PORRUA, Marcelo[1]

 

Resumo: Este artigo se presta a apresentar o aparente conflito principiológico e a forma como o mesmo tem sido resolvido atualmente, no que toca ao direito ao esquecimento. Para tanto, as reflexões trazem informações importantes sobre o direito à liberdade de informação tanto quanto à vida privada e como podem esses princípios se coadunarem na garantia da justiça. Evidenciam-se, também, alguns aspectos filosóficos e psicológicos que auxiliam a pensar as bases dos princípios imbricados nessa discussão, ao que se soma uma pequena contribuição sobre a discussão entre direito ao esquecimento e o direito à memória.

 

Palavras chave: Direito ao Esquecimento; Liberdade de Expressão; Vida Privada.

 

1 DIREITO À LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO

Um dos aspectos importantes de uma nação que se diz democrática outorga-se à liberdade de expressão e, na mesma medida, à de informação. A liberdade de expressão é gênero da espécie que denominamos liberdade de informação, uma vez que a liberdade de expressão abarca um conteúdo mais amplo do que a simples informação.

O ato de pensar é próprio e exclusivo do ser humano, e enquanto não é externado, diz respeito apenas ao indivíduo e a ninguém mais interessa, uma vez que na liberdade de pensar, está contida a liberdade da consciência, de crença e de livre convicção religiosa, podendo ser exercida livre de quaisquer amarras. Sendo assim, é natural que o ser humano necessite exteriorizar seu pensamento, que se revela através da liberdade de manifestação de pensamento, exercendo o direito de propagar opiniões em forma de concepções, valores e crenças.

Dessa forma, quando é dada ao indivíduo a possibilidade de externar seu pensamento, ele também exerce a liberdade de opinião que, segundo Pedro Frederico Caldas: “(...) constitui um movimento do pensamento de dentro para fora; é a forma de manifestação de pensamento, resume a própria liberdade de pensamento, encarada, aqui, como manifestação do fenômeno social” (CALDAS, 1997, p. 59.)

Enquanto não for externado, o pensamento por si só não possui nenhuma relevância para a sociedade; é a sua livre manifestação que pode trazer reflexos sociais. Na sua base legal, a Constituição Federal abarca tanto a liberdade de manifestação de pensamento, vedando o anonimato, em seus artigos 5º, inciso IV e artigo 220, como a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica, e de comunicação, no inciso IX e artigo 220.

No texto constitucional, ao consagrar a liberdade de manifestação, o legislador garantiu também a liberdade de expressão, como baldrame da liberdade de pensamento e opinião. Assim, uma vez que o ser humano possui o direito a pensar e opinar, o direito de expressar seu pensamento e sua opinião, complementam essas ações. Portanto, o indivíduo “pode manifestar-se por meio de juízos de valor (opinião) ou da sublimação das formas em si, sem se preocupar com o eventual conteúdo valorativo destas” (ARAÚJO, 2008, p. 143)

Essa é a exata noção da liberdade de expressão, conforme atesta Nuno e Sousa:

 

A liberdade de expressão consiste no direito à livre comunicação espiritual, no direito de fazer conhecer aos outros o próprio pensamento (na fórmula do art. 11° da Declaração francesa dos direitos do homem de 1989: a livre comunicação de pensamentos e opiniões). Não se trata de proteger o homem isolado, mas as relações interindividuais (‘divulgar’). Abrange-se todas as expressões que influenciam a formação de opiniões: não só a própria opinião, de caráter mais ou menos crítico, referida ou não a aspectos de verdade, mas também a comunicação de factos (informações) (SOUSA,1984, p. 137).

 

Saliente-se que encontra proteção no mesmo conteúdo da liberdade de expressão a divulgação por todos os meios possíveis, o que engloba gestos, gravuras, desenhos, e pinturas, e mesmo o silêncio, pode ser uma expressão possível dentro de um contexto.

