Escatologia: recomeçar a vida e o mundo (4 Vida para além da morte ou o sentido da existência)

A escatologia é a área da teologia que nos desafia a encontrar respostas para uma das principais questões que inquietam o ser humano: o sentido da vida.

Ao lado das reflexões que se podem fazer sobre a vida e o sentido da vida não podem faltar as necessárias considerações sobre sua parceira, a morte. Raul Seixas numa de suas cações dizia que “o caminho da vida é a morte”, querendo dizer, como o afirmam os filósofos do existencialismo, que a vida só se explica com a morte. Tanto que se pode dizer que morte e vida são dois lados de uma mesma realidade: a existência humana. Então a questão ganha uma nova perspectiva. Deixa de ser a busca pelo sentido da vida e se converte na busca pelo sentido da existência.

Quando se fala em existência e sentido da existência a questão se alarga. Não é só o ser humano que existe. O ser humano, ao tomar consciência de si e de sua existência se percebe imerso num universo no qual se situam todos os demais existentes; mais ainda, percebe-se fazendo parte de um mundo que existe independentemente de sua existência. Essa percepção recoloca a questão do sentido da existência.

E aqui entram duas perspectivas: de um lado a filosofia e do outo a teologia. Para a filosofia o mundo e a vida carecem de sentido. Cabe ao ser humano criar esse sentido. Nessa perspectiva filosófica, numa outra oportunidade, dissemos:

“Qual o sentido da vida?”. Arriscamos dar nossa resposta: a vida não tem sentido. E porque não tem sentido, criamos os nossos motivos para viver. Desde os amores até os terrores. Desde os sonhos até os pesadelos. Desde as religiões até os infernos. Desde a profissão dos sonhos até a mais profunda e triste frustração profissional. Quando vivemos os amores sonhados, os sonhos realizados na profissão que escolhemos para nos realizarmos, damos graças aos nossos deuses e vamos dormir felizes. Caso contrário, vivemos nossos infernos. E o sentido da vida acaba se resumindo em sonhar com a realização dos sonhos, tentando escapar das frustrações... mas, correndo o risco de se frustrar por não conseguir realizar o sonho do sonho realizado. (CARNEIRO, 2018)

A questão pode ser assim colocada: Propormo-nos sonhos e colocar o mundo na trilha de sua realização é o sentido da vida e de tudo que existe, na forma como percebemos essa existência. E se, eventualmente, uma determinada pessoa não acalenta um sonho, frustra sua existência e o mundo em que se insere. Essa pessoa perde – ou não descobre – o sentido do seu existir.

O fato é que, consciente de sua existência e da existência do mundo, o ser humano se percebe criando significados e se inserindo nesse universo. E, podemos dizer, os progressos humanos (ao lado das catástrofes por ele produzidas) nasceram dessa significação. E caso o ser humano não encontre esse sentido, entra no vazio existencial…

Noutra direção caminha a reflexão da teologia cristã. Aqui também, o ser humano se defronta com o desconhecido do depois. E a mesma questão da existência, do sentido da vida e do mundo, também se coloca. Aqui também, o ser humano traça projetos e alimenta sonhos, mas em todos os casos o ponto de partida e o destino final já são conhecidos: tudo vem e tudo volta para Deus. E até mesmo a existência é uma existência mergulhada na obra divina.

É claro que o ser humano pode escolher afastar-se desse projeto, trilhar outra vereda, mas também nesse caso o ponto final é conhecido: a completa ausência de Deus… (ou o inferno).

Em todos os casos, aderindo a Deus ou afastando-se dele, o sentido da vida se explica pela morte. Ou seja, a morte é o ponto de culminante da vida, mas isso não significa que a vida se acaba no “momento” da morte. Pelo contrário. Se para a filosofia vida e morte são dois lados de uma mesma existência, para a teologia não é diferente. Com um elemento a mais: aqui podemos dizer que a vida vai para além da morte.

