAU, 1978, p.336)

Não obstante, o Segundo Discurso vem, de certa forma, apresentar seus argumentos em favor do Estado de Natureza, bem como preencher a lacuna deixada por ele em seu Primeiro Discurso, quanto ao dilema a respeito de como se deu o processo de desnaturalização do homem. Rousseau escreveu o Segundo Discurso, assim como o Primeiro, em resposta a uma indagação lançada pelo concurso da Academia francesa de Dijon, para o ano de 1754, sobre a seguinte questão: Qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida pela lei natural? Rousseau logo respondeu, tratando de tomar as dores em favor da natureza, afirmando seu benefício para a Humanidade no estado natural, em detrimento da sociedade, pois segundo Rousseau tudo o que sai da natureza é perfeito e agradável para o homem, porém tudo que sai da mão do homem degenera e desfigura. “Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem” (ROUSSEAU, 1992, p.9).

É bem verdade que o Segundo Discurso de Rousseau não ganhou o prêmio da Academia francesa de Dijon em 1754, situação bem diferente do Primeiro Discurso, que foi o grande vencedor do concurso da Academia francesa no ano de 1749. No entanto, o Segundo Discurso exerceu grande influência sobre os pensadores de sua época, principalmente no campo cultural, social e político, inspirando até mesmo os líderes da Revolução Francesa, que abraçaram mais tarde os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade do bom selvagem de Rousseau como pontos fundamentais dos alicerces daquela revolução.

Nesta perspectiva, o Segundo Discurso de Rousseau, com seu apelo forte ao ideal de defesa do estado natural como fonte pura e real da felicidade do homem, foi e continua sendo de vital importância, tanto social quanto política, para a história da humanidade, na medida em que as questões tratadas e propostas por Rousseau continuam ainda hoje atuais e relevantes.

De que se trata, pois, precisamente neste discurso? De assinalar no progresso das coisas o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei: explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde definir-se por servir o fraco e o povo adquirir uma tranquilidade de espírito ao preço de uma felicidade real. (ROUSSEAU, 2007, p.30)

Com efeito, prosseguirei meu estudo acadêmico, detalhando nos tópicos seguintes as argumentações de Rousseau a respeito do Estado de Natureza, buscando entender o foco do que seria a condição do homem nesse estado, ou como denomina Rousseau o bom selvagem a partir de tal condição.

Continuando o estudo, apresento as considerações acerca do bom selvagem, analisando suas principais características físicas, morais e psicológicas, bem como analisarei também sua relação no Estado de Natureza no que diz respeito à vida cotidiana, pontuando aspectos positivos e negativos de sua vida. Nesse sentido apresento e analiso a desnaturalização do homem, ou seja, como se deu a passagem do bom selvagem do estado natural ao homem civilizado, que vive em sociedade, bem como a sua consequente degeneração1 por ocasião do surgimento da ideia de propriedade como fundamento da sociedade civil. Tal degeneração promoveu também o surgimento das primeiras comunidades com sua ideia de mérito e beleza, bem como o surgimento das paixões humanas em busca de reconhecimento, resultando assim, na contribuição da sociedade civil como fator preponderante da corrupção do espírito humano.

No segundo e último tópico, argumentarei a respeito da problemática proposta neste trabalho sobre o retorno do homem ao Estado de Natureza e se esse retorno realmente foi sugerido por Rousseau ou não? A princípio, apresento e analiso as principais concepções errôneas surgidas sobre o que seria o retorno do homem ao Estado de Natureza, dando as respostas sobre a égide de Rousseau em seu Segundo Discurso.

Por conseguinte, este trabalho acadêmico seguirá os passos de Rousseau e suas argumentações elencadas no Segundo Discurso, especificamente os argumentos acerca da problemática do retorno do homem ao Estado de Natureza. Para tanto, utilizarei ainda como fonte complementar de compreensão das obras de Rousseau as opiniões expressas de comentadores como Joaquim Xirau, Karl Polanyi, Ernest Hunter Wright e Charles Edwyn Vaughan em Estudos sobre Rousseau (2015); Robert Wokler em Rousseau (2012); Luiz R. Salinas Fortes em O Bom Selvagem (1996); Ernst Cassirer em A Filosofia do Iluminismo (1994), entre outros estudiosos do assunto.

 

  1. O ESTADO DE NATUREZA

 

2.1 O AUTOR E SUA ÉPOCA E O AMBIENTE NATURAL

De início e antes de adentrarmos na análise do tema central de nosso estudo, já proposto na introdução deste trabalho acadêmico e mesmo de maneira sucinta, a fim de entender melhor os argumentos de Rousseau, devo contextualizar o pensamento dele, ao pensamento de sua época, a saber, o Iluminismo, do qual Rousseau é comprovadamente herdeiro a fim de verificar se nosso filósofo era ou não um crítico do Ideal das Luzes. Posto que ressaltar o contexto em que autor e obras estão inseridos torna-se necessário para compreensão histórica e filosófica destas obras, enquanto objeto de análise, para fins de resolução de questões e dificuldades. É assim que o farei.

O ideal iluminista buscou novas respostas para as indagações antigas da humanidade. Porém, sem aceitar respostas de cunho religioso, dadas como certas e tidas como dogmas, que não podiam ser questionadas. Como exemplo das questões sociais e políticas e das indagações sobre o fundamento e origem da sociedade e do Estado, a esse respeito Cassirer nos diz:

É preciso escolher entre a liberdade e os grilhões, entre a lucidez da consciência e a obscuridade das paixões, entre a ciência e a crença. E tal escolha não oferece, evidentemente, a menor dúvida para o homem dos novos tempos, o homem da Era da Razão, o homem do Iluminismo. Ele renunciará sem hesitação ao socorro vindo do alto, desbravará ele próprio o caminho para alcançar a verdade, não pensará que possui essa verdade se não a tiver extraído e provado graças às suas próprias forças. (CASSIRER, 1994, p.191)

No movimento do Iluminismo há uma confiança exagerada no homem, que desprovido de qualquer ajuda do “alto”, ou seja, da religião, é um homem autossuficiente, sem qualquer tipo de dúvida. Pois só lhe resta uma única alternativa para a compreensão de todas as coisas, a razão, com a qual tudo poderia ser explicado. Com efeito, vemos em Rousseau uma forte crítica ao pensamento iluminista, notadamente no Primeiro e Segundo Discursos: “No começo dos anos 1750, principalmente com os dois primeiros Discursos e a Carta sobre a música francesa, Rousseau ganhara renome em toda a Europa como crítico do Iluminismo e da sociedade civil.” (WOKLER, 2012, p.84). Nesses Discursos Rousseau exalta a natureza em detrimento dos progressos da civilização. Assim nos diz, também, o professor Salinas Forte:

 

Tal é a eloqüência com que Rousseau investe contra a civilização e suas conquistas, que ele ficou visto por boa parte de seus leitores — a começar pelo ilustre Voltaire, que contra ele logo se posicionou — como um intolerável detrator das Luzes e defensor da barbárie, querendo apenas escandalizar. O século XVIII é chamado de Século das Luzes graças ao notável movimento de idéias de que foi palco e que se costuma designar por Iluminismo ou Ilustração, devido à sua entusiasmada valorização dos poderes da razão humana. (SALINAS, 1996, p.5)

Rousseau foi de encontro ao ideal iluminista, quando repudiou a ideia do avanço das ciências e das artes como fator de contribuição preponderante ao aprimoramento dos costumes da sociedade. Na obra política Do Contrato Social (1762), temos uma frase famosa de Rousseau: “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros.” (ROUSSEAU, 1978, p.22). O que denota a ideia de que o homem possui uma natureza boa. No entanto, esta natureza boa foi corrompida pelo jugo do processo civilizador, com suas ciências e progressos, causando no homem mais malefícios que benefícios.

Portanto, Rousseau foi mais do que um simples crítico do movimento iluminista, ele foi um crítico convicto. Porém, não foi simplesmente um filósofo de críticas fúteis e de ideias superficiais, que promovia as trevas em lugar das luzes, mas foi um filósofo de ideias claras e objetivas.

[...] não fiquemos com a idéia superficial de que nos achamos diante de um simples caluniador da cultura, de um defensor das trevas ou de um "profeta dark antiiluminista". É mais correto considerá-lo como o crítico ou o pré-crítico das Luzes, muitas vezes até excessivo em sua polêmica, mas também especialmente clarividente. (SALINAS, 1996, p.6)

De outro modo, Rousseau utiliza-se da própria razão do Iluminismo para criticá-la. Porém, também usa de complacência com o pensamento iluminista. Já que no Primeiro Discurso temos, ainda que de forma aparente, um elogio à razão, vez que Rousseau no decorrer desta obra expõe e ataca os erros e vícios das luzes.

E um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por meio das luzes de sua razão, as trevas nas quais o envolveu a natureza; elevar-se acima de si mesmo; lançar-se, pelo espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o homem e conhecer sua natureza, seus deveres e seu fim. Todas essas maravilhas se renovaram, há poucas gerações. (ROUSSEAU, 1978, p.333)

No que concerne ao homem no Estado de Natureza, Rousseau desde o início de seus trabalhos literários esboça uma perfeita confiança na ordem natural das coisas. Não foi à toa que ele tenha surpreendido a Academia de Dijon, na França quando respondeu no Primeiro Discurso Sobre as Ciências e as Artes (1749), pela negativa da proposta da Academia sobre a seguinte questão2: “O restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?” Dessa forma, percebemos em Rousseau o desenvolvimento do embrião argumentativo de suas primeiras considerações acerca do Estado de Natureza, dando ênfase à defesa desse estado natural, como sendo de perfeita felicidade, liberdade e paz para o homem.

Para tanto, Rousseau apresenta o Segundo Discurso, para responder novamente à Academia de Dijon, no ano de 1754, sobre a questão: “Qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida pela lei natural?”. Neste texto Rousseau exemplifica com maiores detalhes sua defesa do Estado de Natureza, iniciada já no Primeiro Discurso e, agora, desenvolvida no Segundo Discurso de forma clara e objetiva.

Sendo que, para Rousseau, até mesmo a desigualdade estabelecida pela natureza constitui-se de uma perfeita igualdade, enquanto que a desigualdade é instituída pelos próprios homens. “Tendo tido a felicidade de nascer entre vocês3, como poderia meditar sobre a igualdade que a natureza pôs entre os homens e sobre a desigualdade que eles instituíram, [...]” (ROUSSEAU, 2007, p.12).

Rousseau entendeu a espécie humana com duas formas de desigualdades, a primeira ele chamou de natural ou física, estabelecida pela natureza, com suas diferenças de idades, saúde e forças do corpo e da alma; e a segunda Rousseau chamou de desigualdade moral ou política, que depende da autorização dos homens, consistindo aí nas diferenças de privilégios de uns em prejuízos de outros, a exemplo de homens mais ricos, mais poderosos e mais honrados que outros.

Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade. Uma que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma. A outra, que pode ser chamada de desigualdade moral ou política porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos diferentes privilégios de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros ou mesmo fazer-se obedecer por eles. (ROUSSEAU, 2007, p.29)

Mas o que significava para Rousseau a expressão “Estado de Natureza”? O comentador e professor Dr. Paiva assim diz: “Para Rousseau, o estado de natureza é oposto ao de sociedade e longe está das determinações morais, das leis e do direito.” (PAIVA, 2010, p. 31). Assim, o Estado de Natureza de Rousseau é considerado o antônimo de sociedade, uma espécie de contrariedade entre ambos os termos, sem moralidade, lei ou direito. Parafraseando Rousseau, a terra não pertencia a ninguém, e seus frutos eram de todos. Outro comentador diz: “Em Rousseau, estado de natureza significa duas coisas diferentes: de um lado, em concordância com o pensamento de Hobbes, é o estado natural oposto ao estado social, a natureza oposta à cultura, a animalidade oposta à civilização.” (XIRAU, 2015, p. 28). Nesse primeiro sentido definido pelo professor Xirau, além dos termos serem antônimos, também são opostos entre si, pois existindo um dos estados o outro desaparece. Já no segundo sentido o homem é um ser eminentemente físico. “O homem é um ser da natureza, um ser físico que se movimenta junto com os demais fenômenos físicos.” (XIRAU, 2015, p. 28).

Então, outra pergunta surge aqui: Por que para Rousseau era tão importante compreender e achar respostas no Estado de Natureza? Para tentar discernir o que de original e de artificial existia ainda na natureza atual do homem, “[...] não é empresa leve discernir o que há de original e de artificial na natureza atual do homem [...]” (ROUSSEAU, 2007, p. 24). Na tentativa de criar um conceito universal válido de comparação entre os homens, para distinguir o artificial do processo histórico e concreto da humanidade.

Aqui o método se explicita como uma tentativa de estruturar um conceito universal que seja válido para todos os homens, e que possa servir de parâmetro de comparação para distinguir o “artificial”, que se forma pela mediação e pela história concreta. (KURLE, 2011, p.71)

Com isto, é fácil compreender o porquê do homem feliz no Estado de Natureza ter trocado esta felicidade real apenas por uma tranquilidade de espírito. Eis o que Rousseau queria poder explicar: “explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde definir-se por servir o fraco e o povo adquirir uma tranqüilidade de espírito ao preço de uma felicidade real.” (ROUSSEAU, 2007, p.30).

Rousseau acreditou que, para entender a relação do homem com a sociedade, seria preciso retornar no tempo e na história natural. Para tanto, seria preciso de alguma maneira estar na pele do homem selvagem, sentir o que ele sentiu e ver o que ele viu, seria preciso reviver, ainda que de forma teórica e imaginativa, a vida desse homem selvagem. Essa visão tornava-se necessária, para demonstrar quão profundo era o fosso existente entre o estado primitivo e o estado moderno do homem.

Tu procurarás a idade na qual desejarias que tua espécie tivesse parado. Descontente com teu estado atual por razões que anunciam à tua posteridade infeliz maiores descontentamentos ainda, talvez quisesses retrogredir e esse sentimento deve constituir o elogio de teus primeiros ancestrais, a crítica de teus contemporâneos e o espanto daqueles que tiverem a infelicidade de viver depois de ti. (ROUSSEAU, 2007, p.31)

Segundo Rousseau, outros estudiosos haviam lhe antecedido acerca deste assunto. No entanto, quando estes homens escreveram sobre os primórdios da sociedade e falaram a respeito do Estado de Natureza, eles ao falarem do homem selvagem descreviam o homem civilizado. Tomando assim as atitudes e ações inerentes ao homem civilizado, em benefício e proveito do homem selvagem, levando noções e conceitos para o estado natural, que pertenciam à sociedade moderna.4 “Falavam do homem selvagem e pintavam o homem civilizado.” (ROUSSEAU, 2007, p.30)

Dando continuidade à intenção de tentar discernir o que havia de original no homem no Estado de Natureza e do que teria sido inserido de artificial no homem da modernidade, Rousseau diz perceber no Estado de Natureza dois princípios anteriores à razão que são a conservação e piedade, ou seja, em sua condição original o homem primitivo buscava sua conservação e, para isso, ele utilizava-se dos benefícios da terra, bem como possuía piedade, não buscava machucar seu semelhante nem os animais. “[...] Creio perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais nos interessa ardentemente a nosso bem-estar e à conservação de nós mesmos e o outro nos inspira uma repugnância natural de ver morrer todo ser sensível e, principalmente, nossos semelhantes.” (ROUSSEAU, 2007, p.29).

Assim, para entender melhor a condição do homem em seu estado original, seria preciso buscar no interior do Estado de Natureza a essência do ser humano, e tentar discernir qual a sua relação com essa própria natureza. Rousseau nos diz que no Estado de Natureza o homem tinha todas as suas necessidades satisfeitas, pois o que queria e quando queria lhe estava sempre à sua disposição, tudo lhe era permitido, só precisa possuir e a natureza cuidava do restante: “[...] vejo-o saciando-se debaixo de um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o alimento e aí estão suas necessidades satisfeitas.” (ROUSSEAU, 2007, p.34).

De certo modo, Rousseau apresenta no conjunto de sua obra um Estado de Natureza, romântico e perfeito, onde tudo funciona e segue na mais perfeita harmonia, pois a terra ainda estava em seu estado original de pureza, não havia sido revolvida pelo homem, a agricultura não existia, frutos e vegetais eram dados aos homens ao acaso pela terra. “A terra abandonada à sua fertilidade natural e coberta de florestas imensas que o machado jamais mutilou, oferece a cada passo celeiros e abrigos aos animais de toda espécie.” (ROUSSEAU, 2007, p.34).

O Estado de Natureza proporcionava ao homem na verdade uma vida dura e rústica, o que o tornava forte, sadio e de ânimo pronto para enfrentar as situações cotidianas, sendo afeito à constante movimentação do seu corpo, encontrava-se em perfeito porte físico, pois desde sua infância era instigado a lutar por sua sobrevivência, em sua essência o homem era um ser de movimento, um andarilho da terra, sozinho e solitário.

A predisposição de Rousseau para admirar e amar a natureza fez com que ele dispensasse várias páginas do Segundo Discurso, para detalhar em pormenores o ambiente natural. Rousseau defendia ainda que de forma indireta a preservação da natureza, como ambiente sustentável e de profunda importância para o bem-estar do homem, visto que nada pode superar ao homem a visão de uma natureza viva, exuberante e atuante em seu cotidiano.

As árvores, os arbustos e as plantas são o adereço e a vestimenta da terra. Não existe nada mais triste que o aspecto de campo nu e vazio que oferece aos olhos apenas pedras, limo e areia. Revivificada pela natureza e coberta com seu vestido de núpcias em meio ao curso das águas e ao canto dos pássaros, a terra oferece ao homem, com a harmonia dos três reinos, um espetáculo cheio de vida, de interesse e de canto, o único espetáculo no mundo que nunca cansa seus olhos e seu coração. (ROUSSEAU, 2008, p.89).

Isto posto, findo aqui as considerações iniciais à respeito do Estado de Natureza, e passarei a comentar no próximo tópico sobre as condições do bom selvagem, levando em consideração os aspectos físicos e metafísicos, ambos analisados por Rousseau no Segundo Discurso.

    1. O BOM SELVAGEM

Um aspecto importante a ser considerado na relação homem e Estado de Natureza é o pontapé inicial tomado por Rousseau em suas argumentações. Ele concebe o homem em sua fisionomia perfeita, ereto e andando sobre seus próprios pés, pegando com suas próprias mãos seus alimentos, subindo em árvores, caçando na mata e pescando nos rios e lagos, para prover sua subsistência: “[...] terei de imaginá-lo sempre tal como o vejo hoje, andando com dois pés, servindo-se de suas mãos como fazemos com as nossas, estendendo seu olhar sobre toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu.” (ROUSSEAU, 2007, p.33).

Nesse Estado de Natureza, tanto os homens quanto os animais selvagens tinham suprimento e abrigo. Também não sentiam necessidade de convivência em companhia de outros homens, uma vez que no estado natural não havia motivo algum para relacionamentos; o bom selvagem era por natureza solitário.

Com efeito, é impossível imaginar porque, nesse estado primitivo, um homem teria mais necessidade de outro homem do que um macaco ou um lobo de seu semelhante ou, supondo essa necessidade, que motivo poderia levar o outro a provê-la ou, nesse último caso, de que modo poderiam aceitar entre eles as condições. (ROUSSEAU, 2007, p.49).

Dessa forma, no Estado de Natureza não existiam relacionamentos íntimos entre homens e mulheres. O que existia eram apenas encontros sexuais fortuitos, onde machos e fêmeas se uniam quase sempre uma única vez na vida, para se separarem logo em seguida, e não se encontrarem mais: “os machos e as fêmeas se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e o desejo, sem que a palavra fosse intérprete muito necessário das coisas que se deviam dizer. Eles se deixavam com a mesma facilidade.” (ROUSSEAU, 2007, p.45).

Do mesmo modo também os relacionamentos entre mães e filhos, eram relacionamentos transitórios, existindo apenas pela necessidade do filho de alimentar-se junto à mãe. Assim, logo que o filho adquiria força suficiente para buscar seu próprio alimento, ele abandonava a mãe, para não mais voltar.

A mãe amamentava primeiro os filhos por sua própria necessidade, depois, o hábito tendo-os tornado caros a ela, nutria-os pela necessidade deles. Logo que tivessem força para procurar seu próprio alimento, eles não tardavam em deixar a própria mãe e, como não houvesse quase outro meio de se encontrarem senão o de não se perderem de vista, logo chegaram ao ponto de não se reconhecerem uns aos outros. (ROUSSEAU, 2007, p.45).

Já quanto aos animais, adverte Rousseau que após muitas experiências de combates e batalhas acirradas com os homens, que eram ágeis e corajosos e, usavam como armas pedras e paus, logo os animais perceberam que o perigo de uma luta era no mínimo recíproco para ambos. E que o homem selvagem poderia ser tão perigoso quanto os próprios animais.

Coloquem um urso ou um lobo em luta contra selvagens robustos, ágil, corajoso, como são todos, armados de pedras e de um bastão e haverão de ver que o perigo será pelo menos recíproco e que, depois de muitas experiências semelhantes, os animais ferozes, que não gostavam de se atacar entre si, atacarão a contragosto o homem que lhe parecerá tão feroz quanto eles. (ROUSSEAU, 2007, p.35).

Apesar dos argumentos referentes à constituição física do homem selvagem de Rousseau ser importante e esclarecedora, o bom selvagem não era apenas físico, era também metafísico, e essas qualidades também foram levadas em conta, em sua distinção para com os outros animais. “É somente quando ultrapassamos esse nível material e tentamos penetrar no interior do homem que começamos a discernir as características que lhe são específicas e o distinguem dos outros animais.” (SALINAS, 1996, p.29).

Rousseau também esclarece a diferença entre homens e animais, nos dizendo que os animais, assim como os homens têm a capacidade de produzir ideias. Sendo que a diferença entre ambos é do mais ao menos, ou seja, o homem selvagem usufrui da capacidade de pensar como um agente livre, enquanto ao animal feroz cabe somente obedecer.

