CAUSAS DE ÓBITO E A NÃO EFETIVAÇÃO DE DOAÇÃO DE ÓRGÃOS EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Por CRISTINA MARINHO CHRIST BERGAMI | 07/02/2025 | Saúde

CAUSAS DE ÓBITO E A NÃO EFETIVAÇÃO DE DOAÇÃO DE ÓRGÃOS EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Causes of Death and Non-Execution of Organ Donation in Children and Adolescents

 

                                                                                                                                                        

Cristina Marinho Christ Bergami

Neima Magnago Curry Carneiro

 

RESUMO

 

Estudo transversal, retrospectivo sobre as causas de óbitos em crianças e adolescentes e a efetivação ou não de doação de órgãos realizadas em um hospital pediátrico. Ocorreram 295 óbitos, com predomínio dos óbitos ocorridos em crianças menores de 2 anos (38,0%). Os óbitos ocorridos por sepses (28,4%) foi a principal causa de morte. As mortes por Morte Encefálica ocorreram em apenas 24 casos (7,1%) sendo possível a realização da entrevista familiar em 42,9% destas e 1,1% das mortes por parada cardiorrespiratória. A principal causa da não doação por parada cardiorrespiratória foi paciente fora da faixa etária (38,4%). A principal causa de morte por morte encefálica foram decorrentes de tumor do sistema Nervoso Central e a principal causa da não doação foi portador de infecção grave (36,8%). As doações efetuadas corresponderam a um total de seis, sendo uma doação de córnea (por parada cardiorrespiratória) e cinco de múltiplos órgãos.

 

Palavras-chave: Doação Dirigida de Tecido; Causas de Morte; Pediatria.

 

ABSTRACT

 

A cross-sectional, retrospective study on the causes of death in children and adolescents and the occurrence of organ donation in a pediatric hospital. A total of 295 deaths were recorded, with a predominance of deaths in children under two years old (38.0%). Sepsis-related deaths (28.4%) were the leading cause of mortality. Deaths due to Brain Death occurred in only 24 cases (7.1%), with family interviews conducted in 42.9% of these cases and in 1.1% of deaths caused by cardiopulmonary arrest. The main reason for non-donation in cases of cardiopulmonary arrest was the patient being outside the eligible age range (38.4%). The leading cause of Brain Death was Central Nervous System tumors, while the main reason for non-donation was severe infection (36.8%). A total of six organ donations were performed, including one corneal donation (from cardiopulmonary arrest) and five multiple organ donations.

 

Keywords: Directed Tissue Donation; Causes of Death; Pediatrics.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

A utilização de órgãos e tecidos para transplantes não tem sido uma tarefa fácil já que depende exclusivamente da doação desses por parte de pacientes, vivos ou não, e autorização de seus familiares. Em crianças muitas dificuldades precisam ser superadas, como a identificação das necessidades dessas famílias, no intuito de facilitar o enfrentamento desta acerca da morte e consequentemente a possibilidade de doação de órgãos para transplante (BOUSSO; MENDES, 2006).

Dessa forma, a doação de órgãos em crianças e adolescentes se torna uma tarefa ainda mais árdua seja pela idade da população envolvida, na qual depende da doação destes pais, quanto das dificuldades técnicas de detecção de morte encefálica (ME), definição de diagnóstico desta ME e causas de morte passíveis de doação.

            A doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano é regulamentada pela Lei Nº 9.434 que define os critérios para o diagnóstico de Morte Encefálica (ME). Por Morte encefálica entende-se a cessação de toda e qualquer atividade encefálica, comprovada por exames clínicos e complementares e cuja conseqüência seja de processo irreversível e de causa conhecida. No Brasil, a comprovação de ME por exame complementar é de caráter obrigatório (CFM, 1997). Dessa forma, a notificação dos casos de ME se torna um dado valioso na identificação de potenciais doadores (SILVA; SOUZA; NEJO, 2008). Quando da confirmação de ME, uma etapa importantíssima para a doação de órgãos é a entrevista familiar, onde a recusa familiar em doar é uma das principais causas da não efetivação, seja por querer o corpo íntegro, por crenças religiosas ou por não aceitação do diagnóstico de ME (GARCIA, 2006).

