É preciso seguir a Lei de Moisés?

Gustavo Uchôas Guimarães

Desde os primórdios do cristianismo, existe um debate sobre o valor da Lei da Moisés e a necessidade de segui-lo ou não. A própria Bíblia, no livro de Atos dos Apóstolos, traz a discussão sobre o seguimento de práticas judaicas entre os cristãos[1]. Outro exemplo ocorreu no século II, quando Marcião questionou a autenticidade do Antigo Testamento, colocando-o como relato de um Deus irado e mau que se contrapunha ao Deus bom e justo do Novo Testamento. Enquanto parte integrante da Sagrada Escritura, a Lei de Moisés é Palavra de Deus para os cristãos e, portanto, tem valor de acordo com as palavras do apóstolo Paulo: “Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra” (2Timóteo 3,16-17; tradução de João Ferreira de Almeida). Sendo, portanto, útil para ensinamento, repreensão, correção e instrução, a Lei de Moisés é também útil como regra de vida a ser seguida pelos cristãos? Os fiéis da Nova Aliança em Cristo devem seguir os preceitos da Antiga Aliança feita com Moisés?

O próprio Jesus, em ensinamentos a seus discípulos, mostra que não precisamos mais seguir a Lei de Moisés como regra de vida ao reinterpretá-la à luz de sua mensagem e missão; exemplo disso é o trecho de Mateus 5,41-48, onde Jesus usa a expressão “Ouvistes o que foi dito” para se referir a Lei de Moisés e depois a expressão “Eu, porém, vos digo” para transmitir aos discípulos seu novo ensinamento. O apóstolo Paulo, em vários momentos, também afirma que não é mais necessário seguir a Lei de Moisés, pois os cristãos são salvos pela graça de Deus em Cristo e não mais pelas palavras e pelo cumprimento da Lei mosaica; um exemplo disto está no trecho de Romanos 3,19-20 que diz: “Ora, sabemos que tudo o que a Lei diz é para os que estão sob a Lei que o diz, a fim de que toda boca se cale e o mundo inteiro se reconheça réu em face de Deus, porque diante dele ninguém será justificado pelas obras da Lei, pois da Lei vem só o conhecimento do pecado” (tradução “A Bíblia de Jerusalém”). Portanto, os cristãos não precisam seguir como regra de vida absolutamente nada do que está na Lei de Moisés, mas apenas entender a Lei de Moisés como preparação para a revelação de Deus na pessoa de Cristo. Sob este prisma é que a Lei, como Escritura inspirada, é útil para ensinamento, repreensão, correção e instrução, sempre à luz das palavras de Jesus Cristo e da pregação dos apóstolos.

A Constituição Dogmática Dei Verbum, promulgada pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II (1962-1965), afirma, sobre o Antigo Testamento, que:

“A economia do Antigo Testamento estava ordenada principalmente para preparar a vinda de Cristo, redentor de todos, e de seu Reino Messiânico [...]. Devem ser recebidos devotamente pelos cristãos esses livros que exprimem um vivo senso de Deus e contêm sublimes ensinamentos acerca de Deus e uma salutar sabedoria concernente à vida do homem e admiráveis tesouros de preces, nos quais enfim está latente o mistério de nossa salvação”. (tradução da CNBB)

Apesar do texto acima falar do Antigo Testamento de uma forma geral, devemos entender especificamente a Lei de Moisés sob o mesmo ponto de vista, ou seja, reconhecer nela “ensinamentos acerca de Deus”, mas sem a obrigatoriedade e necessidade de segui-la como regra de vida.

Levando isto para a vida prática, é possível afirmar, portanto, que várias práticas cristãs atuais podem ser revistas e repensadas. Nas catequeses católicas, por exemplo, há que se repensar o ensino dos Dez Mandamentos (Êxodo 20,3-17); é claro que os cristãos não deixarão de aprender ou ensinar valores como a honra aos pais e a prática de se falar a verdade, mas isto deve ser ensinado sob a ótica das palavras de Jesus e da pregação apostólica (por exemplo: um cristão não vai deixar de adulterar porque Êxodo 20,14 proíbe, mas porque Jesus assim o determinou em Mateus 5,28). Também na maioria das igrejas evangélicas de orientação pentecostal ou neopentecostal, assim como em movimentos católicos ditos “pentecostais”, é necessário repensar os discursos triunfalistas[2] baseados no caráter guerreiro de Deus e a freqüente recorrência a trechos da Lei de Moisés para embasar certas práticas, como o uso de símbolos judaicos nos cultos, a valorização do dízimo e algumas proibições[3].

Mesmo que esta questão do seguimento da Lei de Moisés seja vista como “coisa menos importante” em meio a tantas realidades a serem discutidas no seio do cristianismo, é necessário que os cristãos sempre revejam seus conceitos e suas práticas para que não percam o único foco: a pessoa de Jesus Cristo.

Referências bibliográficas

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional / Paulus, 1994.

ÁVILA, Nelson. O marcionismo e a Sagrada Escritura. Disponível em: http://emdefesadagraca.blogspot.com.br/2011/03/o-marcionismo-e-sagrada-escritura.html Acesso em: 08.dez.2014. Publicado em 14.mar.2011.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Bíblia Sagrada. Brasília / São Paulo: CNBB / Canção Nova, 2007. 6ª edição.

Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2004.

INSTITUTO CRISTÃO DE PESQUISAS. Bíblia Apologética de Estudo. Jundiaí: ICP, 2011.



[1] Em Atos 15,1-35 vemos a discórdia gerada entre os cristãos de Antioquia por conta de alguns pregadores que ensinavam a necessidade da circuncisão como critério de salvação. Este ponto levou os apóstolos a reunirem-se em Jerusalém, onde ficou acordado que os cristãos não deveriam seguir a Lei de Moisés, aconselhando apenas que os cristãos evitassem carnes de rituais pagãos, sangue, animais sufocados e uniões matrimoniais ilícitas.

[2] Os tais discursos triunfalistas falam muito na vitória de um Deus que combate pelos fiéis, adotando inclusive atitudes como “determinações” (“Eu determino isso”, “Eu determino aquilo”) e a mentalidade de que o fiel, por ser cristão, deve prosperar em tudo (inclusive financeiramente) e jamais deve perder. Esse discurso é mais freqüente nas igrejas neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Mundial do Poder de Deus, Internacional da Graça de Deus, etc.).

[3] Em igrejas evangélicas (especialmente as neopentecostais) é possível ver símbolos judaicos como a menorá e a Arca da Aliança (inclusive com a veneração destes símbolos como canais da presença divina); já nas igrejas evangélicas de um modo geral, é freqüente o discurso que valoriza o dízimo como uma das práticas que são condições para o fiel receber bênçãos de Deus; quanto às proibições, é comum ver igrejas evangélicas ou movimentos católicos condenarem práticas baseadas em proibições da Lei de Moisés, como a tatuagem (baseado em Levítico 19,28) e o uso de roupas próprias do sexo oposto (baseado em Deuteronômio 22,5), só que muitas vezes fazendo análises descontextualizadas dos trechos bíblicos usados como base das proibições.