Todo animal tem idéias, pois tem sentidos e chega até a combinar suas idéias até certo ponto. Sob esse aspecto, o homem só difere do animal do mais ao menos. [...] não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem, senão sua qualidade de agente livre. A natureza manda em todo animal e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir. (ROUSSEAU, 2007, p.40).

Dessa forma, o animal obedece sempre à voz da natureza, dela não se afastando, até mesmo quando a situação lhe é desfavorável, pois o seu instinto fala mais alto, não permitindo afastar-se da regra natural. Já o homem ao contrário disso, age de acordo com a sua liberdade, se afastando de tudo daquilo que lhe prejudica a sobrevivência. “Uma escolhe ou rejeita por instinto, a outra por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, enquanto o homem se afasta freqüentemente daquilo que lhe prejudica.” (ROUSSEAU, 2007, p.40)

Vemos, sobretudo, ser essa uma questão muito importante para Rousseau, o de estudar o homem em seu estado natural, destacando sua constituição física, para em seguida analisando a sucessão dos tempos, conseguir determinar o que de original existiu no homem natural, daquilo que se agregou a ele por meio das circunstâncias e progressos obtidos, durante seu estado natural.

E como poderá chegar o homem a se ver tal como a natureza o formou, por meio de todas as transformações que a sucessão dos tempos e das coisas teve de produzir em sua constituição original e separa o que está em sua própria origem daquilo que as circunstâncias e o progresso acrescentaram ou modificaram em seu estado primitivo? (ROUSSEAU, 2007, p.23).

Para tanto, devo salientar de forma clara, a fim de que não se tenha nenhuma dúvida, que o homem selvagem apresentado por Rousseau no Segundo Discurso não é um ser histórico, real e concreto, mas, sim, uma ideia, uma abstração lógica, um conceito criado por Rousseau, com intuito mais de encontrar respostas do que afirmar verdades objetivas. A este respeito nos informa Xirau.

Rousseau propõe como modelo, repetidamente, um homem natural muito diferente: é uma criação do espírito, uma abstração lógica, uma entidade conceitual, uma idéia. Não se deve realizar nenhuma investigação histórica para encontrar esse “homem natural”. Diz Rousseau no Discurso sobre a origem da desigualdade: “Comecemos por descartar todos os fatos, pois eles não têm nada a ver com a questão.” Não se trata de realidades históricas, mas de “raciocínios hipotéticos e condicionais, voltados mais para esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar sua verdadeira origem.” (XIRAU, 2015, p.28).

O bom selvagem de Rousseau não mantinha nenhum tipo de relacionamento, seja emocional ou menos ainda moral, visto que, neste estado, o homem não era nem bom, nem mau, nem praticava virtude, nem tinha vício algum. “Parece, de início, que os homens nesse estado, não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus e não tinham vícios nem virtudes.” (ROUSSEAU, 2007, p.50).

Diz-nos Rousseau que o homem selvagem em seu estado natural busca apenas permanecer vivo, luta por sua sobrevivência, não se encontra em condição permanente de agressão e ataque, em que tudo destrói e devasta. Ao contrário disso, o homem nesse estado é tímido e foge de qualquer sensação de perigo ou situação a qual lhe seja desfavorável. O bom selvagem prima por sua conservação, para isso busca não sofrer nem tampouco ver sofrer ao outro, seja seu semelhante ou animal, suas ações são de sobrevivência em um ambiente presente e sensível e não podem ser julgadas pelo crivo da moralidade, pela óptica do ser bom ou mau.

Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e combater. Um filósofo ilustre pensa, ao contrário, e Cumberland e Puffendorf também o afirmam, que nada é mais tímido como o homem em estado natural, sempre trêmulo e pronto a fugir ao menor ruído que o impressione, ao menor movimento que perceba. Isso pode ser assim em relação aos objetos que não conhece e não duvido que não se impressione com todos os novos espetáculos que se lhe oferecem, todas as vezes que não pode distinguir o bem e o mal físicos que deve esperar, nem compara suas forças com os perigos que deve correr, circunstâncias raras no estado de natureza, onde todas as coisas marcham de maneira tão uniforme e onde a face da terra não está sujeita a essas mudanças bruscas e continuas que causam paixões e a incosntância dos povos reunidos. (ROUSSEAU, 2007, p.35).

Portanto, no Estado de Natureza, não se acha preocupação de ordem futurística e metafísica, um vez que o bom selvagem vive sempre o dia presente, sem preocupar-se com o futuro e com a aquisição de coisas supérfluas, ele não olha para o futuro como algo que acontecerá em breve. Assim, não tem ansiedade, não pensa no amanhã, não tem preocupações a longo prazo, suas preocupações são sempre o aqui e agora. “Esse é, ainda hoje, o grau de previdência do caraíba que vende pela manhã sua cama de algodão e vem chorar, à noite, para comprá-la novamente, por não ter previsto que precisaria dela na noite próxima.” (ROUSSEAU, 2007, p.42).

O homem selvagem apenas busca saciar as suas necessidades de ordem físicas, consubstanciadas pelo seu instinto e pelo impulso da natureza, daí as preocupações logo sumirem, pois quando a necessidade é suprida o desejo desaparece. “A imaginação, que faz tanto estragos entre nós, não fala a corações selvagens; cada um espera pacificamente o impulso da natureza, a ela se entrega sem escolha, com mais prazer que furor e, satisfeita a necessidade, todo o desejo se extingue.” (ROUSSEAU, 2007, p.56).

Por ser um homem inerentemente solitário e nômade, o bom selvagem ainda não havia desenvolvido nenhum tipo de comunicação ou linguagem, reduzindo-se primeiramente a gestos apontando para si mesmo ou para floresta e animais, assopros e balbudios, eram ainda que de forma primitiva seu único meio de comunicação, era o grito próprio da natureza, e sempre em ocasiões de grande perigo e para expressar alívio por escapar de situações de extrema violência.

A primeira linguagem do homem, a linguagem mais universal, a mais enérgica e a única de que teve necessidade antes que fosse preciso persuadir homens reunidos, é o grito da natureza. Como esse grito não era arrancado senão por uma espécie de instinto nas ocasiões prementes para implorar socorro nos grandes perigos ou alívio nos males violentos, não era de grande uso no curso ordinário da vida, em que reinam sentimentos mais moderados. (ROUSSEAU, 2007, p.46).

Dessa forma, a vida na natureza era simples e dispersa, não existia a necessidade de grandes desejos, com isso as paixões resumiam-se a necessidades empíricas e materiais. Os únicos bens dos quais o bom selvagem possuía no Estado de Natureza eram a alimentação, o sexo e o repouso. “Os únicos bens que conhece no universo são sua nutrição, uma mulher e o repouso.” (ROUSSEAU, 2007, p.42).

Em contrapartida, Rousseau também argumenta que no Estado de Natureza, o bom selvagem tinha seus males, os quais lhe atormentavam no seu cotidiano, que são a dor e a fome. Rousseau deixa claro que a morte não se enquadra nesse momento, visto que o homem só saberá a respeito dos malefícios da morte quando ele se distanciar do Estado de Natureza.

Os únicos males que teme são a dor e a fome. Digo a dor e não a morte porque o animal jamais saberá o que é morrer e o conhecimento da morte e de seus terrores é uma das primeiras aquisições que o homem tenha feito, afastando-se da condição animal. (ROUSSEAU, 2007, p.42).

Por fim, o bom selvagem de Rousseau não é bom porque toma atitudes ou ações boas, o bom selvagem é bom porque mantêm em sua essência a inocência da natureza; ele apenas age direcionado por seu instinto selvagem e não pela moralidade do certo e errado, quando ele caça algum animal, o faz simplesmente para satisfazer sua fome, agindo pelo instinto de sobrevivência, e não para ter o prazer da caça por diversão, essas atitudes são inerentes ao homem civilizado, que vive em sociedade, e não cabem ao homem selvagem, que vive solitário, buscando somente sua conservação.

 

2.3 LIBERDADE NO ESTADO DE NATUREZA

Prosseguiremos agora analisando algumas passagens de Rousseau no Segundo Discurso, que sugerem certa preocupação de nosso filósofo em responder possíveis críticas oriundas de suas argumentações sobre a condição da liberdade natural do homem no Estado de Natureza, ser mais miserável do que o homem civilizado. “Sei que nos repetem sem cessar que nada foi tão miserável como o homem nesse estado.” (ROUSSEAU, 2007, p.49).

O bom selvagem de Rousseau traz consigo a liberdade e a igualdade impostas pela natureza, não ancoradas no aspecto moral, pois como já foi mencionado neste estudo, existem as desigualdades naturais ou físicas de idade, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma. No entanto, a liberdade aqui referenciada tem o sentido de que o homem selvagem no Estado de Natureza pode tudo que lhe é acessível. Portanto, este homem selvagem traz sempre consigo a liberdade de estar continuamente em paz e com saúde. “Ora, só desejaria que me explicassem qual pode ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde.” (ROUSSEAU, 2007, p.49).

Rousseau argumenta ainda a este respeito que ao homem selvagem não cabe se lastimar e reclamar das condições de sua vida no Estado de Natureza, uma vez que a natureza é sua principal provedora e protetora. O homem selvagem em sua plena liberdade não tem atitudes de morte e, sim, de vida e de conservação de sua existência. “Pergunto se jamais se ouviu dizer que um selvagem em liberdade tenha somente pensado em se lastimar da vida e em se suicidar.” (ROUSSEAU, 2007, p.50).

Assim, Rousseau diz que, ao contrário de ser o homem selvagem um miserável vivendo no Estado de Natureza, o homem civilizado seria o miserável, que afastado e vivendo em um estado diferente de sua origem, vivia iludido pelas luzes do entendimento, submetido às paixões e à racionalidade. “Nada, ao contrário, tem sido mais miserável que o homem selvagem deslumbrado pelas luzes, atormentado pelas paixões e raciocinando sobre um estado diferente do seu.” (ROUSSEAU, 2007, p.50)

Portanto, era o homem selvagem, conforme o pensamento de Rousseau, um ente livre de obrigações mútuas entre ser bom e mau, posto que esses adjetivos não poderiam ser-lhes designativos, pois não faziam parte do Estado de Natureza, nem eram conhecidos pelo homem selvagem, “de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bom.” (ROUSSEAU, 2007, p.51).

Dessa forma, o homem no Estado de Natureza possui igualdade e liberdade naturais, aspectos facilmente percebíveis no transcorrer do Segundo Discurso, tendo em vista a ênfase com que o autor genebrino destaca, por um lado, a indepedência do homem selvagem e, por outro lado, a sua capacidade de escolha no Estado de Natureza.

Como vimos, Rousseau argumenta claramente que o bom selvagem no Estado de Natureza possuía independência natural, pois tudo o que queria ele buscava na natureza sem nenhuma proibição, o que nos dá a ideia de autossuficiência, ele não precisava de ninguém a não ser dele mesmo, para conservação de sua existência. Dessa forma, o bom selvagem tinha em si a liberdade pura, ou liberdade natural, e livre seguia sua vida no Estado de Natureza sem ser perturbado ou importunado, e sem preocupação alguma, visto que não existiam as preocupações do homem moderno, as quais lhe trazem ansiedade e desespero de que no amanhã as coisas necessárias a sua sobrevivência possam faltar-lhe.