Os principais doadores potenciais são àqueles pacientes vítimas de trauma, principalmente traumatismo cranioencefálicos (TCE), Acidente Vascular Cerebral, Encefalopatia Anóxica e Tumor Cerebral Primário (ABTO, 2002) diagnosticados com ME, onde a integridade física favorece a indicação de doação de órgãos. Em crianças, o TCE passível de ME leva a morte da criança ainda no local do acidente, dificultando, portanto, a potencialidade de ser um possível doador de órgãos.

Quanto à espera de um transplante, as crianças são mais propensas a morrer do que os adultos, porque há menos doador disponível, principalmente dificultada pelas limitações sobre o diagnóstico de morte encefálica usando critérios neurológicos, apesar do tempo médio de espera de órgãos serem menor do que nos adultos (BRIERLEY, 2010 apud HASAN; BRIERLEV, 2012). Vale ressaltar que em pediatria há uma grande variabilidade no tamanho do doador e receptor o que aumenta a complexidade da efetivação do transplante (BRIERLEV, 2012).

            As causas de óbito em crianças e adolescentes variam de acordo com a idade e isso influencia na perspectiva de ser um doador ou não. Em menores de dois anos a dificuldade técnica de comprovação de ME e doação de órgãos, em si, se configura um obstáculo às doações. Além disso, quanto menor for a idade, maior é o tempo necessário para que se ocorra as avaliações clínicas e complementares para a caracterização da ME dificultando assim a doação em menores de dois anos (CFM, 1997).

            Ressalta-se que pequena parcela dos indivíduos que morrem são efetivamente doadores elegíveis, já que muitas causas físicas são impeditivas à doação. Atrelado a isso estão às causas de óbito comuns em crianças que são contraindicações muitas vezes absolutas à doação como as neoplasias, as doenças infectocontagiosas, as sepses, infecções virais e fúngicas, além das crianças que evoluem a óbito sem causa conhecida (BRASIL, 2009).  

            No Brasil, no primeiro semestre de 2013, aproximadamente 8% dos doadores de órgãos estavam na faixa etária de 0 a 17 anos, sendo apenas 1 paciente do estado do Espírito Santo (ABTO, 2013), demonstrando o quanto é difícil a obtenção de doadores nesta faixa etária. Assim, os dados e as causas de mortalidade podem ser utilizados para a elaboração de ações prioritárias da saúde, investigação epidemiológica, bem como explicar tendências e diferenciais na mortalidade geral (CELINE, 2013).

            Dessa forma, esta pesquisa teve como guia a formulação da seguinte questão norteadora: quais são as causas de óbito intra-hospitalares em crianças e adolescentes e se isso é uma causa do reduzido número de doações realizadas e efetivadas? A partir dessa questão, o objetivo desta pesquisa foi conhecer as causas de óbito por Parada Cardiorrespiratória (PCR) e Morte Encefálica (ME) em crianças e adolescentes internados em um hospital pediátrico e a efetivação ou não de doação de órgãos para transplante.

 

 

 

2 MATERIAIS E MÉTODOS

 

Trata-se de um estudo transversal, documental, retrospectivo e quantitativo sobre as causas de óbitos em crianças e adolescentes e a efetivação ou não de doação de órgãos realizadas no Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória (HINSG), durante o período de julho de 2011 a março de 2013.

A base de dados utilizada foi o formulário de notificação de óbito por PCR e ME preenchido pelos enfermeiros da Comissão Intra Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) do HINSG. As variáveis utilizadas, quanto ao óbito, foram: idade, setor do óbito, tipo de óbito (Parada Cardiorrespiratória - PCR ou Morte Encefálica - ME) e causa do óbito. Quanto à doação de órgãos, as variáveis de interesse foram: número de óbitos por morte encefálica ou PCR quanto à realização de entrevista familiar, notificação e doação de órgãos. Para a catalogação das causas da não efetivação da doação de órgãos por PCR e ME foi utilizado os códigos padronizados de acordo com a Portaria Nº 2.600, de 21 de outubro de 2009, dispostos no quadro 1 e 2.