Assim, pode-se claramente observar que a liberdade de expressão contém uma dupla dimensão, conforme nos ensina Jonatas Machado:

 

Nesse sentido, deve-se sublinhar a dupla dimensão deste direito. A dimensão substantiva compreende a atividade de pensar, formar a própria opinião e exteriorizá-la. A dimensão instrumental traduz a possibilidade de utilizar os mais diversos meios adequados à divulgação do pensamento (MACHADO, 2002, p. 417).

 

Souza (1984) também se manifesta e amplia a discussão sobre essa liberdade e acrescenta

 

(...) garantida não aparece apenas a liberdade de expressão e informação, mas também a liberdade de não exprimir qualquer pensamento, de não se informar, de não fundar uma empresa de imprensa, de não dar informações; garante-se o exercício e o não exercício (SOUSA,1984, p. 141).

 

Por outro lado, no Estado Democrático de Direito, a participação popular tem vital importância, uma vez que somente esse acesso, torna possível o conhecimento dos fatos e notícias do mundo social e sua propagação em prol da formação da opinião pública como direito fundamental. Por informação entendam-se os fatos e notícias que podem formar a opinião pública, garantida a escolha livre de todos os meios possíveis, e realizada por todos os organismos sociais.

Esta seria a base para um real Estado Democrático de Direito, compreendendo tanto a aquisição como a comunicação de conhecimentos, conforme atesta José Afonso da Silva: “Nesse sentido, a liberdade de informação compreende a procura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência da censura, respondendo cada pelos abusos que cometer (SILVA, 1998, p. 249)”.

Portanto, verifica-se que a citada liberdade de informação abrange tanto a liberdade de informar quanto o direito de ser informado; noção explicitada por Freitas Nobre: “A própria liberdade de informação encontra um direito á informação que não é pessoal, mas coletiva, porque inclui o direito de o povo ser bem-informado” (NOBRE, 1988, p. 33). Esse direito

 

(...) antes concebido como um direito individual, decorrente da liberdade de manifestação e expressão do pensamento, modernamente vem sendo entendido como dotado de força componente e interesse coletivos, a que corresponde, na realidade um direito coletivo à informação (GODOY, 2001, p. 49).

 

A informação, na realidade, é um poder. Ela tem o poder de influenciar, mudar a sociedade, por isso não pode ser tomada pela simples liberdade individual de informação, constitui-se um verdadeiro direito coletivo à informação.

Contudo, enquanto na liberdade de expressão abarca fatos, pensamentos, opiniões e crenças que podem ser expressos pelo sujeito que os detém, não importando sua veracidade ou não, a liberdade de informação, por sua vez limita-se à manifestação de fatos que ecoam veracidade que se não forem respeitado ferem frontalmente outros direitos fundamentais protegidos constitucionalmente que podem ser vistos a seguir.

 

 

2 DIREITO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE, À VIDA PRIVADA, À HONRA E À IMAGEM

O ser humano relaciona-se em distintas esferas sociais, algumas públicas e outras não. Em relação à esfera não pública, isto é, privada, foram diversas as conquistas do homem ocidental nos últimos séculos, quando se passou a ver o reduto particular das pessoas com outros olhos, na tentativa de assegurar-lhes seus direitos fundamentais. A necessidade de proteção à vida privada surgiu da conflitante relação entre o "indivíduo" e a "sociedade". Afinal, a dimensão do interesse geral e a dos interesses particulares não podem ser avaliados sob os mesmos critérios.

É na esfera privada que são encontrados os direitos da personalidade, também chamados de direitos da pessoa e de direitos personalíssimos. Dentre estes, o direito à privacidade.

 

 

2.1 Dos Direitos Humanos, Constitucionais e Civis

Atualmente percebe-se a influência dos ideais dos "direitos da personalidade" na Constituição brasileira de 1988, mas eles vêm de longe, como demonstra o Art. 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948:

 

Artigo 12° - Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei.