O estado de natureza, como vimos, é essencialmente um estado de independência. Admitir essa ideia é então afirmar que ninguém está por natureza submetido à autoridade de outrem, é a partir do princípio de que os homens nascem livres e iguais. Esse princípio, que a maior parte dos partidários da teoria do direito divino nega, é conjunto comum a todos os filósofos da escola do direito natural. Rousseau tem perfeita consciência de que ele enuncia um lugar-comum quando afirma, por sua vez, que os homens são naturalmente iguais. (DERATHÉ, 2009, p.197)

Rousseau ressalta uma característica muito importante no homem selvagem que é a capacidade de pensar. No entanto, deve-se observar que neste momento da vida do homem selvagem essa capacidade de pensar, de conceber ideias sobre as coisas, ainda não estava de toda desenvolvida. Posto que, dependia de um processo laborioso, do qual o homem selvagem precisaria de estímulos a fim de atualizar sua situação, tirando suas ideias da virtualidade para a realidade, o que lhe dava vantagem sobre os demais animais.

A capacidade de conceber idéias sobre as coisas não se achava dada em sua plenitude; desde o início ela só se constituirá ao longo de um processo laborioso. No homem primitivo, essa Razão de que tanto nos orgulhamos e essa inteligência de que tanto dependemos só se encontram em estado “virtual”, como algo que ainda não se manifestou plenamente e que necessita de estímulo para se “atualizar”, ou passar de uma condição como sono para a plena vigília. (SALINAS, 1996, p.29).

Assim como a independência que dá ao homem selvagem a sua autossuficiência, a capacidade de escolha dá ao homem selvagem a capacidade de agente livre, uma vez que ao animal só cabe obedecer a voz imponente da natureza, mesmo quando isso não lhe seja vantajoso, o que o homem como agente livre não faz, pois assim que percebe que a situação ali presente vai lhe prejudicar de alguma forma ele escolhe não fazer e foge para longe daquela situação. Exercendo assim sua liberdade por meio da escolha.

Conquanto ao argumento da liberdade de escolha do homem selvagem sobre os demais animais ferozes, ativada nele pelo estímulo da natureza, temos ainda a destacar a faculdade de se aperfeiçoar, ou seja, a perfectibilidade. Tal faculdade, segundo Rousseau, pertence ao homem de forma coletiva e individual, sendo, pois, responsável pela capacidade primitiva de transcendência e transformação do homem selvagem. A qual lhes dá condições de ir além daquilo que eram, evoluindo racionalmente, por meio dos estímulos da natureza. Como exemplo, temos sua luta diária pela sobrevivência, fator responsável por estas mudanças.

Entretanto, quando as dificuldades que envolvem todas essas questões deixassem em algum momento de motivar discussões sobre essa diferença do homem e do animal, há uma qualidade muito específica que os distingue, sobre a qual não pode haver contestação. É a faculdade de se aperfeiçoar, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside, entre nós, tanto na espécie como no indivíduo, ao passo que um animal atinge, no fim de alguns meses, o que será toda a vida e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. (ROUSSEAU, 2007, p.40).

Nestes termos, o homem selvagem, ao passar dos anos, vai exercitando continuamente seus sentidos que vão se aprimorando cada vez mais. Em conseqüência disso, vai progredindo e evoluindo por meio de sua razão e liberdade, que antes parecia estar em estado de repouso, inerte, e que foi despertada pela faculdade da perfectibilidade. Assim, quanto mais o homem selvagem se colocava em estado de pensamento, tendo ideais e raciocinando, mais ele progredia e evoluía. Porém, esta faculdade da perfectibilidade, em exercício pelo homem selvagem não era segundo Rousseau de todo boa, pois sua abrangência no homem mais males causou do que benesses.

Por que só o homem está sujeito a tornar-se imbecil? Não será porque volta assim a seu estado primitivo e, enquanto o animal, que nada adquiriu e nada, tampouco, tem a perder, fica sempre com seu instinto, o homem perdendo de novo com a velhice ou outros acidentes tudo o que sua perfectibilidade o fizera adquirir, descamba assim mais baixo que o próprio animal? Seria triste para nós sermos forçados a convir que essa faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todas as desgraças do homem; que é ela que o tira por força do tempo dessa condição original em que ele passaria dias tranquilos e inocentes; que é ela que, fazendo desabrochar com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. (ROUSSEAU, 2007, p.41).

Dessa forma, em concordância com as argumentações de Rousseau está o pensamento de Salinas Fortes (1996), quando escreveu de forma categórica que a faculdade da perfectibilidade é a responsável diretamente por afastar o homem da natureza, colocando-o na estrada que lhe causará a sua degeneração, com consequências sinistras.

E é fácil perceber que essa faculdade “quase ilimitada” é a grande fonte, ao lado da liberdade, de todas as infelicidades do gênero humano. Graças à perfectibilidade o homem se afasta cada vez mais da tutela da natureza e acaba por desviar-se, aventurando-se por caminhos que lhe serão funestos. (SALINAS, 1996, p.30).

É necessário destacar o pensamento de Rousseau a respeito de dois princípios que são anteriores à razão, e que já foram mencionados nesse estudo, mas aqui torna-se importante para enfatizar a questão da liberdade natural, que são: primeiramente, a sua preservação ou conservação, também chamado de amor de si5, e, em segundo lugar, é a piedade, conforme nos esclarece o professor Kurle quando nos diz: “[...] que são o princípio de toda subjetividade: o amor de si (instinto de preservação) e a piedade (desgosto em ver qualquer animal ou ser humano sofrer).” (KURLE, 2011, p.70)

Assim, o amor de si é um sentimento primeiramente natural, portanto, pertence a todos os animais, pois todos sem exceção lutam por sua preservação, a fim de conservar sua existência. Nenhum animal procura ferir-se a si mesmo, pois se o fizesse estaria indo em sentido contrário ao seu instinto natural. Já no homem selvagem em pleno exercício da perfectibilidade, que começava a usar de sua razão modificada pela piedade como forma de extensão do amor de si, produz nele a humanidade e a virtude.

Em contraste ao amor de si, há o amor próprio6, o qual, cita Rousseau, Thomas Hobbes (1588-1679) não percebeu seu real significado, tendo inclusive levado os efeitos deste amor próprio ao Estado de Natureza, colocando-o sobre os ombros do homem selvagem, fazendo viver em constante estado de guerra, o que para Rousseau seria inadmissível, pois o homem no Estado de Natureza exercia as atividades do amor de si.

Além disso, há outro princípio que Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado ao homem para suavizar em certas circunstâncias a ferocidade de seu amor próprio ou o desejo de se conservar em estado anterior ao nascimento desse amor. (ROUSSEAU, 2007, p.52).

Quanto à piedade, que produz no homem selvagem o desgosto de ver sofrer animal ou humano, pois como tal, consegue ao olhar para o seu semelhante colocar-se em seu lugar, sentindo sua dor e sofrimento, o que lhe causa repugnância e repúdio ao ver ou causar o sofrimento alheio, o que acaba por contribuir também para a conservação da espécie humana. “Assim como o amor de si leva à conservação do indivíduo, a pitié, faculdade de compartilhar o sofrimento alheio, é uma espécie de instinto de conservação mútua da espécie.” (SALINAS, 1996, p.31).

Feitas as devidas considerações acerca do ambiente natural e do homem selvagem em seu cotidiano, analisaremos, a partir do próximo capítulo, os percalços que levaram a humanidade à tomada de decisão de sair do Estado de Natureza. Nesse sentido, apresentaremos os argumentos de Rousseau a respeito da origem da sociedade civil e suas principais consequências, que culminaram na degeneração e corrupção do homem. Do mesmo modo, adentraremos nas questões formuladas por Rousseau quanto à sociedade civil e às desigualdades impostas ao homem, que se prontificou a viver em comunidades.

 

  1. RETORNO AO ESTADO DE NATUREZA

    1. SAÍDA DO ESTADO DE NATUREZA

O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: “Isto é meu” e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não teriam sido poupados ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor! Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!’ (ROUSSEAU, 2007, p.61).

Foi com essa afirmação impactante a respeito da origem da fundação da sociedade civil, que Rousseau iniciou a segunda parte do seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (1755). Para Rousseau, não restou dúvida alguma senão que a fundação da sociedade civil foi diretamente relacionada à iniciativa dos homens em apoderarem-se de determinados objetos, ou seja, o “meu” e o “teu”, deviam agora ser separados. No caso aqui, a posse da propriedade privada por um grupo de homens e a conseqüente ingenuidade de outros em aceitar a posse da terra, para uso e propriedade individual de uns, em detrimento do todo coletivo, foram sem dúvida alguma para Rousseau a principal causa do fim do Estado de Natureza e o estabelecimento da sociedade civil. Foi com este conceito de propriedade privada adquirido pelo homem junto ao sentimento de exclusividade de posse absoluta de determinadas coisas, com exclusão do uso por seus semelhantes, que o Estado de Natureza começou a desvanecer, num declínio que lhe custaria sua destruição. “É com a introdução da propriedade que esse estado de juventude será destruído” (SALINAS, 1996, p.34). Ainda considerando o surgimento da ideia de propriedade privada pelo homem selvagem, como fator principal do fim do Estado de Natureza, bem como levando em consideração à duração de tempo ocorrido até o grau de entendimento pelo espírito humano, que culminou no fim de um estado e começo de outro. Assim esclarece Robert Wokler:

A propriedade privada requeria não só a língua, mas também a industriosidade, a iniciativa, o progresso e o esclarecimento, de modo que, na verdade, ela constituía o “último ponto do estado de natureza” e o primeiro ponto no surgimento da sociedade civil.” (ROBERT WOKLER, 2012, p.63).

A partir do momento em que o homem selvagem começou a compreender a ideia de posse, vislumbrou-se nele a ocorrência de uma mudança de parâmetros em sua vida. Outrora ligado e dependente total da natureza, porém independente de seu semelhante, ele passa agora a uma posição de independência da natureza e total dependência de seu semelhante. “De uma condição de integração com a natureza circundante e de independência de seus semelhantes, o homem evoluirá para uma situação de independência da natureza e de dependência em relação a outro homem.” (SALINAS, 1996, p.32). Os homens agora queriam manter tudo em seu domínio, afinal de contas a propriedade era sua, e os frutos do seu trabalho em suas terras lhe pertenciam. Ele nada devia a ninguém a não ser ele mesmo. “A partir de determinado momento, os homens, que nada possuíam de seu e tudo partilhavam no seio da tribo, passaram a manter sob seu domínio exclusivo os frutos de seu trabalho ou a terra que trabalham.” (SALINAS, 1996, p.34)

Com efeito, a fundação da sociedade civil, por meio da posse individual da propriedade pública, tornando-a propriedade privada, trouxe consigo alguns males. A lista exposta por Rousseau é grande: crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores de toda sorte. Situação esta que era alheia ao Estado de Natureza e que, segundo Rousseau, poderiam ter sido evitadas, bastando apenas para isso que os homens tivessem lembrado que a terra e os frutos são de todos e não pertenciam a ninguém.