            Os dados obtidos foram organizados e analisados no programa Microsoft Excel® (2016), em seguida, foi realizada estatística descritiva para determinação de frequências absolutas, relativas e medidas de tendência central.

 

RECUSA DOS FAMILIARESCONTRAINDICAÇÃO MÉDICAPROBLEMAS LOGÍSTICOS OU ESTRUTURAIS
001 Desconhecimento do desejo do potencial doador011 Sorologia Positiva HIV019 Equipe não disponível
002 Doador contrário à doação em vida012 Sorologia Positiva HTLV020 Família não localizada
003 Familiares indecisos013 Infecção grave021 Deficiência Estrutural da Instituição
004 Familiares desejam o corpo íntegro014 Portador de neoplasia022 Sem identificação
005 Familiares descontentes com o atendimento015 Parada cardiorrespiratória023 Outros
 006 Receio de demora na liberação do corpo016 Fora da faixa etária

 

007 Convicções religiosas017 Outras doenças crônico-degenerativas

 

008 Incompreensão da ME018 Achados transoperatórios

 

009 Favoráveis à doação apenas após PCR 

 

010 Outros 

 

Quadro 1 - Causa da Não Efetivação da Doação por Morte Encefálica

Fonte: BRASIL (2006)

 

 

RECUSA DOS FAMILIARESCONTRAINDICAÇÃO MÉDICAPROBLEMAS LOGÍSTICOS OU ESTRUTURAIS
001 Desconhecimento do desejo do potencial doador009 Sorologia Positiva HIV019 Equipe de retirada não disponível
002 Doador contrário à doação em vida

010 Sorologia Positiva HTLV

020 Família não localizada
003 Familiares indecisos011 Sorologia Positiva Hepatite B021 Deficiência estrutural da instituição
004 Familiares desejam o corpo íntegro012 Sorologia Positiva Hepatite C022 Sem identificação
005 Familiares descontentes com o atendimento013 Acima do tempo máximo para retirada023 Outros
006 Receio de demora na liberação do corpo014 Portador de infecção grave 
007 Convicções religiosas015 Portador de neoplasia 
008 Outros016 Sem diagnóstico conhecido 
 017. Fora da faixa etária 
 018. Outras 

Quadro 2 - Causa da Não Efetivação da Doação por Parada Cardiorrespiratória

Fonte: BRASIL (2006)

 

3 RESULTADOS

 

Durante o período de julho de 2011 a março de 2013, ocorreram 295 óbitos nesta instituição, sendo principalmente ocorridas na unidade de emergência (33,2%) e na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (29,5%), além do setor de Oncologia (13,9%), Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (10,2%) e outras enfermarias (13,2%), conforme demonstrado na tabela 1.

Houve predomínio dos óbitos ocorridos em crianças menores de dois anos (38,0%), seguidos da faixa etária de 11 a 15 anos (18,3%). Os óbitos ocorridos por sepse (28,4%) e por tumores e neoplasias (25,8%) foram as principais causas de morte e em 8,5% dos casos não foi possível identificar a causa da morte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tabela 1. Local do óbito, faixa etária e causa de óbito em crianças e adolescentes. HINSG.

Variável

 

Total

n = 295

%

Setor do óbito

 

 

Emergência

98

 33,2

UTIP

87

 29,5

UTIN

30

 10,2

Oncologia

41

 13,9

Outros

39

 13,2

Faixa etária

 

 

< 2 anos

112

 38,0

2 a 5 anos

57

 10,3

6 a 10 anos

45

 15,3

11 a 15 anos

54

 18,3

> 15 anos

27

 9,2

Causa do óbito por PCR e ME

 

 

Tumor e neoplasias

76

 25,8

TCE/trauma

22

 7,4

Doenças hematológicas

07

 2,4

Sepses

84

 28,4

DIP

23

 7,8

Projétil Arma de fogo

15

 5,1

Outras causas

43

 14,6

Sem diagnóstico

25

 8,5

TCE - Traumatismo cranioencefálico; DIP - Doenças infectocontagiosas e parasitárias incluindo meningite

 

As principais causas da não doação por PCR foram: paciente fora da faixa etária (menor de 2 anos) em 38,4% dos casos, portador de neoplasia (24,7%) e portador de infecção grave (15,5%). Em se tratando das mortes por ME, as principais causas da não doação foram portador de infecção grave (36,8%), seguidos de portador de neoplasia (31,6%) e família deseja o corpo íntegro (21,1%) e conforme mostra a tabela 2.