 

Alcançam eco na Carta Magna brasileira quando assim são expressos:

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

 

Como pode ser visto, o art. 5.º, inciso X da Constituição Federal assegura o direito à reserva da intimidade, assim como ao da vida privada. Segundo Bastos & Martins (2013) a intimidade consiste

 

(...) na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano. (BASTOS & MARTINS, apud VIEIRA, 2013)

 

Esta proteção, assim descrita, desdobra-se em outros direitos constitucionais que também se preocupam com a preservação de aspectos íntimos e privados. O direito à privacidade, preconizado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 12, garantido pela Constituição, artigo 5º, é atacado frontalmente, no artigo 21 do Código Civil Brasileiro.

Uma das mais bem vindas mudanças da parte geral do novo Código Civil Brasileiro foi a inserção de um capítulo próprio, para tratar dos direitos da personalidade, que vai do artigo 11 ao 21, sendo os mais interessantes para o desenvolvimento da pesquisa, que ora se pretende, os seguintes, a saber:

 

Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

(...)
Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

(...)
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, (...) a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade (...)

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

 

Na realidade, não se trata de novidade, pois a Constituição Federal traz uma proteção até mais abrangente, principalmente no seu art. 5º, caput, como visto acima, que consagra direitos fundamentais da pessoa natural. Vieira (2013) afirma que a tutela da pessoa natural é construída com base no preceito fundamental constante no Texto Maior: a proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Em várias questões jurídicas esse preceito aflora e aponta o caminho de proteção da pessoa, em detrimento de qualquer outro valor

Os direitos da personalidade são aqueles direitos inerentes à pessoa e à sua dignidade, vislumbrados em cinco garantias: vida/integridade física, honra, imagem, nome e intimidade, que apresentam bastante bem o fundamento desses direitos.

Sobre o art. 20 Tartuce (2014) afirma que ele “(...) consagra expressamente a proteção da imagem, sub-classificada em imagem retrato (aspecto físico da imagem, a fisionomia de alguém) e imagem atributo (repercussão social da imagem)”.

Finalizando o tratamento quanto aos direitos da personalidade, confirma o art. 21 do novo Código Civil o direito à intimidade, já reconhecido na CF/88, sendo inviolável a vida privada da pessoa natural e cabendo sempre medidas visando proteger essa inviolabilidade.

Assim, “a intimidade não deve ser concebida somente no plano físico, mas também no plano virtual, do ambiente da Internet, sendo inviolável o domicílio eletrônico de uma determinada pessoa.” (TARTUCE, 2014)

 

 

2.2 Informação e expressão versus intimidade, vida privada, honra e imagem

O exemplo mais emblemático dessa questão é o chamado “caso Lebach”, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão. A situação foi a seguinte:

 

(...) em 1969, quatro soldados alemães foram assassinados em uma cidade na Alemanha chamada Lebach. Após o processo, três réus foram condenados, sendo dois à prisão perpétua e o terceiro a seis anos de reclusão. Esse terceiro condenado cumpriu integralmente sua pena e, dias antes de deixar a prisão, ficou sabendo que uma emissora de TV iria exibir um programa especial sobre o crime no qual seriam mostradas, inclusive, fotos dos condenados e a insinuação de que eram homossexuais. Diante disso, ele ingressou com uma ação inibitória para impedir a exibição do programa. A questão chegou até o Tribunal Constitucional Alemão, que decidiu que a proteção constitucional da personalidade não admite que a imprensa explore, por tempo ilimitado, a pessoa do criminoso e sua vida privada. Assim, naquele caso concreto, entendeu-se que o princípio da proteção da personalidade deveria prevalecer em relação à liberdade de informação. Isso porque não haveria mais um interesse atual naquela informação (o crime já estava solucionado e julgado há anos). Em contrapartida, a divulgação da reportagem iria causar grandes prejuízos ao condenado, que já havia cumprido a pena e precisava ter condições de se ressocializar, o que certamente seria bastante dificultado com a nova exposição do caso. Dessa forma, a emissora foi proibida de exibir o documentário. (CABRAL e ROSA, 2014).

