Morava em minha rua, quase em frente a minha casa, um velhinho italiano chamado Antônio. Era uma pessoa adorável. Baixinho e roliço, usava um chapéu de feltro, calças largas e surradas botinas. Era uma figura ímpar e muito querida da garotada do bairro. Quando ele passava pela rua corríamos ao seu encontro e pedíamos sua benção.

Sua diversão era fazer charadas e contar histórias para a garotada. Seu Antônio Piffer era um assíduo frequentador de minha casa e diariamente ele passava por lá para um cafezinho e um dedo de prosa. Sentava-se à nossa varanda e já ia perguntando: “Gosta mais do papai ou da mamãe?” Nós sempre respondíamos: “Gostamos igual".  "É mentira, dizia ele, eu sei que vocês gostam mais de um do que do outro", dizia com seu sotaque italiano. Outras vezes fazia umas pegadinhas tirando as vírgulas das frases para mudar o sentido. Matar o rei non é pecado. Está certo ou errado? Perguntava. Nós respondíamos: Está errado. Ele ria e corrigia a frase colocando as vírgulas. “Uma vírgula muda tudo. Precisa ter cuidado com elas”.

Uma vez ele me flagrou fazendo xixi atrás do muro da casa onde ele morava. Fiquei assustado e pedi desculpas. Ele riu e disse: “Non faz mar e não pode parar o xixi, pois non é bom pra saúde”. Em outra vez eu estava às turras com outro moleque do bairro que me chamou de f.d.p. Seu Antônio ouviu e falou: “Nom pode chamar a mãe do outro assim. Se fosse na Itália você seria preso. É um crime xingar a mama dos outros”.  Como eu também xingava as mães dos outros meninos, o sabão me serviu para e nunca mais xinguei as mães dos outros meninos. Xingava de outros nomes, mas nunca as mães.

            Ele adorava minha mãe, principalmente pelo cafezinho que ela preparava sempre esperando que ele viesse.  Aliás, em casa o café era uma bebida sagrada e não faltava em qualquer hora do dia ou da noite. Nossos parentes do interior sempre enviavam café in-natura para nós, que era torrado e moído por mim, invariavelmente. Era um café especial no sabor e no aroma. Meu pai dizia que era a minha memória e que o café não era tão bom assim. Memória ou não, eu guardei o aroma e sabor que nunca senti em lugar nenhum.

            Mas voltemos ao Seu Antônio. Ele às vezes discutia com a nora, uma senhora muito amiga de minha mãe.  Um dia ele apareceu cedo em casa, fora do seu horário habitual para o cafezinho.  Sentou-se na varanda e ficou com a cabeça baixa, pensativo, não brincando como era seu hábito. Quando minha mãe trouxe o café percebemos que estava com lágrimas nos olhos. Eu briguei com a Luzia e falei que não voltava mais. Agora eu não tenho para onde ir, disse ele desconsolado.

            Ele estava muito triste e sentido e como minha mãe sempre teve o coração mole, foi dizendo “O senhor pode ficar com a gente seu Antônio. Pode ficar sossegado que o senhor não vai dormir na rua”.  Ele ficou emocionado e chorou mais ainda. Naquele dia o nono almoçou, tomou o café da tarde e nos contou muitas, muitas histórias. Já estava gostando da ideia de tê-lo morando com a gente e ouvi-lo contar seus casos dia e noite. Mas a minha mãe já havia avisado a nora dele que ele estava em casa, aliás, aviso desnecessário, pois ela sabia aonde ele iria. Mais tarde ela veio buscá-lo como se nada houvesse acontecido.

            Ele agradeceu a hospitalidade de minha mãe e disse emocionado: “Você vai pro céu filha”. Como à época ainda se acreditava em céu e inferno, fiquei feliz por saber que minha mãe teria um lugarzinho reservado no paraíso e, nos meus nove anos, tinha a certeza de que o nono sabia das coisas. E sabia mesmo.