 

 

 

 

 

 

 

 

Tabela 2. Tipo de óbito e causas da não doação de órgãos em por Parada Cardiorrespiratória e Morte Encefálica. HINSG.

Variável

Total

n

%

Tipo

  

Parada Cardiorrespiratória (PCR)

271

91,8

Morte Encefálica (ME)

24

8,1

Causas de não doação por PCR

270

 

014 Portador de infecção grave

42

15,5

015 Portador de neoplasia

67

24,7

016 Sem diagnóstico conhecido

17

6,3

017 Fora da faixa etária

104

38,4

018 Outras contraindicações médicas

04

1,5

021 Deficiência estrutural da instituição

24

8,8

004 Familiares desejam o corpo íntegro

01

0,4

009 Sorologia positiva HIV

04

1,5

023 Outros problemas logísticos ou estruturais

01

0,4

008 Recusa dos familiares

02

0,7

020 Família não localizada

02

0,7

010 Sorologia positiva HTLV

02

0,7

Causas de não doação por ME

19

 

004 Familiares desejam o corpo íntegro

04

21,1

013 Infecção grave

07

36,8

021 Deficiência estrutural da instituição

01

 5,3

014 Portador de neoplasia

06

 31,6

016 Sem Diagnóstico conhecido

01

5,3

 

Entre os óbitos por PCR, apenas 31 casos (11,3%) eram de doadores elegíveis, ou seja, não havia contraindicação médica para a doação. Nas ME, os doadores elegíveis representaram 52,4% dos casos. Apesar disso, o número de entrevistas realizadas nos óbitos por PCR ocorreram em apenas três casos (1,1%), demonstrando o pouco preparo das equipes na abordagem da família após o óbito para captação das córneas ou a falta de conhecimento sobre o assunto.

As mortes por Morte Encefálica (ME) ocorreram em 24 casos (8,3%) e apenas 10 (41,7%) eram doadores elegíveis, ou seja, não havia contraindicação médica para a doação. Destes doadores elegíveis foram realizadas entrevistas em todos os casos, com quatro recusas familiares por desejarem o corpo íntegro e uma deficiência estrutural da instituição e cinco captações realizadas, conforme mostra a tabela 3. O diagnóstico de ME se baseou nos dois testes clínicos e na comprovação por imagem através da angiografia cerebral, na maioria dos casos.

            O total de doações efetuadas correspondeu a seis pacientes, perfazendo 2,0% dos casos, sendo uma doação de córnea (por PCR) e cinco de múltiplos órgãos (ME).

 

Tabela 3. Número de doares elegíveis, entrevistas realizadas e doações efetuadas. HINSG.

Entrevistas

Doadores elegíveis

 Entrevistas realizadas Doações Efetivadas

Parada Cardiorrespiratória (n = 271)

31

03

01

Morte Encefálica (n = 24)

10

09

05

Total de Doações Efetivadas

-

-

06

 

A principal causa de ME encontrada no presente estudo foi decorrente de tumor cerebral (7 pacientes), não sendo possível diagnosticar a tempo o tipo de tumor envolvido, seguido do traumatismo cranioencefálico (5 pacientes). As causas de morte por ME estão listadas na tabela 4. Dos cinco pacientes doadores com ME, dois foram causados por projétil de arma de fogo (2 anos e 8 anos de idade), dois por traumatismo cranioencefálico (8 e 16 anos) e um por aneurisma cerebral (12 anos). A média de idade foi de 8,2 anos (variando de 1 a 18 anos; média = 8,2 anos; mediana = 8 anos).

 

Tabela 4. Causas de morte encefálica e idade dos pacientes. HINSG.