 

Para que seja possível conciliar o direito ao esquecimento com o direito à informação, deve-se analisar se existe um interesse público atual na divulgação daquela informação e não apenas a simples curiosidade particular de pessoas e grupos. Se ainda persistir a utilidade da informação, não há que se falar em direito ao esquecimento, estando a publicidade da notícia sendo manifesta de modo lícito. Mas, se não houver interesse público, poderá ser pleiteado o exercício legal do direito ao esquecimento, devendo as notícias sobre o fato serem impedidas de divulgação. Como assevera o Min. Gilmar Ferreira Mendes:

 

Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária (MENDES, COELHO e BRANCO, 2007, p. 374).

 

O Min. Luis Felipe Salomão ainda disse que “ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos – historicidade essa que deve ser analisada em concreto – cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do tempo” (REsp 1.334.097).

A 4ª Turma do STJ enfrentou o tema direito ao esquecimento em dois casos emblemáticos: A situação da “Chacina da Candelária” (REsp 1.334.097) e o caso “Aída Curi” (REsp 1.335.153) aqui trazidos para ilustrar as discussões.

 

Chacina da Candelária (REsp 1.334.097)

Determinado homem foi denunciado por ter, supostamente, participado da conhecida “chacina da Candelária” (ocorrida em 1993 no Rio de Janeiro). Ao final do processo, ele foi absolvido. Anos após a absolvição, a rede Globo de televisão realizou um programa chamado “Linha Direta”, no qual contou como ocorreu a “chacina da Candelária” e apontou o nome desse homem como uma das pessoas envolvidas nos crimes e que foi absolvido. O indivíduo ingressou, então, com ação de indenização, argumentando que sua exposição no programa, para milhões de telespectadores, em rede nacional, reacendeu na comunidade onde reside a imagem de que ele seria um assassino, violando seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal. Alegou, inclusive, que foi obrigado a abandonar a comunidade em que morava para preservar sua segurança e a de seus familiares. A 4ª Turma do STJ reconheceu que esse indivíduo possuía o direito ao esquecimento e que o programa poderia muito bem ser exibido sem que fossem mostrados o nome e a fotografia desse indivíduo que foi absolvido. Se assim fosse feito, não haveria ofensa à liberdade de expressão nem à honra do homem em questão. O STJ entendeu que o réu condenado ou absolvido pela prática de um crime tem o direito de ser esquecido, pois se a legislação garante aos condenados que já cumpriram a pena o direito ao sigilo da folha de antecedentes e a exclusão dos registros da condenação no instituto de identificação (art. 748 do CPP), logo, com maior razão, aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, devendo ser assegurado a eles o direito de serem esquecidos (DIREITO AO ESQUECIMENTO, 2014).

 

Como o programa já havia sido exibido, a 4ª Turma do STJ condenou a rede Globo ao pagamento de indenização por danos morais em virtude da violação ao direito ao esquecimento.

 

Caso Aída Curi (REsp 1.335.153)

O segundo caso analisado foi o dos familiares de Aída Curi, abusada sexualmente e morta em 1958 no Rio de Janeiro. A história desse crime, um dos mais famosos do noticiário policial brasileiro, foi apresentada pela rede Globo, também no programa “Linha Direta”, tendo sido feita a divulgação do nome da vítima e de fotos reais, o que, segundo seus familiares, trouxe a lembrança do crime e todo sofrimento que o envolve. Em razão da veiculação do programa, os irmãos da vítima moveram ação contra a emissora, com o objetivo de receber indenização por danos morais, materiais e à imagem. A 4ª Turma do STJ entendeu que não seria devida a indenização, considerando que, nesse caso, o crime em questão foi um fato histórico, de interesse público e que seria impossível contar esse crime sem mencionar o nome da vítima, a exemplo do que ocorre com os crimes históricos, como os casos “Dorothy Stang” e “Vladimir Herzog”. Mesmo reconhecendo que a reportagem trouxe de volta antigos sentimentos de angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu quase 60 anos atrás, a Turma entendeu que o tempo, que se encarregou de tirar o caso da memória do povo, também fez o trabalho de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade dos familiares. Na ementa, restou consignado: “(...) o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aída Curi, sem Aída Curi (DIREITO AO ESQUECIMENTO, 2014)

 

            Num entendimento amplamente fundamentado, o STJ decidiu contrariamente À manutenção do princípio da vida privada, uma vez que o fato, de repercussão social de grande intensidade, foi avaliado como de interesse público.