Nesse raciocínio, entendo oportuno o argumento do professor Robert Wokler, quando ele diz:

A terra teria se tornado insuficiente devido à apropriação individual e à transmissão hereditária, enquanto ocorria um crescimento da população, levando a usurpações perpetradas pelos ricos, a roubos cometidos pelos pobres e ao desenfreamento das paixões de ambos os lados. (WOKLER, 2012, p.63).

Assim, logo a terra tornou-se pequena para ser partilhada entre os homens, pois se a posse da propriedade lhe dava exclusividade total, somente para si, e os demais homens tendiam a aumentar cada vez mais, só lhes restava procurar outras terras, pois a transmissão hereditária seria uma conclusão óbvia, daí seria fácil o despertar nos homens dos seguintes males, como guerras, roubos, assassinatos e vários crimes e horrores, exatamente como Rousseau deduziu. Rousseau analisou a partir desse ponto, os pormenores que culminaram com o fim do Estado de Natureza e o surgimento da sociedade civil, tentando seguir uma ordem cronológica dos fatos.

Nesta perspectiva, Rousseau admite que a situação do homem selvagem no Estado de Natureza já havia alcançado um patamar em que as coisas não poderiam mais permanecer como estavam. Assim, sob a ação da perfectibilidade, as faculdades humanas se desenvolveram de forma contínua e brilhante. No entanto, foi também causa da perversão das qualidades do homem em estado primitivo, “cabe agora reconstituir o processo ambivalente de transformações que, mediante a ação da perfectibilidade, conduzirá um desenvolvimento brilhante das faculdades humanas e, ao mesmo tempo, a uma perversão de suas disposições primitivas.” (SALINAS, 1996, p.32).

Dessa forma, ressalta Rousseau que o próprio conceito de propriedade demandaria algum tempo a ser formado no espírito humano e, consequentemente, também demoraria muito tempo para ser posto em prática, ou seja, esta mudança não ocorrera do dia para noite, mas houve dispêndio de tempo.

Parece de todo evidente, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não poder mais perdurar como estavam porque já tinham essa idéia de propriedade, dependendo muito de idéias anteriores que só puderam surgir sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano. (ROUSSEAU, 2007, p.61).

Com isto, foi necessário que ocorressem muitos progressos e, cada vez mais que o conhecimento fosse adquirido por meio das luzes que começavam a clarear o homem selvagem, mais o homem se corrompia em sociedade. “Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muitas indústrias e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza” (ROUSSEAU, 2007, p.61).

Conquanto, passa Rousseau a narrar da forma mais natural possível a sucessão de acontecimentos e conhecimentos que provocou a criação do estado civil e suas conseqüências. Diz Rousseau que o primeiro sentimento do homem nessa condição foi o conhecimento de sua própria existência, o que lhe permitiu um olhar mais reflexivo a sua volta, dando-lhe condições de vislumbar o progresso que ele esperava.

Foi pertinente ao nosso filósofo, nesse momento, recordar algumas nuances das primeiras condições do homem no Estado de Natureza. Essa nova leitura dos pormenores do Estado de Natureza serviu de base para suas próximas argumentações. Logo, tudo mudaria e seria conveniente se adaptar a esta nova realidade. “Essa foi a condição do homem no começo. Essa foi a vida de um animal limitado primeiramente às puras sensações e aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a natureza, [...]” (ROUSSEAU, 2007, p.62). Essas mudanças narradas por Rousseau, das quais os homens tiveram que superá-las e vencê-las, serviram como uma espécie de motor de propulsão, que por meio da ação da perfectibilidade desenvolveram nele suas faculdades humanas.

Rousseau começa então, a numerar algumas dificuldades, como a alturas das árvores, que impedia os homens de alcançarem seus frutos, havia também o embate direto com os animais na procura da alimentação, que ao mesmo tempo impediram os mais ferozes de atentarem contra a própria vida do homem, diante dessas práticas o homem foi obrigado aos exercícios físicos.

Logo, porém, surgiram dificuldades e era preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que também procuravam nutrir-se, a ferocidade daqueles que queriam sua própria vida, tudo o obrigou a aplicar-se aos exercícios do corpo. (ROUSSEAU, 2007, p.62)

Foi mediante essas novas dificuldades que os homens começaram a progredir de forma gradual, tornando-se superior e independente da natureza, ficando a cada dia mais dependende dele próprio. Aos poucos aprendeu a utilizar-se de instrumentos naturais como armas, e pôde combater e defender-se de outros animais e de inimigos mais fortes, ou ainda a ceder quando não podia combatê-los.

As armas naturais, que são os galhos das árvores e as pedras, logo estavam em suas mãos. Aprendeu a vencer os obstáculos da natureza, a combater quando necessário os outros animais, a disputar sua subsistência com outros homens ou a se compensar do que era obrigado a ceder ao mais forte. (ROUSSEAU, 2007, p.62)

Nesse sentido, o modo de viver do homem outrora pacato e tranquilo passa por uma verdadeira transformação, tudo estava em processo de transformação e mudanças, as situações eram agora novas e inéditas, até mesmo a natureza trazia obstáculos antes desconhecidos do homem solitário, para o agora homem que vive em comunidade, conforme nos afirma Rousseau. “A diferença dos terrenos, dos climas, das estações, deve tê-los forçado a incluí-la em sua maneira de viver.” (ROUSSEAU, 2007, p.62) Assim, forçados por uma série de fatores naturais e climáticos, os homens tiveram que partir para novas descobertas, nos diz Rousseau que nos percursos dos mares, lagos e rios, alguns se fizeram pescadores, inventando a linha e o anzol. Já outros nos percursos das florestas vieram a tornar-se caçadores e guerreiros, inventaram o arco e flechas, consumindo novos alimentos que passaram a fazer parte de sua alimentação. “Ao longo do mar e dos rios, inventaram a linha e o anzol e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas, fizeram arcos e flechas e se tornaram caçadores e guerreiros.” (ROUSSEAU, 2007, p.62).

Até mesmo sua forma de portar-se e vestir-se foram alterados, assim que perceberem que poderiam utilizar-se das ferramentas por eles inventadas. Assim, nas terras mais frias, começaram a usar as peles dos animais, aprenderam a fazer e conservar o fogo, que passaram a utilizá-lo como novo aliado, contra os rigorosos invernos.

Nos países frios, cobriam-se de peles de animais por eles mortos. O trovão, um vulcão ou qualquer feliz acaso levou-os a conhecer o fogo, novo recurso contra o rigor do inverno. Aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo e enfim a preparar nele as carnes que antes devoravam cruas. (ROUSSEAU, 2007, p.62)

Com esse novo olhar a respeito da natureza, capitaneado pelas luzes da racionalidade, os homens passaram a dominar os animais, subjugando-os ao bel-prazer humano. Essa situação produziu no homem o primeiro sentimento de orgulho, “foi assim que o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo produziu nele o primeiro movimento de orgulho.” (ROUSSEAU, 2007, p.63) Um novo hábito no viver coletivo da humanidade trouxe consigo o amor conjugal e paternal, se antes em pleno Estado de Natureza homens e mulheres, se viam raramente e quando ficavam juntos faziam sexo e se separavam, as mulheres tinham seus filhos sozinhas e assim que os mesmos não dependiam mais das mães a abandonavam, agora, vivendo em comunidade homens e mulheres viviam sob o mesmo teto, constituindo uma família em que conviviam perfeitamente com os filhos e pela primeira vez, foi designado a cada membro da família a desempenharem papéis e tarefas diferentes. “As mulheres tornaram-se mais sedentárias e se acostumaram a guardar a cabana e os filhos, enquanto o homem ia procurar a subsistência comum.” (ROUSSEAU, 2007, p.65).

Nascia uma nova forma de vida, simples e comunitária, auxiliados por suas novas ferramentas de trabalho, homens e mulheres emudeceram no corpo e no espírito. Dispunham de bastante tempo livre, onde procuravam ainda mais, outras formas de comodidade, tendo essa situação segundo Rousseau contribuído ao surgimento de uma fonte de males, para si e para seus descendentes. No entanto, essa condição do homem e seu desenrolar serão melhor explicadas no próximo tópico, onde abordarei a questão do ter e ser, que viria a se tornar a fonte principal desse mal descrito por Rousseau.

 

    1. SER E PARECER

Nesse novo estado, com uma vida simples e solitária, necessidades muito limitadas e os instrumentos que haviam inventado para provê-las, os homens, gozando de muito tempo de lazer, empregaram-no em procurar várias espécies de comodidades desconhecidas de seus pais. E foi esse o primeiro jugo que se impuseram sem pensar e a primeira fonte de males que preparam para seus descendentes porque, além de continuarem assim a amolecer o corpo e o espírito, tendo essas comodidades com o hábito perdido quase todo o seu encanto e, ao mesmo tempo, tendo degenerado em verdadeiras necessidades, a privação delas se tornou muito cruel de quanto sua posse havia sido prazerosa. E tornaram-se infelizes ao perdê-las, sem ficarem felizes ao possuí-las. (ROUSSEAU, 2007, p.65)

Nessa nova perspectiva de vida em comunidade, homens e mulheres que no Estado de Natureza viviam uma vida nômade e solitária passaram a viver uma vida coletiva, onde depediam cada vez mais uns dos outros para sobreviver. Com isso, as necessidades que outrora eram supridas diretamente na natureza, eram agora supridas por uma espécie de intermédiario, de modo que uns tornaram-se agricultores e outros ferreiros, pescadores, caçadores e assim por diante. Cada um cumpria suas tarefas em benefício do coletivo, o que sobrava tempo livre, onde logo surgiu a ideia de lazer, a fim de ocupar o espaço e tempo disponíveis. Eis aí o surgimento de alguns males incutidos no homem moderno.

Homens e mulheres passaram a querer ser notados e considerados, isso à medida que eram cada vez mais levados a serem domesticados, pelo sentimento de agregação mútua, os laços se apertavam em união, começaram a adquirir hábitos de sentar a roda de uma fogueira, a cantar e achar bonito determinado canto, em detrimento de outros menos afinados. Olhavam o outro querendo ser e ter a mesma atenção e, foi assim, que o sentimento de estima começou a ter apreço entre os homens. Como conseqüência disso, foi dado o primeiro passo, para as desigualdades e vícios, despertando também no espírito humano, a vaidade, o desprezo, a vergonha, a inveja e, demais sentimentos perversos, que contaminaram a felicidade e inocência humana.

Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e, ao mesmo tempo para o vício. Dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos para a felicidade e a inocência. (ROUSSEAU, 2007, p.66-67).

Nessa perspectiva, houveram significativas mudanças nas relações e qualidades do homem em sua constituição primitiva. Essas mudanças foram impulsionadas pela moralidade e fizeram os homens desiguais e opressores uns dos outros. Portanto, fazendo sumir entre eles, a bondade proveniente ao Estado Natural, que de modo alguma era de interesse a essa nova ordem social vigente.

É preciso observar, porém, que a sociedade começada e as relações já estabelecidas entre os homens exigiam neles qualidades diferentes daquelas que tinham em sua constituição primitiva; que a moralidade, começando a ser introduzida nas ações humanas, e cada um, antes das leis, sendo único juiz e vingador das ofensas recebidas, a bondade conveniente ao puro estado de natureza não era mais a que convinha à sociedade nascente; [...]. (ROUSSEAU, 2007, p.67).