Causas de morte

Idade dos pacientes*

N=24

%

Empiema cerebral

13

01

4,2

Cerebrite

3

01

4,2

Meningite

1 e 9

02

8,3

Abscesso Cerebral

3

01

4,2

Meningoencefalite

8 e 12

02

8,3

Tumor cerebral

2, 3, 12, 13, 16, 16 e 18

07

20,2

TCE

2, 3, 5, 8 e 16

05

20,8

PAF

2 e 8

02

8,3

Púrpura trombocitopênica

9

01

4,2

Aneurisma cerebral

12

01

4,2

Causa desconhecida

2

01

4,2

*Idade em anos; média = 8,2 anos mediana = 8 anos

 

 

4 DISCUSSÃO

 

A análise dos dados obtidos através dos formulários da CIHDOTT pôde nos mostrar como se comportam as causas de óbito, bem como as doações realizadas a partir desta. Em se tratando de morte por PCR, considera-se morte quando da cessação completa dos batimentos cardíacos, com consequente morte cerebral. Em ME, o óbito é constatado no momento da confirmação de ME, devendo ser registrado a data e a hora no prontuário do paciente (REGIS et al., 2007).

No Brasil, a doação após PCR é feita apenas para tecidos (córneas), apesar de já ser utilizada em outros países, como nos estados Unidos, a doação de órgãos sólidos, como rins e fígado, nesta condição (MAZOR; BADEN, 2007).

            O número de óbitos em crianças tem sofrido um decréscimo ao longo dos anos devido ao incremento dos cuidados médicos e intensivos em pediatria, onde até doenças consideradas como fatais, como a leucemia, tem aumentado a sobrevida. As causas de óbito se diferem conforme a idade da criança, onde intervenções médicas necessárias culminam com a morte de muitas crianças por comprometimento significativo dos órgãos, doenças metabólicas, malignidade, dentre outros, que inviabilizam a doação (HASAN; BRIERLEV, 2012), como observado em nossa pesquisa.

            Aproximadamente 80% das causas de mortes na população pediátrica são decorrentes de doenças do aparelho respiratório, muitas vezes associadas à sepse, condições associadas ao período perinatal e doenças infectoparasitárias, todas impeditivas ao processo de doação de órgãos (OLIVEIRA et al., 2007). Dessa forma, a obtenção de doadores nesta faixa etária se torna uma tarefa difícil.

            Um estudo com 1995 pacientes de até 18 anos internados na UTIP obteve uma taxa de mortalidade de 4,4% (87 casos), destes nove pacientes eram clinicamente adequados para a doação de órgãos e 24 pacientes para a doação de tecidos, sendo realizadas seis entrevistas familiares e consentido a captação em apenas dois pacientes, em ambos os grupos (BERGE; GAST-BAKKER; PLÖTZ, 2006). Nesse estudo, quase metade dos casos dos diagnósticos de admissão na UTIP, dos pacientes que evoluíram a óbito, estiveram relacionados a problemas respiratórios e neurológicos, sendo encontrado apenas 2,3% diagnosticados com trauma, o que pode justificar o pequeno número de doações de órgãos. No presente estudo encontramos um total de 7,4% de casos de TCE/trauma.

            Outra pesquisa com o intuito de descobrir as causas de morte entre crianças menores de 12 anos de idade na Índia, durante cinco anos, encontrou que a maioria delas (58,8%) ocorreu no período neonatal, sendo aproximadamente 60% destas devido a doenças respiratórias e cardiovasculares e 10% de causas externas (CELINE, 2013). O presente estudo revelou o maior número de mortes nas crianças menores de dois anos e quase 50% em menores de cinco anos, incluindo aqui as do período neonatal, mostrando a vulnerabilidade deste grupo etário.

            Estudo semelhante, na mesma faixa etária, demonstrou como principais causas de morte a meningite, meningoencefalite e infecção respiratória aguda e a asfixia ao nascer como a causa mais comum do período neonatal (ROY et al., 2008).  O presente estudo também mostra as infecções como a principal causa de morte, seguido das mortes por câncer.

