O  Primeiro Beijo – Clarice Lispector

Paulo Roberto de Farias Souza

Clarice Lispector, escritora brasileira, é marcada por uma literatura intimista que sonda o íntimo de seus personagens de forma reveladora e que expõe os sentimentos mais secretos de suas criaturas. Tais sentimentos assemelham-se muito aos do leitor que é atraído pela magia dessa literatura. Não há quem não seja envolvido pela escrita de Lispector, quem não se encontre mergulhado nas entrelinhas dos seus textos. Esse mistério fascinante pode ser encontrado em qualquer uma das suas obras e não é diferente com o conto, “O primeiro beijo.”

Esta narrativa aborda um tema simples, comum da vida de cada ser humano: o primeiro beijo e o que pode acontecer no momento do mesmo. Quem nunca passou por esse momento ou sentiu as sensações que são despertadas ao beijar e ser beijado? O conto trata com delicadeza as sensações, a ansiedade, as carícias do vento por entre os cabelos do jovem, a sede e principalmente o flashback – recurso utilizado que permite ao personagem voltar ao passado através da lembrança para relatar ou reviver algo que lhe aconteceu. Tal recurso utilizado por Lispector mostra seu interesse e sua preocupação ao escrever, como afirma Douglas Tufano:

“... o interesse principal de Clarice não está no desenvolvimento do enredo; o que importa à autora é a repercussão que os fatos têm sobre a consciência das personagens. Como se vê é uma literatura intimista, introspectiva que mergulha fundo no interior do ser humano para revelar suas dúvidas e inquietações.” (TUFANO, 1990 pág. 132)

Por esse motivo Clarice utiliza-se do flashback, dessa volta ao passado, volta ao que está no inconsciente dos personagens para expor a si mesmo e ao leitor. No conto analisado dá-se o flashback quando o rapaz responde o questionamento da jovem namorada que pergunta se ela é a primeira mulher que ele beija. Neste instante ele busca no passado a resposta para o questionamento que lhe fora feito. Tal acontecimento, questionamento, não está longe ou distante da atualidade, ou seja, dos relacionamentos atuais. Como Clarice mesma inicia, amor acompanhado de ciúmes. Essa é a situação inicial da obra clariceana, vejamos:

“Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme. “ (LISPECTOR)

O ciúme é o sentimento que apimenta, mas também que escraviza muitas pessoas no relacionamento. Logo a moça tomada pelo ciúme e também pelo sentimento de posse e quase consciente de ser a primeira que o beijara, questiona:

“- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: Você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?” (LISPECTOR)

E de forma simples, detalhada e rica em sensações o jovem começa a relatar como teria sido sua primeira experiência ao beijar. Neste momento da narrativa a autora com muita maestria e genialidade erotiza todo o discurso do jovem sem vulgarizar. Podemos ver que cada elemento que o toca e antecede o momento do  beijo gélido, mas, explosivo nele, prepara-o para tal momento mexendo com seus desejos. Por trás de tudo que é relatado no conto podemos ver um ponto de verdade: em todo relacionamento amoroso/sexual amamos um ser pessoa, mas, desejamos especificamente um ser objeto  que nos provoca desejo, ou melhor, partes fragmentadas desse ser como nos explica a psicanálise em Mezan, 2001.

O que leva o jovem ao desejo, ou melhor, ao encontro da sexualidade foi sua necessidade, sua sede. Freud (1905) nos ensina que são os cuidados maternos que sexualiza uma criança, o toque ao amamentar, o toque ao dar banho, ao limpar as fezes do ânus, o olhar que é erotizado quando alguém lhe olha. É a ordem na ordem da necessidade que a sexualidade através do contato com o outro pode advir. Sabe-se que o rapaz do conto não teve contato físico com um ser de mesma espécie, uma mulher física, porém a necessidade, as formas femininas da estátua, a sua boca colada na boca gélida da mulher de pedra faz explodir nele o que até então fora oculto.

O que no conto a escritora chama de instinto sexual, Freud (1905) chama de pulsão sexual. Uma vez que essa, tem origem da energia psíquica que se acumula no interior do ser humano, gerando uma tensão que exige ser descarregada. O objetivo do indivíduo seria, assim, atingir um baixo nível de tensão interna. Essa pulsão que leva o menino ao encontro com o objeto desejado, não a água agora, mas, a metáfora do órgão genital feminino, objeto da sua satisfação sexual. Observemos como Clarice descreve:

“O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre os arbustos , estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.” (LISPECTOR)

Neste trecho do conto de forma genial e metafórica Clarice descreve os elementos que atrai o instinto animal do jovem. A curva da estrada sendo retratada nas curvas da estátua, os arbustos aos pêlos pubianos, e o chafariz, o filete e a água, alusivos à concavidade e à lubrificação do órgão sexual da mulher.  Tais elementos representados nessa metáfora utilizada por Lispector atraem totalmente o garoto ao olhar a mulher nua a sua frente. O que completa o ciclo não se identifica na água que jorra da boca da estátua, mas também do esperma que ele poderia ejacular e que lhe deixa atônito e perturbado:

“E soube então que havia colocado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.” (LISPECTOR)

E isso torna-o homem e cheio de orgulho. Em todo o conto percebe-se o processo de maturidade do homem. Tais processos que marcam o processo evolutivo humano, amoroso e sexual do indivíduo representado na imagem de uma mulher, aqui uma mulher pedra. Essa é uma obra que mostra a boa qualidade da literatura de Clarice Lispector, escritora que está exposta nos seus escritos. Literatura para todas as idades.

Referência Bibliográfica

ROEFERO, Elcio Luís. Uma mulher de pedra: Modulações do desejo na poética de Clarice Lispector. Disponível em: http://www.omarrare.uerj.br/numero8/elcio.htm  

LICRIS. Devaneios Literários . Sábado, 31 de outubro de 2009. Disponível em: http://licrisdevaneiosliterarios.blogspot.com.br/2009/10/o-primeiro-beijo-clarice-lispector.html    

Freud, Sigmund. Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade [1905], vol. VII, in ESB. op. cit.

MEZAN, Renato. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2001.

TUFANO, Douglas. Estudos de Língua e Literatura. 4. Ed. Ver, e ampl. – São Paulo: Moderna, 1990.