Na medida em que os homens mostraram-se dependentes apenas da natureza, eram livres. Todavia, quando os homens observaram a utilidade um do outro, e passaram a dependência entre si, e viram vantagem nessa situação, a igualdade sumiu, e a propriedade apareceu e com ela a desigualdade, escravidão e miséria. “Enquanto se dedicavam a uma economia de subsistência que não necessita do concurso uns dos outros, os selvagens viviam não só felizes como se bastavam a si mesmos e ignoravam a propriedade.” (SALINAS, 1996, p.34).

Para tanto, foram necessárias o surgimento e desenvolvimento de duas artes, a metalurgia e a agricultura, que culminaram com essa verdadeira revolução, que civilizaram os homens e perderam o gênero humano. “A metalurgia e agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução. Para o poeta, foram o ouro e a prata, mas para o filósofo foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano.” (ROUSSEAU, 2007, p.68).

Dessa nova situação da condição humana, advieram duas situações, que foram à divisão do trabalho e a propriedade privada. Para o comentador e professor Salinas Forte, essa intervenção no processo histórico natural se deu de forma necessária e inevitável. “Da invenção dessas artes, mediante as quais se intervém de maneira insuspeitada no curso dos processos naturais, brotou como conseqüência inevitável a divisão do trabalho e a propriedade privada” (SALINAS, 1996, p.35).

A igualdade foi logo corrompida, uma vez que, as duas condições o consumo do ferro e do alimento, não foram exposta em balanças exatas, mas em balanças de proporções variáveis, que pendiam apenas para um dos lados. E assim, a desigualdade fortalecia-se cada vez mais entre os homens. Poucos lucravam ficando ricos, enquanto muitos só trabalhavam, ficando cada vez mais pobres.

O novo vínculo se constitui mediante a troca dos produtos que são objeto de uma apropriação exclusiva. Mas é também dessa apropriação excludente que as disparidades vão se nutrir e a partir dela é que poderão fortalecer-se as desigualdades, apoiadas nas próprias variedades ambientais e nas diferenças naturais entre os proprietários. Alguns, por exemplo, serão capazes de acumular mais riquezas do que outros. (SALINAS, 1996, p.35).

Ressalte-se aqui, que as faculdades humanas já se encontram desenvolvidas. “Ai estão, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em jogo, o amor-próprio interessado, a razão tornada ativa e o espírito chegado quase ao termo da perfeição de que é suscetível.” (ROUSSEAU, 2007, p.71)

Portanto, todas as qualidades humanas encontram-se perfeitas e atuantes, causando e influenciando as ações dos homens, logo, lhe trariam transtornos, sendo necessário em determinado momento possuí-las ou afastá-las. Com isso e, para obtenção de vantagens próprias os homens fizeram-se diferentes, daquilo que eram realmente. As palavras ser e parecer, já não eram iguais, tornaram-se, desiguais. Ocasionando assim, muitos enganos e vícios no já alongado cortejo de desigualdade do homem na Sociedade Civil.

Aí estão todas as qualidades naturais postas em ação, o lugar e a sorte de cada homem estabelecidos, não somente sobre a quantidade dos bens e o poder de servir ou de prejudicar, mas sobre o espírito, a beleza, a força ou a habilidade, sobre o mérito ou os talentos; e, sendo essas qualidades as únicas que podiam atrair a consideração, logo foi preciso tê-las ou afastá-las. Foi preciso, para vantagem própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de fato. Ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes e, dessa distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo. (ROUSSEAU, 2007, p.71)

Essa situação do homem em ser e querer parecer o que não era não foi uma condição inerente ao Estado de Natureza. No Estado de Natureza os homens se viam a si mesmo como eram e tinham um olhar benevolente, para com seu semelhante, perdurando o amor de si. Por outro lado, nesta nova condição humana, ou seja, com o desenvolvimento da Sociedade Civil, os homens já degenerados moralmente e vaidosos, não queriam ser visto como eram perdurando neste caso o amor próprio, assim nos conta o professor Robert Wokler.

Enquanto animais e seres humanos no estado selvagem ou não civilizado se mostram como são e vêem os outros com olhos benevolentes, apenas as pessoas moralmente degeneradas se mostram como querem ser vistas pelos outros, iguais ou melhores do que eles. No verdadeiro estado de natureza, não existia a vaidade ou amour-propre. O amour de soi e a compaixão que compartilhamos com todas as outras criaturas teriam bastado para garantir nossa sobrevivência. (WOKLER, 2012, p.68)

Com efeito, quanto mais os homens queriam ser o que não eram, mais dependentes entre si ficavam. Ricos e pobres, embora diametralmente diverso entre si, porém, mediante novas necessidades surgidas com a criação da propriedade privada, agora, dependiam um do outro. “[...], mesmo tornando-se seu senhor: rico, tem necessidade de seus serviços; pobre, tem necessidade de seu auxílio e a mediocridade não o coloca em situação de prescindir deles.” (ROUSSEAU, 2007, p.71).

Por conta dessa desigualdade entre ricos e pobres, as querelas iam aumentando, culminando em verdadeiras lutas entre si e conflitos que chegavam à beira da exaustão. Essa situação se assemelha muito a expressão “luta de classes”7, utilizada pelo filósofo alemão Karl Marx (1818-1883). Ainda que, Rousseau mesmo não tenha utilizado esta expressão, aqui utilizada, para facilitar a compreensão e o entendimento das ideias de Rousseau. “Com a instituição da propriedade privada e conseqüente desigualdade, cria-se entre ricos e pobres um estado permanente de desavença e uma verdadeira "luta de classes". (Rousseau não utilizou essa expressão.)” (SALINAS, 1996, p.35)

Com isso, os ricos a fim de aumentarem suas posses e riquezas, sacrificavam seus semelhantes, apenas por estarem movidos por uma ambição devoradora, mesmo que não tivessem necessidade alguma de fazê-lo. O que servia apenas, para demonstrar somente o quão grande se tornara o abismo da desigualdade entre ricos e pobres.

Numa palavra, concorrência e rivalidade de uma parte e, de outra, oposição de interesse e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem. Todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente. (ROUSSEAU, 2007, p.72).

Foi assim, com a força dos mais abastados, que fizeram de suas necessidades leis, as quais sufocavam cada vez mais, os fracos e pobres, seguiu-se uma espantosa desordem. Enquanto os homens por meio do amor-próprio só pensavam em si mesmo e, com isso, mais infligiam os seus semelhantes.

Foi o abuso dessa capacidade de aprimoramento próprio, e não o direito natural, que permitiu a transformação de nossas diferenças meramente físicas em diferenças morais coercitivas e, assim, foi o fator mais importante na criação da desigualdade social. (WOKLER, 2012, p.76)

Dessa forma, se estabeleceu, entre os homens um ambiente de desordem, com assaltos, assassinatos, paixões desenfreadas e sufoco da justiça, causando um estado permanente de guerras e conflitos sanguinários.

Levantava-se entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante um conflito perpétuo que só terminava por meios de combates e assassinatos. A sociedade nascente foi praça do mais terrível estado de guerra. O gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes aquisições já obtidas e não trabalhando senão para sua vergonha pelo abuso das faculdades que o dignificam, colocou-se a si mesmo na véspera de sua ruína. (ROUSSEAU, 2007, p.73)

Chegando a essa inevitável situação, os mais poderosos e ricos, logo perceberam não existir vantagem alguma numa guerra sem fim, onde poderiam não só perder a vida, como suas propriedades e recursos. Todavia, para se evitar mais prejuízos e, evitar essa guerra sem fim, os ricos instituíram uma razão ilusória em desfavor dos pobres. Uma espécie de pacto social, que objetivava agregar em suas próprias forças, os outrora inimigos, reunindo todos em uma só regra de pretensa justiça, ricos e pobres, com direitos e obrigações mútuas.

Eis constituída uma ordem social que, acima dos interesses antagônicos, deverá resguardar os interesses superiores de todos os indivíduos e, levando-os a resolver suas querelas mediante a arbitragem e o acordo, substitui a guerra pela paz social. Isso, ao menos, teoricamente. Na realidade, a instituição de uma ordem legal, ao mesmo tempo em que promove a paz, legitima a propriedade privada e dá respaldo às desigualdades existentes. (PAIVA, 2010, p.35)

Diz Rousseau que, todos correram para submeterem-se a esta nova ordem social, em busca de liberdade, sem terem a noção que iam em direção às algemas da escravidão. “Todos correram para submeter-se aos grilhões, acreditando assegurar a própria liberdade porque, com bastante razão para perceber as vantagens de um estabelecimento político, não tinham bastante experiência para prever os perigos dele.” (ROUSSEAU, 2007, p.74)

Assim, se estabelecia entre os homens a desigualdade moral ou política, que é convencionada pela própria vontade humana. E que trouxe consigo principalmente aos mais pobres e fracos muitos e novos obstáculos, enquanto que para os ricos e fortes deu-lhes mais forças. Sendo efetivada com o surgimento da lei da propriedade e a conseqüente desnaturalização do homem selvagem, tornando-o civilizado, levando o gênero humano, a conviver em servidão e misérias.

Essa foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem retorno a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. (ROUSSEAU, 2007, p.74-75)

Por certo, Rousseau argumenta que a reflexão sobre a desigualdade social, conduz a uma diferença entre o homem selvagem, no estado natural, e o homem politizado no estado civil, de tal forma que, a felicidade de um, reduziria o outro ao desespero. “O que a reflexão nos ensina sobre isso, a observação o confirma perfeitamente. O homem selvagem e o homem politizado diferem de tal modo no fundo do coração e nas inclinações, que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao desespero.” (ROUSSEAU, 2007, p.88)

Enquanto o selvagem encontra-se em repouso e liberdade. O homem politizado que se encontra em sociedade, vive agitado e atormentado em suas atividades laboriosas. “Ao contrário, o cidadão, sempre ativo, sua, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais laboriosas;” (ROUSSEAU, 2007, p.89). Conclui-se daí que a causa de todas essas diferenças é que o homem selvagem vive em si mesmo. E o homem sociável, sempre fora de si, vive da opinião alheia.

Essa é, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças; o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, não sabe viver senão na opinião dos outros e é, por assim dizer, exclusivamente de seu julgamento que tira o sentimento de sua própria existência. (ROUSSEAU, 2007, p.89)

Corroborando com esta argumentação de Rousseau, assim também, nos diz o professor Salinas Forte:

É essa paixão destruidora que responde, em última instância, pelo estado de verdadeira alienação, de saída de si e da própria órbita que caracterizará a vida na sociedade "civilizada". Transformando-se em verdadeiro "furor de se distinguir", essa paixão leva o civilizado a prezar acima de tudo as honrarias, a reputação e a opinião alheia. Retomando uma fórmula expressiva do filósofo: enquanto o selvagem "vive em si mesmo", o "homem sociável", sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais. (SALINAS, 1996, p.36)

Concluídas estas considerações referentes à origem da Sociedade Civil e da corrupção do gênero humano, prosseguiremos agora, no tópico seguinte, analisando os principais equívocos da real interpretação do que seria o retorno ao Estado de Natureza proposto por Rousseau, bem como, demonstraremos também, por meio do estudo e da análise do Segundo Discurso, qual o verdadeiro significado deste retorno a natureza da qual Rousseau, evidenciou em sua obra mais natural.