“Vida para além da morte” não é uma expressão nossa, mas emprestada do título de um livro de Leonardo Boff (2012). E o empréstimo se deve ao significado que o autor deu ao título, dizendo que estamos acostumados a falar em vida depois da morte, mas que do ponto de vista cristão essa não é a melhor forma de se falar a respeito da vida e da morte. E o autor explica: a vida em plenitude só ocorre na conclusão da jornada terrestre.

Vivemos em nosso cotidiano interagindo e nos relacionando com as pessoas e gostamos disso. E, muitas vezes, numa situação de felicidade, nestes círculos de relacionamentos, sentimo-nos tão felizes que lamentamos quando temos que sair dessa situação de felicidade para a continuação rotineira de nossas vidas. A morte entra em nossa vida justamente nessa perspectiva: nos encaminhar, não para momentos de felicidade, mas para a felicidade plena. Daí, então, que a vida está além da morte, sendo esta o ponto de entrada na plenitude. Ou seja, morrer é “acabar de nascer”, como afirma o autor.

Na revista IHU On-Line, Boff (2016) tece comentários sobre a morte e o sentido da vida e insiste na afirmação de que a morte é o início da plenitude da vida. Ou seja, nossa vida cotidiana é preparação para a vida plena. E a morte é a porta de entrada nessa vida plena, convívio com Deus.

Não considero a morte como o fim da vida. Morrer é acabar de nascer. A vida vai para além da morte. Por isso meu livro sobre o tema não se intitula: “Vida depois da morte”, mas “Vida para além da morte”. A vida se estrutura dentro de duas linhas: numa, a vida começa a nascer e vai nascendo ao longo do tempo até acabar de nascer. É o momento da morte. Na outra, a vida começa a morrer, pois lentamente o capital vital vai se consumindo ao longo da vida até acabar de morrer.

No cruzamento das duas linhas se dá a passagem para outro nível de vida que os cristãos chamam de ressurreição: a vida que chega, na morte, à plena realização de suas potencialidades, ao irromper para dentro de Deus. Mas não de qualquer jeito, pois somos imperfeitos. Passaremos pela clínica de Deus na qual amadureceremos até chegar à nossa plenitude. É o juízo purificador. Outros chamam de purgatório. Em todos os casos não vivemos para morrer, como diziam os existencialistas. Morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor. (BOFF, 2016. grifo nosso)

Também podemos consultar um estudo de Stadelmann (2016), no qual faz alguns comentários a respeito de três concepções antropológicas de morte (dos egípcios antigos, dos gregos antigos e do espiritismo, a partir dos pitagóricos até o kardecismo) para depois mostrar o avanço da concepção judaico-cristã, afirmando que a vida humana é uma preparação para a vida eterna. Nas concepções anteriores, grosso modo, não há sintonia nem continuidade entre a vida terrestre e aquela que a sucede. A morte carece de sentido, pois é o ponto final. O avanço cristão está no fato da continuidade. E o autor diz exatamente que “não podemos esquecer que a salvação ou perdição do homem se decide na vida terrestre enquanto se prepara para entrar na vida eterna, sendo um dos princípios fundamentais do cristianismo” (STADELMANN, 2016, p. 22). Ou seja, a vida, que começa com o nascimento terrestre, é preparação para a plenitude celeste, somente alcançada com a morte.

A vida humana, ou o princípio vital que anima o ser humano, não está no corpo como que prisioneira, mas em estado de preparação e preparando o ser humano para a comunhão definitiva com Deus. Nas palavras de Stadelmann (2016),

o cristianismo ensina uma transcendência essencialmente “encarnada”. Significa que o espírito humano não se liberta do corpo cuja imagem é transfigurada: tanto a alma e seu vínculo com o próprio corpo entram em comunhão com a própria vida de Deus. Isso tem implicação profunda tanto na vida terrena como também na vida eterna. Pois a vida terrena está em estado prospectivo de transformação para uma situação preternatural, após a morte. (STADELMANN, 30).