 

 

2.3 Direito ao Esquecimento versus Direito à Memória

Como enfrentar o desafio de tentar conciliar o “direito ao esquecimento” com o chamado “direito à memória e à verdade histórica”?

Para tentarmos entender o que toca profundamente a questão é necessário perceber que, quando num país há a transição de um regime de ditadura para um Estado democrático, ele necessariamente passará por mudança e adaptação, ao que a doutrina chama de “Justiça de Transição”. Esta se configura em uma série de medidas que objetivam a ruptura com o modelo anterior trazendo à tona, entre outras prerrogativas, a busca pela verdade histórica e a defesa do direito à memória. Esse direito se estende tanto às vítimas diretas ou indiretas, como a toda a sociedade brasileira no que diz respeito ao esclarecimento dos fatos e circunstâncias que manifestaram importantes violações aos direitos humanos durante o período ditatorial, como por exemplo: torturas, mortes, desaparecimentos à força, ocultação de cadáveres etc.

Da mesma forma que o direito ao esquecimento, o direito à memória também encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana em respeito aos direitos humanos conforme o artigo 4º, II, da CF/88; tanto que a Lei n.° 12.528/2011 regulamentou o direito à memória e criou a Comissão Nacional da Verdade para apurar as circunstâncias das violações aos direitos humanos durante a ditadura no Brasil.

No que toca ao direito ao esquecimento, este não impede a concretização do direito à memória, uma vez que estas violações são fatos de extrema relevância histórica e de inconteste interesse público. Logo, em uma ponderação de interesses, o direito individual ao esquecimento cede espaço ao direito à memória e à verdade histórica, uma vez que sejam absolutamente ponderados os interesses coletivos e não apenas individuais ou de pequenos grupos que possam prevalecer-se dessas informações.

 

Vale lembrar que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 24/11/2010, no Caso “Gomes Lund e outros” (Guerrilha do Araguaia), dentre outras razões, por ter negado acesso aos arquivos estatais que possuíam informações sobre essa guerrilha. Na sentença, a Corte determinou que o Brasil “deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar”.  (DIREITO AO ESQUECIMENTO, 2014)

 

Desse modo, em outros termos, a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Brasil assegure o direito à memória, uma vez que não se violem direitos individuais e ressalvem-se interesses absolutamente indispensáveis à coletividade.

 

 

3 A CONTRIBUIÇÃO DE OUTROS SABERES

            De modo bastante sucinto, como pede a dinâmica dos artigos, serão trazidas algumas reflexões da filosofia e da psicologia que auxiliam sobremaneira a dar lastro na compreensão das lides principiológicas do direito que incidem diretamente na vida do ser humano.

 

3.1 Filosofia

Não é comum na literatura filosófica encontrar-se árduas reflexões sobre o esquecimento, no entanto, para Nietzsche, o esquecimento caracteriza-se por ser uma ação afirmativa, e, segundo ele,

 

[...] esquecer não e uma simples força inercial, como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido não penetra mais em nossa consciência. (NIETZSCHE, 2002a, II. p.47).

 

Assim agindo, a consciência que esquece possibilita uma abertura ao novo, ao desconhecido e ao indeterminado.

 

O esquecimento é útil, à medida que funciona como preservador do nosso ordenamento físico, e mantém a serenidade necessária para o desenvolvimento do homem. Logo, sem o esquecimento não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho. (NIETZSCHE, 2002, p. 47 e 48).

