Escatologia: recomeçar a vida e o mundo (3 o caminhar para o fim e a missão da igreja)

Quando falamos em escatologia, muitas pessoas fazem cara de medo. E isso se explica porque na maioria das cabeças aparecem imagens de fim do mundo. E, o que é pior, vem uma imagem de fim catastrófico. Essa imagem se deve a uma interpretação, se não equivocada, pelo menos parcial, em relação à literatura apocalíptica, na qual estão descritos sinais e eventos cataclísmicos .

Não é essa a perspectiva da escatologia cristã. Trata-se de discutir, sim, o fim dos tempos (para os seres humanos e para o mundo), mas numa perspectiva positiva de conclusão de um projeto. O projeto de Deus que se realiza e se plenifica em vista da plenitude da promessa, que pode ser entendida, numa perspectiva cristológica, como fonte de água viva “jorrando para a vida eterna”, como assegurou Jesus em seu diálogo com a Samaritana (Jo 4,14).

é verdade que algumas das bases da escatologia podem ser encontradas na literatura apocalíptica e, mais especificamente, no livro do Apocalipse. Deve-se notar que esse escrito neotestamentário começa afirmando que se trata de uma “revelação” (apocalipse) do que deve “acontecer em breve”. Mas também recomenda que as palavras ali anunciadas devem ser postas em prática “pois o tempo está próximo” (Ap. 1,1-3). Essa brevidade-proximidade, é uma das fontes do medo em relação ao final apocalíptico. Entretanto, não deixa de ser pertinente a observação de que a existência do medo explicita falta de confiança!

O fato é que ao longo de todo o livro, o escritor sagrado faz inúmeros alertas, mostra tragédias e convida os cristãos para que permaneçam vigilantes e confiem no “Cordeiro” a fim de vencerem todas as dificuldades que se apresentarão. E no último capítulo emprega palavras de esperança destinadas àqueles que venceram as tribulações ali descritas. Mostra uma cidade vitoriosa sobre as calamidades, dizendo que nela o sol nunca se apagará sobre seus moradores, pois a luz é o próprio Senhor. E os habitantes dessa cidade santa “reinarão por toda a eternidade” (Ap. 22,3-5). Nessa cidade santa

não haverá maldição alguma. Na cidade estará o trono de Deus e do Cordeiro e seus servos poderão prestar-lhe culto. Verão a sua face e o seu nome estará sobre suas frontes. Não haverá mais noite: não se precisará mais da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus vai brilhar sobre eles e eles reinarão por toda a eternidade. (Ap. 22,3-5. Grifos nossos).

Embora seja um livro que aponta para uma situação escatológica e acene para a parusia (retorno de Cristo), o apocalipse é um livro que nasceu para alimentar a esperança diante das dificuldades, perseguições e sofrimentos do povo. Conforme nos orienta Carlos Mesters (2019), trata-se de um texto que nasceu para alimentar a esperança de um povo que luta. Ao final das lutas contra as forças e poderes nefastos aos cristãos, instalar-se-á o tempo de paz e justiça. Mas para isso há uma condição: é necessário resistir ao opressor! E o próprio texto apocalíptico, como já o afirmamos numa outra oportunidade, pode ser visto como “literatura de resistência.” (CARNEIRO, 2008a; 2008b)

O autor sagrado está animando suas comunidades a fim de que se fortaleçam contra os dissabores cotidianos e contra as perseguições promovidas pelos adversários religiosos (os judeus) e políticos (os romanos). Por isso sua linguagem é simbólica e se utiliza desse artifício para transmitir sua mensagem como se estivesse falando sobre o futuro, mas o que faz é denunciar o presente. E por que faz isso? Primeiro porque o sofrimento presente precisa ser encarado de frente para ser solucionado; depois porque pretende dizer que a vitória sobre as dificuldades somente ocorrerá, no futuro, se houver engajamento contra os anticristo do presente. Dessa forma, podemos dizer que a escatologia da apocalíptica é uma forma de anunciar o fim dos sofrimentos daqueles que formam a multidão dos que vieram “da grande tribulação e lavaram suas vestes no sangue do cordeiro” (Ap 7,14).

No Apocalipse de João, a escatologia não é um discurso abstrato sobre o futuro ou fim do mundo, mas trata-se de um anúncio do futuro em função do presente concreto. O futuro irrompe no presente: ele “vem” e põe fim aos sofrimentos atuais mediante o julgamento de Deus. O Apocalipse é o livro do julgamento divino, cujo momento culminante é o juízo da “grande prostituta”, a Babilônia (Império Romano). (TELES, 2015. p. 34)

A escatologia do livro do Apocalipse, pode ser vista como: primeiro um convite à resistência contra os opressores do povo e dos cristãos; e em segundo lugar como prenúncio do fim dos males, pois, em função da resistência, os opressores serão destronados. O império do mal será vencido e as dores cessarão:

Então, ouvi uma voz forte que saía do trono e dizia: “Esta é a morada de Deus-com-os-homens. Ele vai morar junto deles. Eles serão o seu povo, e o próprio Deus-com-eles será seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos. A morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem grito, nem dor, porque as coisas anteriores passaram”. (Ap. 21,3-4)

E isso pode nos indicar que a respeito de qualquer mal presente paira a mão de Deus, não para extirpá-lo, mas para amparar a vítima e aqueles que desejam enfrentá-lo. O mal não se vence pela ação de Deus sobre ele, como num passe de mágica, mas com a ação humana reforçada pelo dom divino. É o ser humano que deve superar os males do mundo, e para isso pode contar com a sobreforça divina. É o que nos ensina a literatura apocalíptica; e explica Jesus, no evangelho de Marcos: “quem perseverar até o fim será salvo.” (Mc 13,13).