 

    1. RETORNO AO ESTADO DE NATUREZA

 

Rousseau foi um visionário, um pensador altruísta e inovador, um homem que viveu a frente do seu tempo, um propagador de ideias, sobretudo as que dizem respeito à existência humana e sua origem, seu foco principal sempre foi à humanidade, seja nos aspectos social, psicológico, político e jurídico. Quanto à construção de um estado hipotético imaginário: “[...] conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez não tenha existido, que provavelmente não existirá nunca e do qual, no entanto, é necessário ter noções justas para bem julgar nosso estado presente. (ROUSSEAU, 2007, p. 24). Rousseau buscou entender esta humanidade, por meio de um processo de regresso, uma verdadeira volta aos primórdios da existência humana, retrocedendo ao mais longe quanto fosse possível, daí chegando a conceituação de Estado de Natureza. Este conceito é de muita valia e importância para Rousseau, uma vez que pode analisar o homem do seu tempo em seu ambiente atual em comparação ao homem natural vivendo no Estado de Natureza, firmando assim seus estudos e tirando as conclusões necessárias à formulação de seu pensamento filosófico.

Nesse sentido, e na intenção de melhor compreensão a respeito da verdadeira noção do retorno ao Estado de Natureza proposto por Rousseau no Segundo Discurso, temos que ter em mente que o Estado de Natureza, nunca foi real para Rousseau, não se trata de uma verdade histórica, de um fato marcado nos anais da humanidade. Entretanto, deve-se levar em consideração que Rousseau utilizou-se do método lógico-explicativo8, supondo e conjecturando em seu pensamento os acontecimentos, procurando ter noções justas do que deve ter sido esse remoto e imaginário Estado de Natureza. “Inicialmente, deve-se salientar que, em nenhum momento a história é perquirida na elaboração do conceito de estado natural.” (RÔMULO, 2012, p.40).

Assim, logo de início percebemos que Rousseau não está propondo no Segundo Discurso, um retorno ao Estado de Natureza, nos moldes da literalidade, como sendo um retorno ao ambiente natural, um regresso ao seio das florestas e matas, aos rios e lagos, às montanhas e cavernas, esse retorno nada tem a ver com o ambiente sensível, a volta não é a natureza em si, aos reinos animal, vegetal e mineral, mas sim, um retorno ao que o Estado de Natureza representou para o homem selvagem.

Com efeito, Rousseau nos mostra no decorrer do Segundo Discurso, o que deve ter representado para o homem primitivo e os animais selvagens, o ter vivido no Estado de Natureza. Segundo Rousseau, tal estado representou uma fonte de total dependência para sua subsistência, o homem tirava seu sustento da terra, a princípio imitou os animais, na forma de alimentação deles, depois os superou em seu instinto e passou a utilizar de tudo que a natureza lhes oferecia. O Estado de Natureza era para o homem selvagem um ambiente agradável, ao tempo em que era perfeito para atender as suas necessidades físicas, de repouso, alimentação e sexo. Nada era de ninguém, ao tempo que tudo era de todos. Essa era uma das noções justas que Rousseau queria enfatizar em seu Segundo Discurso.

Os homens dispersos entre eles, observam, imitam sua indústria e se elevam, assim, até o instinto dos animais. E com essa vantagem: cada espécie tem apenas o próprio, ao passo que o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença, apropria-se de todos, nutre-se igualmente da maioria dos diversos alimentos que os outros animais compartilham e encontra, por conseguinte, sua subsistência mais facilmente que qualquer outro dentre eles. (ROUSSEAU, 2007, p.34).

Essa noção de partilhar tudo entre todos era muito importante para Rousseau, tanto que, quando da ocasião do episódio da fundação da sociedade civil, narrada por Rousseau, no Segundo Discurso, ele diz que, quando foi fincada na terra uma estaca para posse de um terreno comunitário em propriedade particular, se alguém presente na ocasião tivesse impedido, arrancando a estaca do chão e lembrando aos demais que os frutos da terra eram de todos e que a terra não era de ninguém, mas era de todos ao mesmo tempo, enfatizando assim que a terra e os seus frutos pertenciam a todos, e que a igualdade era marca principal no Estado de Natureza.

Não havia no Estado de Natureza nem grandes nem pequenos, nem tampouco senhores e escravos, todos partilhavam da mesma igualdade, todos tinham prioridade às mesmas coisas, nada lhes era negado, a única diferença que existia era de cunho natural, demonstrada nos moldes da idade, da força, das doenças e do ânimo de espírito existente em cada homem. Essa igualdade entre os homens é que deve ser retornada, e sua volta é almejada e discutida por Rousseau em seu Segundo Discurso.

Outra concepção errônea que precisa ser evitada quando se pensa no retorno ao Estado de Natureza, diz respeito ao regresso do próprio homem ao seu estado natural, conforme já foi abordado no tópico 1.2 deste trabalho, intitulado O Bom Selvagem, esse homem natural também não era, para Rousseau, um ser real, um ser histórico, mas antes era uma ideia, uma abstração, um conceito criado por Rousseau. Portanto, não se deve esperar que Rousseau esteja propondo um retorno ao estado de selvageria, onde o homem vivia da mesma forma que os animais, moravam em cavernas ou até mesmo em buracos, comia carne crua e subia em penhascos e árvores para buscar seu alimento. Definitivamente, Rousseau não estava propondo o retorno a uma vida rústica, selvagem e cheia de dificuldades.

Nesse pensamento, alguns estudiosos e filósofos cometeram esse breve erro de achar que Rousseau estava sugerindo ao homem moderno a sua volta ao estado de irracionalidade das coisas, insinuando que o homem voltasse a andar sem roupa e de quatro, a ter as suas unhas crescidas, o corpo coberto de pelos e a usar paus e pedras para sua defesa e proteção, imaginavam que o retorno a natureza seria de forma literal. Porém estes estudiosos estavam muito enganados e não tinham entendido a proposta de Rousseau, inclusive nos relata o professor Salinas Forte que o próprio Voltarie (1694-1778) foi um desses que cometeu este erro.

Ao ler o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, depois de tê-lo recebido das mãos do próprio Rousseau, Voltaire escreveu com ironia ao autor: “Nunca se empregou tanto espírito em querer nos tornar bichos. A gente fica com vontade de andar de quatro ao ler vosso livro”. Voltaire (1694-1778), cujo nome verdadeiro era François Marie Arouet, era filósofo, poeta, dramaturgo e um dos principais nomes do século XVIII. Dezoito anos mais velho do que Rousseau, era por este considerado o grande mestre de sua geração. (SALINAS, 1996, p.5-6)

Entretanto, este não era o objetivo proposto por Rousseau, ao contrário disso, o retorno do homem ao Estado de Natureza, nunca foi pensado por Rousseau de forma literal, e nada tinha haver em voltar à condição de selvageria: “Voltar à natureza de modo nenhum é regredir à selvageria.” (XIRAU, 2015, p.67) O retorno à natureza era refletido por Rousseau tomando como fator principal as características artificiais do homem de sua época, que proporcionava uma desigualdade convencional que Rousseau chamou de moral ou política, que culminou numa abissal desigualdade social entre os homens, em contraste com as características do bom selvagem, cuja desigualdade era apenas natural ou física, e que para Rousseau era um ser de caráter pacífico, inocente, simples, sereno e livre. Eis outra vez a noção justa do que Rousseau propôs ao que deveria ter sido o homem que viveu em Estado de Natureza, e são justamente essas características que Rousseau prima e almeja para o homem moderno em seu retorno a natureza. Nesse sentido, também pensa o professor Dr. Xirau, quando afirma: “Como vimos, o ideal não é o retorno ao Estado de Natureza, e sim ao estado social natural; o melhor estado social será o mais próximo do estado de natureza.” (XIRAU, 2015, p.46).

Portanto, Rousseau não propôs ao homem retornar ao Estado de Natureza, mas sim que o homem retorna-se ao seu estado natural, o que segundo o pensamento de Rousseau, nada mais é do que voltar à essência do homem primitivo, ao âmago daquilo que o homem realmente foi e é, desprovido de suas aparências e maquiagens modernas adquiridas ao longo do tempo e por meio de um processo civilizatório, cujo ponto de partida levou o homem a apreciar apenas o ter em detrimento do ser. “[...] Kant declarava que o retorno à natureza não é o retorno à vida selvagem, mas o retorno à verdadeira humanidade, à humanidade não deformada.” (XIRAU, 2015, p.253).

A proposta de Rousseau sempre foi a busca do caráter original do bom selvagem, que apesar de há muito esquecido, ainda encontra-se escondido em algum lugar na interioridade do homem moderno, em seu cerne, bem guardado, este bom selvagem ainda vive, no entanto, encontra-se acorrentado e preso, sob o julgo dos caprichos da sociedade moderna, com suas imposições e desigualdades sociais, políticas e jurídicas. Esse era o desejo e a esperança ainda que utópica de Jean-Jacques Rousseau almejavam.

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu só. Sinto meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum dos que já vi; e ouso crer que não sou feito como nenhum dos que existem. Se não sou melhor, sou, pelo menos, diferente. E só depois de me haver lido é que poderá alguém julgar se a natureza fez bem ou mal em quebra a fôrma em que me moldou. (ROUSSEAU, 2008, p.29)

Rousseau foi sem sombra de dúvidas um estudioso do ser humano, ele sentia necessidade em sua alma de esquadrinhar os pensamentos, intenções e os problemas mais profundos da humanidade, tais como surgimento, desenvolvimento e propósitos da humanidade, o que não lhe foi tarefa das mais fáceis, todavia ele a quis percorre. Rousseau não se achava nem melhor nem pior do que ninguém, mas apenas diferente, e nessa sua diferenciação considerava que, até aquele momento histórico de sua vida, poucos avanços haviam sido feitos a respeito de assunto tão interessante. “O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos me parece ser aquele do homem. (ROUSSEAU, 2007, p.23).

Foi assim que, instigado pela indagação da Academia francesa de Dijon, no ano de 1749, a respeito das origens das desigualdades sociais e se a mesma seria autorizada pela lei natural, Rousseau começou a trabalhar com a sua pena e nos deu uma resposta senão perfeita, mas ao menos plausível, a qual mesmo depois de decorridos mais de três séculos continua atual e nos faz parar para pensarmos e refletirmos sobre a situação presente e os rumos tomados pela humanidade, bem como refletirmos aonde se quer chegar.

Na elaboração e desenvolvimento deste estudo procurei me ater à proposta metodológica de Rousseau e a forma como o autor genebrino mostra e analisa a condição do Estado de Natureza, a degeneração e corrupção do homem e a proposta de retorno do homem moderno ao seu estado natural, tomando como base principal as argumentações apresentadas no Segundo Discurso. Busquei apresentar as primeiras causas originais do por que Rousseau ter imaginado um Estado de Natureza, e um bom selvagem, bem como o caminho percorrido por este homem selvagem que culminou na degeneração do seu estado natural, tal qual foi dissertado por Rousseau, em seu Segundo Discurso.