            Vale ressaltar que são poucos os pacientes pediátricos que preenchem os critérios para doação de órgãos, principalmente àqueles diagnosticados com morte encefálica. Tsai e colaboradores (2000) acompanharam todas as crianças com morte encefálica de um período de oito anos de uma UTIP, encontrando apenas 199 pacientes que preenchiam os critérios de ME e destes 153 eram clinicamente adequados para a doação de órgãos, com uma taxa de consentimento familiar de 63%. Além disso, para os autores a morte cerebral causada por lesões neurocirúrgicas agudas foi altamente correlacionada com a aptidão médica e o consentimento familiar.

            Da mesma forma, outro estudo encontrou apenas 24 pacientes clinicamente adequados para a doação de órgãos (1995 casos/87 mortes), destes dez em menores de um ano, sendo realizadas seis entrevistas familiares com dois consentimentos (BERGE; GAST-BAKKER; PLÖTZ, 2006). A faixa etária menor de dois anos foi a mais prevalente encontrada no presente estudo, não sendo abordado para doação de órgãos devido às dificuldades em se estabelecer as causas de morte, bem como ao diagnóstico de ME, quando suspeitado, corroborando com nosso estudo.

            A ocorrência de ME nesta população é de difícil diagnóstico e comprovação além de poucos estudos na área pediátrica. A ocorrência de apenas 8,1% dos casos de ME encontrados, nos evidencia esta dificuldade, seja pelo número reduzido de causas e pela dificuldade de comprovação quanto pelas causas impeditivas para doação, apontadas aqui como falha, em alguns casos, em se determinar e notificar a ME.

            A determinação da ME em pediatria é proporcionalmente mais difícil quanto menor a idade da criança devido à dificuldade na realização dos exames diagnósticos, onde alguns destes são considerados como precipitadores da morte, principalmente em pacientes com traumatismo cranioencefálico (REGIS et al., 2007). Dessa forma, somente após a constatação de ME e autorização familiar os órgãos podem estar aptos à doação.

            O doador cadáver com diagnóstico clínico de ME se constitui como a maior fonte de obtenção de múltiplos órgãos para transplante (DALBEM; CAREGNATO, 2010), devendo ser estimulado, já que o transplante de órgãos é a única opção curativa disponível para muitas doenças que resultam em falência irreversível de órgãos (SIBAL; KAUR, 2010).

            Um estudo multicêntrico para avaliar a incidência de morte encefálica (ME), em unidades de tratamento intensivo pediátrico (UTIP) localizadas em três regiões brasileiras encontraram 61 pacientes com ME e apenas seis (9,8%) foram doadores de órgãos (LAGO et al., 2007), percentual abaixo do encontrado em nossa pesquisa que foi de cinco doações para 24 casos de ME.

            A incidência de ME (8,1%) encontrada esteve abaixo do encontrado em alguns estudos, onde este índice variou de 8,4% a 34,9% de acordo com o local e a população pesquisada (KIPPER et al., 2005; GONZÁLEZ et al., 2004). O tipo de paciente estudado, a dificuldade em confirmar o diagnóstico de ME devido principalmente ao exame complementar exigido na legislação, atrelado à necessidade de remoção do paciente para outra unidade a fim de realizar este exame, foram causas dificultadoras para a obtenção de maior número de pacientes diagnosticados com ME.

            O estudo realizado por Rocon e colaboradores (2013), encontrou como principais problemas estruturais e logísticos para a confirmação de ME a falta de transporte ou equipamento disponível para executar a confirmação do exame complementar obrigatório. Vale ressaltar, que pacientes com ME podem apresentar instabilidade hemodinâmica, com potencial risco para PCR durante o transporte para esse exame com perda da possibilidade de doação de órgãos sólidos.

Os diagnósticos de sepse e tumor cerebral foram referidos como causas da não realização de doação de órgãos em pacientes diagnosticados com ME, além da recusa familiar, em 15 pacientes de um total de 43 falecidos (GONZÁLEZ et al., 2004). No presente estudo, a presença de sepse e de neoplasias (incluindo tumor cerebral) resultaram em mais de 50% das causas de morte, demonstrando a dificuldade em se encontrar doadores elegíveis na população pediátrica.