Então, o que nos aguarda para depois da morte? A vida! A vida para além da morte. Mesmo que todas as indagações possam não nos responder adequadamente, a vida prevalece. E as indagações se sucedem, não só na filosofia e na teologia, mas também na arte está expressa a indagação sobre a vida e o sentido da vida: Na década de 1970, Raul Seixas compôs “Você”, música na qual pergunta, a partir da constatação das frustrações da vida:

Você alguma vez se perguntou por quê, faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar? Mas você faz, sem saber por quê você faz; e a vida é curta! Por que deixar que o mundo lhe acorrente os pés? Finge que é normal estar insatisfeito. Será direito, o que você faz com você? Por que você faz isso, por quê? (RAUL SEIXAS, 2020).

Na mesma década Chico Buarque compõe “João e Maria”, na qual, em que pese a temática infantil, nos faz lembrar do inexorável fim da experiência e alegria humana, sem ver soluções para noite sem fim que existe “pla lá desse quintal” que é a experiência terrestre.

Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim. Pra lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim. Pois você sumiu no mundo sem me avisar e agora eu era um louco a perguntar: O que é que a vida vai fazer de mim? (CHICO BUARQUE, 2020).

E quando nos voltamos para a bíblia, vamos nos deparar com o salmista, no salmo 8, se indagando sobre a paradoxal grandeza e insignificância humana: “que é o homem?”

Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: Que é o homem, para dele te lembrares, o filho do homem, para o visitares? No entanto o fizeste pouco menor que um deus, de glória e de honra o coroaste. Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos. Tudo puseste sob os seus pés. (Sl 8,4-7)

A pergunta do salmista é digna dos existencialistas, mas ele ultrapassa a filosofia e indica a resposta, com os olhos da fé. A resposta que falta à filosofia ele encontra na teologia: O ser humano é “pouco menor que um deus” Ou seja, o salmista sabe, pela sua fé, que somente a indagação não é suficiente. Por isso dá o passo seguinte: chega à origem divina de todas as coisas e, consequentemente, do homem. E se tudo pertence ao ser humano (“Tudo pusestes a seus pés”), significa que esse ser não é somente mais uma das criaturas divinas, ele é o centro da criação: “Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos”, como a recordar os eventos do Gênesis: tudo vem de Deus como se fosse um presente para o ser humano a fim de submeter e dominar sobre a criação (Gn 1,26-31). E domina a criação para viver no mundo, construindo a ponte para morrer e adentrar no amor do criador. Por esse motivo a morte pode ser vista como o ponto mais importante da vida, pois “morrer é voltar à casa a qual sempre pertencemos e que, depois de um penoso caminhar, chegaremos felizes a ela.”(BOFF, 2016). E ao morrer, efetivamente, o ser humano retorna ao seu criador, coroando a vida.

A bem da verdade a resposta da fé, para a grande questão da vida, não poderia ser outra: o ser humano vem de Deus e vive para retornar a Deus. Vive, portanto, para morrer e morre para, de fato e plenamente, viver.


 

Referências:

BOFF, Leonardo. A passagem pela clínica de Deus. In: Revista IHU On-Line. Unisínos. São Leopoldo: Edição 496/31 de outubro/2016. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6677-leonardo-boff-8 . Acesso em 08/01/2020.

________________. Vida para além da morte. 26 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

CARNEIRO, Neri P. O sentido da vida. in. www.webartigos.com.br. Publicado em novembro de 2018. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/o-sentido-da-vida/160429. Acesso em 08/01/2020

CHICO Buarque. João e Maria. in. https://www.letras.mus.br/. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45140/ . Acesso em 10/01/2020

CNBB. Biblia sagrada. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/downloads/ Acesso em 02/10/2018

RAUL SEIXAS. Você. in. in. https://www.letras.mus.br/. Disponível em: https://www.letras.mus.br/raul-seixas/118379/ . Acesso em 10/01/2020

STADELMANN, Luís I. João. Morte como descanso eterno. in. Cadernos Teologia Pública. São Leopoldo: UNISÍNOS. Ano XIII Vol. 13 – No 108 – 2016. disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6434-publicacoes:-luis-inacio-joao-stadelmann. Acesso em 10/01/2020.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO – [email protected]