Conforme vimos no bojo deste trabalho, Rousseau faz uma trajetória em linha linear da história humana, começando em tempos longínquos pensados por ele ao molde de um jardim do Edén9, o qual foi denominado por Rousseau de Estado de Natureza, onde tudo era perfeito e não existia nem bem nem mal, habitado por um embrião do homem moderno, o Bom Selvagem, um ser desprovido de moralidade, que agia por seu próprio instinto natural, cuja essência era pacífica, simples e boa, e que no decorrer do seu caminho degenerou-se e corrompeu-se, o que provocou entre os seus semelhantes uma profunda e desgastante desigualdade social, a qual só poderia ser suportada por meio do retorno do homem não ao Estado de Natureza, mas o retorno ao seu estado natural.

Aqui também cabe destacar, a importância que Rousseau dá a questão da liberdade natural, uma vez que, tal liberdade no Estado de Natureza, propicia ao homem selvagem a sua independência, o que o leva a sua autossuficiência, ressaltando que, a independência é uma das máximas a qual o homem moderno tanto almeja, mas que a cada dia vai ficando mais longe o seu alcance e sua conquista por parte desse homem moderno. A liberdade natural é para Rousseau de tamanha importância que o homem simplesmente não pode renunciar a ela, pois se assim o fizer, deixará de ser homem, é o que noz diz Rousseau em sua Obra o Contrato Social (1762):

Renunciar à liberdade é renunciar a qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para quem a tudo renuncia. Tal renúncia não se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações. (ROUSSEAU, 1978, p.27).

Nesse mesmo sentido, a liberdade natural também propicia a capacidade de escolha que junto com a independência, tornam o homem selvagem no Estado de Natureza, em uma espécie de agente livre, dono de sua vida e de suas escolhas, não tendo ninguém a quem pudessse prestar contas de suas ações, já que o homem nesse estado era amoral. Portanto, todos viviam em condições de igualdade, faziam e participavam das mesmas coisas, tudo era de todos e nada era de ninguém.

Com a aparição de obstáculos a frente do homem e a consequente superação dos mesmos pelo processo da perfectibilidade, o homem foi degenerando e se corrompendo, dando lugar cada vez mais aos prazeres do progresso, e isto para Rousseau nada mais era que sinônimo de desigualdade social, com suas nuances de egoísmo, ganância, paixões ardentes e etc, que geraram enormes e terríveis guerras com muitas mortes, causa declarada de alguns dos sofrimentos e males mais hediondos que as pessoas possam padecer.

Assim e, em tempos modernos, onde prevalecem a tecnológia e o processo de virtualidade nos relacionamentos da humanidade, deixando-os cada vez mais dispersos e longe uns dos outros, onde no status online, todos estão felizes e satisfeitos, mas que, no entanto, quando voltam as suas vidas reais, se encontram em exacerbado processo de depressão e falta de confiança em si mesmo. Assim, retornar ao estado natural do homem não seria de todo uma má ideia, buscar dentro de si, sentimentos de pacificação, serenidade, simplicidade e acima de tudo independência e livre escolha, com toda certeza nos fariam ser pesssoas bem melhores.

No entanto, o que se pode observar nesses tempos modernos, é um verdadeiro distanciamento ainda maior do homem do seu estado natural, e desprezo das qualidades do bom selvagem, assim, o homem moderno está cada vez mais distante do Estado de Natureza, e que segundo Rousseau continua aprimorando suas qualidades modernas inerentes a vida em sociedade, a saber: ganâncias, orgulho, inveja, corrupção, ódio, dor, sofrimento e etc.

Com isso, estamos assistindo a um desenrolar de males, já que o homem fora do Estado de Natureza continua aprimorando cada vez mais as desigualdades sociais, o que faz com que os princípios de conservação e piedade inerentes ao Estado de Natureza original, e que segundo Rousseau encontram-se ainda guardados na interioridade do homem moderno, sejam esquecidos, o que resulta no homem em sua total falta de preocupação com a conservação de sua própria espécie, assim guiados pela ganância dos recursos financeiros, o homem destrói seu meio ambiente, causando desastres naturais de ordem catastróficas com aniquilação da fauna e da flora, e a expulsão de comunidades inteiras de suas habitações, e isso quando a morte não chega primeiro.

Quanto ao princípio de piedade, que impedia o homem selvagem de fazer mal ao seu semelhante, esse também se encontra esquecido, e a humanidade ancorada pelo sentimento de inveja, ódio racial, religioso e de gênero, ataca sem nenhum pudor e misericórdia cada vez mais multidões de pessoas inocentes, pelo mundo afora, tais atos em si são hoje em dia filmados e colocados na mídia televisiva e nas mais diversas redes sociais, de forma nua e crua, causando duas vezes mais dor e sofrimento para as famílias que ficam órfãs de seus entes queridos, pois além da brutalidade do ato em si, ainda tem que assistir, mesmo que não se queira ver, as imagens propagadas pela tecnologia da informação.

Com efeito, Rousseau estava e continua ainda certo, em ter analisado no Segundo Discurso a situação do homem nos seus mais remotos campos de sua origem e existência, a fim de poder apresentar e contribuir com a humanidade, dando também sua versão do que seria o cerne da problemática da questão humana, ao tempo em que apresenta a resposta ao problema, agora, como se daria esta mudança para alcançar a solução, será melhor esclarecido pelo autor genebrino na Obra o Contrato Social (1762), não sendo neste momento a intenção e nem a proposta deste trabalho acadêmico em se ater neste assunto.

Por fim, o sonho utópico de Rousseau, de um regresso da humanidade ao estado natural do homem, continua sendo um ideal a ser desejado e buscado. Merecendo toda atenção possível dos meios Acadêmicos e da Comunidade em geral, a fim de se evitar a implantação do império do medo, que em tempos de crise se utiliza de uma mensagem reacionária e retrograda, propondo como solução fácil o emprego da selvageria pela selvageria, da violência contra violência, essa sim não é uma proposta aceitável, digna de repúdio e combate cerrado. O retorno sugerido por Rousseau é à volta a bondade da natureza humana e não a volta da crueldade primitiva, essa sim é uma proposta aceitável.

 

REFERÊNCIAS

CASSIRER, Ernest. A Filosofia do Iluminismo. São Paulo - SP: UNICAMP, 1994.

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WORKLER, Robert. Rousseau. Porto Alegre - RS: L&PM, 2012.

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1 Trata-se de uma expressão que caracteriza a transformação pervertida sofrida pela condição natural do homem ao sair do estado de natureza, onde predominava a igualdade, o amor de si e a piedade. Com o advento do estado civil, o homem se encontra escravizado, conduzido pelo amor próprio egoístico e pelas desigualdades sociais e políticas.

 

2As circunstâncias em que se deram a composição do Primeiro Discurso estão envoltas em um ar de mistério. Rousseau conta que seu amigo Diderot, encontrava-se preso na torre de Vincennes, por ter escrito alguns ensaios que desagradaram ao Governo francês. Assim, foi que num dia de visitas, Rousseau ia de caminho e a pé de Paris a Vincennes, por entre a floresta visitar Diderot na prisão, levava consigo um exemplar do Mercure de France, cansado da viagem por estar um dia muito quente, Rousseau parou para descansar e leu acerca do desafio proposto pela Academia de Dijon. Nesse instante diz Rousseau que viu um outro universo, e tornou-se um novo homem. “No momento dessa leitura, vi um outro universo e tornei-me um outro homem; apesar de ter viva lembrança da impressão que recebi, os detalhes escaparam depois que os gravei numa das minhas quatro cartas ao Sr. de Melesherbes” (ROUSSEAU, 2008, p.323).

3Rousseau possuía enorme admiração e orgulho por ter nascido na República de Genebra e, por isso, tinha a sua pátria como parâmetro máximo de honestidade e virtude de um governo promovedor da paz e da felicidade de seus cidadãos. Dessa forma o próprio Rousseau nos esclarece que há tempos desejava como cidadão virtuoso prestar uma homenagem a sua pátria, que ela possa reconhecer o mérito de oferecer-lhe uma homenagem pública. “Convencido de que só ao cidadão virtuoso cabe prestar à sua pátria as honras que ela possa reconhecer, há trinta anos que trabalho para ter o mérito de oferecer-lhes uma homenagem pública.” (ROUSSEAU, 2007, p.12).

4No intuito de melhor compreensão desse momento do texto, cito aqui dois filósofos, Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704), que foram importantes para o pensamento de Rousseau, por terem, assim como Rousseau, explorado em seus textos o tema do homem em seu estado de natureza, como também o próprio Rousseau em suas obras ter dialogado diretamente com o pensamento de ambos. Thomas Hobbes escreveu sobre o estado de natureza, em que tudo se direcionava pela guerra, nessa perspectiva os homens eram mesquinhos, invejosos e orgulhosos, que procuravam a todo o momento possuir as coisas de seu semelhante. Com isso, viviam em constante estado de guerra. Sua frase mais famosa é “O Homem é lobo do Homem”, uma referência à destruição do homem pelo próprio homem. “Para ser imparcial, ambos os ditos são certos que o homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do homem.” (HOBBES, 2002, p.3) John Locke, filósofo e escritor que escreveu sobre o Estado de Natureza, no qual os homens eram todos iguais, podendo agir livre, conforme sua razão: “O estado natural tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga: e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses.” (LOCKE, 2005, p.24) Assim, Locke deu ênfase à liberdade do homem primitivo, que tinha em comum acordo as terras, ou a propriedade, que cada um possuía e para protegê-la de invasões havia muitas guerras entre os homens, daí para que todos tivessem paz, era preciso um contrato social que protegesse a propriedade privada.

5 O próprio Rousseau esclarece em seu adendo às notas ao Segundo Discurso o que seria o amor de si. Diz Rousseau que: “O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar por sua própria conservação e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude.” (ROUSSEAU, 2007, p.107).

6Quanto ao amor próprio, Rousseau na mesma nota esclarece o seguinte: “O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, ilusório e nascido na sociedade que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que praticam uns contra os outros e que é a verdadeira fonte de honra.” (ROUSSEAU, 2007, p.107)

7Trata-se de uma expressão originária das obras do filósofo, economista, sociólogo, e revolucionário socialista Karl Marx, usualmente citada como uma das características de suas ideias principais. Karl Marx busca com este termo definir o confronto entre duas classes distintas, de um lado a burguesia, e do outro o proletariado, que atuariam de forma antagônica no meio do modo de produção capitalista.

 

8Trata-se de método que segue em suas máximas um estudo normativo com raciocínio válido, visando como resultado uma explicação clara, concisa e objetiva sobre determinado assunto.

9Jardim do Edén, expressão original hebraica encontrada na Bíblia cristã, mais especificamente no livro de Gêneses, cujo significado remonta há um lugar-comum de natureza exuberante e abundante, habitado por animais não ferozes, onde sentimentos de paz e tranqüilidade de espírito foram usufruídos pelo primeiro homem Adão e sua esposa Eva, que foram originalmente criados pela divindade absoluta cristã.