Assim, a baixa incidência de doações de tecidos nos casos de PCR (apenas um paciente) e de doações por ME (cinco pacientes), apesar do pouco número de doadores elegíveis, demonstra despreparo de todo corpo clínico do hospital na busca de possíveis doadores, além da ausência de equipe treinada e capacidade em todos os turnos na abordagem familiar quanto à doação.

            A contraindicação médica para a doação, como nos casos do paciente ser portador de uma infecção grave e neoplasia, como observado no presente estudo, é um dos principais motivos para a não efetivação da doação nos casos de ME, assim como é observado para o paciente adulto. Além disso, o índice de recusa familiar, por desejar o corpo íntegro, também corrobora como causa de não doação (ROCON et al., 2013; CONCEIÇÃO et al., 2012).

            Outra condição de dificuldade é a incredulidade quanto a ME. Os pais são mais favoráveis à doação de órgãos de seus filhos quando há uma completa compreensão da morte encefálica e sua irreversibilidade (RODRIGUE; CORNELL; HOWARD, 2008).  “A fase da entrevista familiar é determinante para a efetivação do potencial doador e extremamente dependente de fatores como: predisposição à doação, qualidade do atendimento hospitalar recebido e habilidade e conhecimento do entrevistador” (CONCEIÇÃO et al., 2012).

            Independente da causa de óbito, a tragédia que envolve esta situação deixa a família amedrontada, preocupada, com muito sofrimento, dificultando a percepção correta do que é a morte encefálica e a assimilação desta nova condição de seu ente querido, necessitando assim de um tempo maior para aceitação deste fato (BOUSSO, 2008). Portanto, “a resistência a doar está estreitamente vinculada à dificuldade de aceitar a perda do familiar e a sua irreversibilidade” (QUINTANA; ARPINI, 2009, p. 93).

Além disso, “a possível variação cronológica do momento da morte da criança caracteriza-se como a co-variante do processo de tomada de decisão quanto à doação de órgãos do filho” (BOUSSO, p. 50). Assim, o desejo de manter o corpo íntegro, a falta de confiança na equipe médica e a ausência do falecido ter expressado o desejo de doar, como observado nos pacientes adultos, são as principais causas de recusa familiar (QUINTANA; ARPINI, 2009). Apesar da doação de órgãos após a morte circulatória (parada cardíaca) já ser uma alternativa para o aumento do caso de doadores, ainda não há relatos, no Brasil, desse tipo de doação em crianças.

Sabemos das limitações de nosso estudo, principalmente por se tratar de um estudo retrospectivo e de dados secundários da CIHDOTT, o que poderia causar viés de interpretação e levar a dados incompletos. Apesar disso, observamos que o conhecimento das causas de morte por PCR e ME na população pediátrica são necessárias, a fim de se levantar possíveis doadores elegíveis, aumentando assim o número de doações nesta população. Ressaltamos que estudos sobre causas de morte e doações de órgãos em crianças são escassos, dificultando a comparação com o presente estudo.

 

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Os poucos casos de doação efetiva em crianças encontrada em nosso estudo e referida na literatura científica, dos casos de transplantes em crianças, corrobora para o número reduzido de doações de órgãos, se comparado ao adulto. Além disso, a maioria das causas de óbito em crianças, por si só, são impeditivas do paciente em se tornar doadores elegíveis devido às contraindicações médicas, aumentando ainda mais as dificuldades nesta população.

Apesar disso, não se justifica o baixo índice de entrevistas em óbitos por PCR, já que para a doação de córneas não há necessidade de comprovação de morte por exames clínicos ou complementares. Dessa forma, estudos sobre a doação de órgãos em crianças são escassos e devem ser incentivados. Assim, torna-se necessário e urgente, a implantação de políticas para aumentar a doação de órgãos na população pediátrica.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABTO. Associação Brasileira de Transplantes de órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes, Ano XIX, n. 2, jan-jun. 2013.

 

ABTO. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Entenda a Doação de Órgãos: Decida-se pela Vida. ABTO, Ministério da Saúde, CFM, 2002. Disponível em: <HTTP://www.abto.com.br> Acesso em 02 dezembro 2012.

 

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