E aqui vale notar que a literatura apocalíptica não se resume ao livro do Apocalipse, mas esse é um gênero literário que tanto pode ser encontrado no antigo testamento como também está presente em vários textos paulinos e nos evangelhos. Pode-se encontrar elementos apocalípticos, em vários escritos neotestamentários como na primeira carta de Paulo aos Tessalonicenses e primeira Coríntios, além de trechos dos evangelhos de Marcos, de Lucas e de Mateus.

Nestas alturas devemos ressaltar que o evento escatológico não só ocorrerá no fim dos tempos: com o evento da Parusia, na consumação de todas as coisas e de todas as pessoas, com a instalação definitiva do Reino de Deus; como também está ocorrendo cotidianamente em todos os atos em defesa da vida e nos esforços pela ampliação da justiça social, sinal do reino. Em cada momento no qual aconteça uma vitória do bem sobre o mal, no qual se instale uma prática solidária ou um gesto de amor gratuito, nisso se dá um processo escatológico, pois todos esses atos e situações são prenúncios do Reino.

Também devemos nos lembrar que no cotidiano a Igreja (comunidade dos batizados) é chamada a ser instrumento da implantação do Reino, na medida em que promove a justiça social, a qual é anterior à prática das leis humanas, pois exige relações sociais baseadas na equidade, a exemplo do anseio dos primeiros cristãos (At 4,32-37)

Nos tempos modernos, através do seu ensinamento social, a Igreja protagonizou o surgimento de um novo conceito: a “justiça social”. Na visão cristã, a justiça social é consequência da fé no Deus Criador e Pai de todos os seres humanos, como princípio religioso e ético que compromete todas as pessoas de boa vontade com a causa da justiça, da conciliação e da paz. (TELES, 2015, p. 106)

E o autor ainda afirma que o Magistério da Igreja, nos últimos tempos, tem esclarecido quais os “princípios e critérios” da justiça social:

Nesse horizonte das complexas e globais relações dos seres humanos entre si, com a natureza e com Deus, a Igreja oferece princípios e critérios que fundamentam uma nova e ampla visão de justiça, capaz de contemplar o homem todo e todos os homens, num humanismo integral e solidário (cf. DSI 1; 7). É esse o desafio da justiça social, lançado pelo magistério dos papas, que compõe o corpo da Doutrina Social da Igreja, especialmente a partir dos documentos pontifícios. (TELES, 2015, p. 107)

A perspectiva escatológica, em nosso cotidiano e nos moldes da sociedade atual, encaminha-se para o modelo cataclísmico conforme a linguagem e simbologia da apocalíptica. Pois ao produzir “ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres” (Documento de Puebla, 30) a sociedade atual amplia o abismo de onde emerge o mostro que vem dos mares (Ap. 13,1) atraindo e enganando grande número de pessoas que, em nossos dias, ostentam o número desse monstro em suas mãos e em suas mentes...

Por outro lado, caso os cristãos redefinam suas posturas e passem a viver os princípios do amor, da equidade, da solidariedade..., passem a observar “os mandamentos de Deus e a fidelidade a Jesus” (Ap. 14,12) em suas ações cotidianas e no cotidiano da Igreja, podem mudar o tom da consumação. A partir do momento em que por parte dos cristãos – e de todas as pessoas de boa vontade – houver esforço para eliminar as divisões, as injustiças, as causas do empobrecimento… passar-se-á a forjar não as catástrofes apocalípticas, mas a plenitude e as maravilhas do Reino para que o Senhor Deus “seja tudo em todos” (1 Cor 15,28).

A missão da Igreja, portanto, não é somente falar a respeito de Jesus Cristo, mas, principalmente exortar os cristãos a terem em suas vidas as mesmas virtudes de Jesus de Nazaré.


 

Referências:

CARNEIRO, Neri P. (a) Apocalipse: no antigo testamento. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/apocalipse-no-antigo-testamento/8384. Publicado em 2008. Acesso em 07/01/2020.

CARNEIRO, Neri P. (b) Apocalipse: Literatura de resistência. Disponível em : https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/religiao/apocalipse-literatura-resistencia.htm publicado em 2008. Acesso em 07/01/2020.

CELAM - Conferência do Episcopado Latino-Americano. A evangelização no presente o no futuro da América Latina. Conclusões de Puebla. Paulinas. São Paulo: 1979

CNBB. Biblia sagrada. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/downloads/ acesso em 20/10/2018

MESTERS, Carlos. Esperança de um povo que luta. O Apocalipse de São João: Uma chave de leitura. 23º reimpressão. Paulus. S. Paulo: 2019

TELES, Eleandro. Maranathá! A escatologia como horizonte da justiça a partir da teologia de Joseph Ratzinger. Diss. (Mestrado em Teologia). Porto Alegre: Fac. de Teologia, PUCRS., 2015.


 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura – RO – [email protected]