 

Nietzsche ainda diz mais, afirma que o homem que não consegue esquecer tem o instrumento inibidor degenerado. A alusão à ideia de esquecimento, na perspectiva nietzschiana, possui um caráter positivo ao impossibilitar o estabelecimento continuo das experiências vividas no dia-a-dia.

Alves (2014) afirma que, ao ser constatado que o ato de absorver as experiências causam uma interrupção na possibilidade de o homem lançar-se ao novo e ao desconhecido e assim evoluir, pode-se afirmar que o esquecimento encontra-se inerente à habilidade da criação. Desse modo, a capacidade de esquecer é uma ferramenta essencial, pois, funciona como protetor do ser humano.

Desse modo, a consciência teria o caráter ativo, seria uma força positiva que impede o acúmulo de experiências vivenciadas no cotidiano se instaurarem na memória. Porém, concomitantemente, notamos que a história da humanidade é caracterizada por práticas e instrumentos utilizados com a finalidade de impedir o trabalho do esquecimento e promover um alargamento da memória.

 

Essa difícil relação produz uma situação conflitante entre memória e esquecimento. Pois, embora o esquecimento seja uma força ativa, ele pode ser impedido de operar devido aos vários instrumentos usados de modo astuto para o alargamento da memória. Entre tais instrumentos, podemos destacar as tentativas de registrar profundamente as dores morais e o sentimento de culpa. (ALVES, 2014)

 

Conclui-se que, mesmo tendo o esquecimento uma tarefa bastante árdua, é necessário que sejam descobertas novas possibilidades para auxiliá-lo a enfrentar a insistência da memória, não apenas de si mesmo, mas de outrém.

 

3.2 Psicologia

O ser humano possui mecanismos de defesa para poder superar situações de angústia, estes, podem ser definidos como ações subconscientes ou inconscientes que são ativadas quando algum tipo de manifestação é tido como ameaça para o ego. São utilizados como fuga da realidade, quando o indivíduo está frente a angústias.

Os mecanismos de defesa podem ser considerados as ações que têm por finalidade reduzir qualquer manifestação que possa colocar em perigo a integridade do indivíduo, ou seja, o Ego procura se proteger de situações ameaçadoras, aqui se enquadra o esquecimento.

O esquecimento e as repercussões de que Freud tinha uma explicação para eles, renderam a ele muitas abordagens que o levaram a entender que, se a lembrança fora encoberta pelo esquecimento, devia haver algum motivo necessário para que o inconsciente assim agisse.

Independente de qualquer vontade exterior, o inconsciente atuará sempre que assim lhe for conveniente, usando do esquecimento para se preservar de algo que lhe incomoda. Todavia, Inácio (2014) declara que

 

o esquecimento deve ser posto em sua máxima, na extinção definitiva de qualquer rastro ou vestígio da coisa-em-questão-a-ser-esquecida, para que seja um verdadeiro lastro, firme e obtuso, rumo ao devir. Podemos até incendiar um posterior debate com a história, dizendo que “o esquecimento é a função máxima da vida, do levar adiante”, e que a memória, nada mais seria que uma representação enevoada de um passado que nunca existiu – já que ele só pode existir como interpretação de uma representação, ou, como “ponto de vista” – e que, existe como amarras aos seres a passados que lhes são impostos (por outros, ou por si mesmo), como uma realidade, que, para o adiante, para o porvir, pouco importa. (INÁCIO, 2014)

 

No ato psicanalítico, nas primeiras sessões, são trabalhadas algumas memórias encobertas que, vez por outra, podem ser ativadas e despertam as mais dolorosas sensações de lembrança; a função da psicanálise, nesses casos,

 

seria de fazer com que essa memória parcial ocupe um lugar latente, que ela denuncie esse recalque, e objetive os motivos de suas dores, até externalizar-se ao ser, e assim, poder ocupar o lugar de um verdadeiro esquecimento, enquanto trauma superado, e fundamentalmente, enquanto memória re-significada. (...) Na psicanálise a função da memória total, da revelação indolor e inequívoca da lembrança encoberta, é o ponto de parada para se levar a um esquecimento bem sucedido.” (INÁCIO, 2014)

