CONSIDERAÇÕES ACERCA DA OBRA “TRATADO SOBRE A INTOLERÂNCIA”, DE VOLTAIRE
Por Henrique Lima ( www.henriquelima.com.br )
 
Começo dizendo que é espetacularmente belo o “Tratado sobre a Intolerância”, escrito por Voltaire, um dos maiores pensadores francês de todos os tempos. Leitura agradável, repleta de informações muito interessantes. Publicado a primeira vez há cerca de 250 anos (década de 1760), é daquelas obras que prendem a atenção e que deixam saudades quando termina.

Voltaire aborda dois pontos principais: a intolerância religiosa e o perigo de os tribunais julgarem processos com base no “clamor público”.

Ele relata o caso da Família Calas. Após um filho cometer suicídio, o pai foi acusado e apressadamente condenado à cruel morte pela “roda” (forma de tortura que existia na época) e os demais membros da família tiveram a vida semelhantemente desgraçada.

O julgamento foi célere e sem preocupação com a coleta de provas, porque toda a população já "sabia" que havia sido o pai quem assassinou o filho. Detalhe que referida família era protestante, enquanto que o tanto o jovem suicida como quase toda aquela cidade era católica. E isso numa época de acirradas perseguições religiosas, de “auto-de-fé”, de inquisição etc.

Porém, cerca de três anos depois o Tribunal Francês reviu a decisão dos magistrados de Toulouse (a primeira decisão também foi colegiada) e declarou a inocência daquela família. Dado o clamor público, o próprio Rei Luís XV indenizou a família com 36.000 libras.

Esse triste acontecimento foi utilizado como “pano de fundo” para Voltaire adentrar no tema mais amplo da intolerância religiosa, apresentando bases filosóficas e racionais que nos permitem atacá-la em todas as áreas da vida, incluindo a intolerância política, a filosófica, a racial e qualquer outra que leve alguém a desprezar e perseguir outro ser humano.

Nos dias atuais, temos a chamada “polarização”, que é apenas uma faceta da velha e “intolerável intolerância”, que nunca deixou de existir, mas que em determinadas épocas é mais visível e leva até à violência não só moral, mas também física.

Voltaire defende que a tolerância é um dever natural e um dever humano, pois todos precisamos, pelo menos, nos suportar em favor da boa convivência.
 

O direito humano não pode estar baseado em nenhum caso senão nesse direito de natureza e no grande princípio, o princípio universal de um e de outro é, em toda a terra: “Não faça o que não gostaria que lhe fizessem”. Ora, não vemos como, segundo este princípio, um homem pudesse dizer a outro: “Creia naquilo que eu creio e rejeite aquilo que você não pode crer ou morrerá”. É o que se diz em Portugal, na Espanha, em Goa. Em alguns outros países não se contentam em dizer isso, mas dizem: “Creia ou o odiarei; creia ou lhe farei todo o mal que puder; monstro, você não tem minha religião, portanto não tem religião alguma; é necessário que você se torne o horror de seus vizinhos, de sua cidade, de sua província.

 
É fácil constatar que nos dias de hoje a intolerância continua fazendo vítimas. Pode até não matar fisicamente com a mesma frequência daquela época (às vezes ainda mata), porém se apesenta com um viés semelhantemente terrível: a violência ‘moral’.

Tornou-se quase comum agredir aqueles que pensam diferentes. Não se debatem as ideias, as fundamentações teóricas e empíricas que justificam determinado pensamento, crença ou ideologia política, rapidamente se parte para as acusações pessoais, gerando inimizade pessoal. Por não conseguir, ou mesmo querer, argumentar, e como também não é mais permitido, como era na época de Voltaire, queimar vivo o divergente, parte-se para o jogo baixo de tentar destruir sua moral, seu caráter, sua integridade, sua família. Hoje as ferramentas mais utilizadas são a mídia, digital ou não, e as redes sociais.

Na obra, Voltaire demonstra que é simplesmente impossível esperar que todas as pessoas pensem exatamente igual e creiam nas mesmas coisas, porque não há nada mais incontrolável do que o espírito humano. O autor também argumenta acerca da inutilidade de forçar alguém a crer em algo, ele cita Amelio de La Houssaie, que faz um paralelo com o sentimento de amor: “Ocorre com a religião como com o amor: a ordem nada podem e a imposição menos ainda; nada mais independente do que amar e crer.” (Lettres du cardinal d’Ossat).

As vezes a intolerância não é o bastante para levar o intolerante a atacar e nem a constranger o outro a pensar igual. Entretanto, é suficiente para não suportar, por exemplo, ouvir por uma hora alguém esboçando um assunto sob um ponto de vista diferente do que possui. Alguns não conseguem sequer ler um autor abordando um tema com opiniões que contrariam diretamente aquilo que acreditam. Felizmente, essa é uma intolerância mais contida, porém também maléfica.

A intolerância que leva à violência física e moral contra o que pensa, age ou crê diferente, deve ser extirpada de nosso meio, porque o direito do intolerante acaba onde começa o do próximo. E ambos possuem garantia de liberdade de crença, de pensamento e de manifestação.

Já a intolerância contida, que torna insuportável ouvir, ler, se relacionar ou conviver com o diferente, prejudica apenas o próprio intolerante, pois desperdiça a oportunidade de crescer e condena a si próprio à mediocridade.

O maior de todos disse: “Amem seus inimigos...” (Mt. 5:44) e seu discípulo reforçou: “Façam todo o possível para viver em paz com todos” (Rm 12:18). Amém.