 

Dessa forma, o esquecimento deve tomar o seu lugar de direito, ou seja, o esquecimento como função essencial à existência e ao bem-estar comum dos seres. E afinal, para que serve o esquecimento? Dentre várias possibilidades, o esquecimento pode surgir como ato falho positivo, à medida que “esquecemos” algum comentário ou lembrança que poderia levar a situações embaraçosas ou constrangedoras. Nessa perspectiva, retomamos o lugar do esquecimento enquanto aliado do mais-além, do adiante, do levar em frente, como condição de equilíbrio psíquico para que a vida continue.

O esquecimento é, ou deve ser espontâneo, ao contrário da lembrança que é objetiva, e tem diversos meios e métodos de ser preservada e armazenada. Se queremos esquecer alguma coisa, a melhor maneira é deixar o tempo passar, dormir, fazer coisas alhures, despropositais e aleatórias. Dificilmente, continua contribuindo Inácio (2014), uma lembrança incômoda será esquecida se ficar sendo o tempo todo tentando ser posta no imemoriável.

E nesse sentido, Freud afirma que os caminhos que se servem, tanto a lembrança, quanto o esquecimento, não são precisos, mas sugere que este último advém de uma necessidade natural de lembrarmos do que é bom ou prazeroso, e esquecer o que nos machucou, o que incomodou, ou, o que nos trouxe desprazer, acentuando a ideia de que a tendência a esquecer o que é desagradável parece ser inteiramente universal.

Os tortuosos caminhos do esquecimento, e seu lugar encobridor do desprazer, trazem certo balançar a nossas reflexões, quando percebemos que algumas lembranças aflitivas são constantemente rememoradas, tornando atual o sofrimento que em um tempo foi gerado por um motivo qualquer.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Este artigo é apenas um momento bastante sintético de uma reflexão bem maior, que exige não apenas que se arregimentem muitos conhecimentos de ordem jurídica, mas, sobretudo, muitas experiências capazes de iluminar pensamentos e ações; experiências que devem emanar de um profundo sentimento de empatia.

Todo e qualquer princípio norteador do direito está fundamentado na proteção da vida, da dignidade da vida, senão da vida individual, da vida coletiva. Assim, até o que de imediato possa parecer uma violação, pode, na extensão de sua compreensão, estar protegendo um legado de interesse coletivo. O Direito ao Esquecimento requer que ambos estes fatores, de ordem dos conhecimentos produzidos pela humanidade e das experiências existenciais estejam consolidados valorativamente; somente assim, o interesse da dignidade humana estará preservado.

Para que isso aconteça, se faz mister uma reflexão mais profunda buscada na filosofia e na psicologia, dentre outras áreas do conhecimento igualmente importantes, afinal, quando se coloca no centro da discussão o ser humano, nenhum conhecimento a seu respeito é menos importante, uma vez que nesse todo do qual participamos, algumas coisas merecem ser sempre lembradas, outras, nem tanto.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

 

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BRASIL. Código Civil ( 2002 ). Novo Código Civil. Brasília, DF, Senado, 2002

 

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_______. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. REsp 1334097/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. Julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013

 

_______. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. REsp 1335153/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. Julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013

 

CABRAL, Bruno Fontenele e ROSA, Raissa Viana. The right to be let alone”: considerações sobre o direito ao esquecimento. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/28362/the-right-to-be-let-alone-consideracoes-sobre-o-direito-ao-esquecimento#ixzz3JcAbGulg> Acesso em 12.08.2017.

 

CALDAS, Pedro Frederico. Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral. São Paulo, 1997.

 

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GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001.

 

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[1] Professor graduado em Filosofia (IVF), Letras (UNEMAT) e Direito (FCARP), especialista em Psicopedagogia (UFRJ) e Direito Constitucional (AVM), mestre em Educação (UFMT)