Autismo Feminino Desmistificando o Subdiagnóstico e Promovendo Inclusão A Invisibilidade do Autismo em Mulheres
Por Andrea Dias | 23/04/2025 | PsicologiaAutismo Feminino Desmistificando o Subdiagnóstico e Promovendo Inclusão
A Invisibilidade do Autismo em Mulheres
Por Andrea Dall'Ava Cortellazzi
Apostila base para leitura e compreensão
🙏 Agradecimentos
Agradeço, primeiramente, a Deus, pela vida, pelos encontros e por me guiar com força e coragem, mesmo nas trilhas mais silenciosas da alma.
A minha família, base sólida de afeto e aprendizado, que me ensinou, mesmo nos dias difíceis, o poder da persistência e da ternura.
Ao Eduardo, presença amorosa, parceira e companheira de tantos momentos — obrigada por caminhar comigo com generosidade e acolhimento.
Aos professores e estudantes da Escola Estadual Major Cosme de Faria, que, com cada troca, gesto e palavra, contribuíram imensamente para minha jornada de descobertas e de crescimento. Foi com vocês que aprendi o verdadeiro sentido da inclusão — não como conceito, mas como prática viva e cotidiana.
A todos e todas que, direta ou indiretamente, colaboraram com meu processo de aprendizagem: colegas, mentores, amigos, leitores e almas sensíveis que cruzaram meu caminho. Vocês fizeram diferença no percurso dessa mulher autista, escritora e educadora, que descobriu tardiamente seu lugar no espectro, mas nunca parou de buscar seu espaço no mundo.
Este livro é também de vocês. Com carinho, respeito e gratidão.
💐 Dedicatória
À minha mãe, Maria Cortelazzi.
Minha fortaleza em dias nublados, meu porto seguro em todos os mares da vida.
Foi com você que aprendi a ser forte, a não desistir diante das dificuldades, a tentar sempre ser melhor, a lutar com dignidade e fé.
Você me ensinou, com palavras e com silêncio, com gestos e com firmeza, a respeitar quem eu sou. Foi através do seu amor incondicional e da sua coragem diária que descobri o verdadeiro significado de ser mulher — e, acima de tudo, de ser eu.
Este livro é um reflexo da mulher que você formou.
Com toda minha gratidão e amor eterno, esta obra é sua também.
Sumário
1. Introdução: A Invisibilidade do Autismo em Mulheres
2. Características do Autismo Feminino
3. Desafios no Diagnóstico
4. Comorbidades Frequentes
5. A Importância do Diagnóstico Correto
6. Recomendações para Famílias e Profissionais
7. Conclusão: Por uma Inclusão Real
8. Glossário
9. Bibliografia
1. Introdução: A Invisibilidade do Autismo em Mulheres
O Silêncio Invisível
Durante décadas, a imagem construída socialmente sobre o autismo foi marcada por um forte viés de gênero. As representações culturais — sejam em filmes, livros, documentários ou mesmo em campanhas de conscientização — reforçaram a figura de um menino branco, com interesses restritos, dificuldade intensa de socialização e padrões de comportamento rígidos. Essa imagem, embora reflita parte da realidade de muitos indivíduos autistas, invisibilizou por completo uma parcela igualmente significativa da população: as meninas e mulheres autistas.
A invisibilidade do autismo feminino não é fruto do acaso, mas sim de uma construção histórica e científica baseada, quase que exclusivamente, no comportamento de meninos. Os primeiros estudos e critérios diagnósticos foram desenvolvidos a partir da observação clínica de garotos, gerando um perfil considerado "típico" que não contempla as particularidades da manifestação do espectro em meninas. Assim, mulheres que não se encaixam nesse modelo acabam negligenciadas, mal compreendidas e, muitas vezes, mal diagnosticadas.
Uma Vida Sem Nome: Diagnósticos Equivocados e Silenciamento
Enquanto os meninos com autismo costumam ser identificados ainda na infância devido à sua conduta mais evidente ou disruptiva, as meninas, por outro lado, frequentemente passam despercebidas. Suas dificuldades são interpretadas como traços de personalidade, exageros emocionais ou comportamentos típicos de uma fase da vida. Em vez de receberem apoio, são chamadas de “dramáticas”, “estranhas”, “exageradas”, “frias” ou “intensas demais”.
Como resultado, é comum que mulheres no espectro sejam rotuladas com diagnósticos equivocados, como transtorno de personalidade borderline, transtorno bipolar, depressão ou transtornos de ansiedade. Em muitos casos, recebem múltiplos diagnósticos ao longo da vida, sem que nenhum deles explique de forma completa sua experiência emocional e sensorial. Essa trajetória marcada pela confusão e pelo não pertencimento gera não apenas sofrimento psíquico, mas também uma profunda sensação de inadequação diante de um mundo que parece sempre exigir uma performance social exaustiva.
Uma Construção Masculinizada do Diagnóstico
A ciência, como qualquer outro campo, é influenciada por contextos históricos, culturais e sociais. A forma como o autismo foi (e ainda é) estudado e diagnosticado reflete isso. Os manuais de diagnóstico, como o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), basearam-se largamente em amostras masculinas, o que torna seus critérios limitados para capturar a diversidade de manifestações do espectro entre mulheres.
As meninas, desde cedo, são socialmente condicionadas a se adaptar. São ensinadas a observar, imitar e agradar. Com isso, muitas desenvolvem o que hoje se conhece como masking — ou camuflagem social — um esforço consciente e inconsciente de esconder suas dificuldades e agir de forma “aceitável” aos olhos dos outros. Elas decoram frases, imitam expressões faciais, forçam interações e criam versões de si mesmas para se encaixar nos grupos. Esse desempenho social vem a um custo altíssimo: fadiga extrema, crises internas, colapsos emocionais silenciosos e, com o tempo, um esgotamento profundo conhecido como burnout autista.
Quando o Diagnóstico Falha, o Sofrimento se Multiplica
O subdiagnóstico e os erros no reconhecimento do autismo feminino têm consequências devastadoras. Muitas mulheres vivem uma vida inteira se sentindo “quebradas”, sem compreender o motivo de suas dificuldades de conexão social, hipersensibilidades sensoriais, rigidez em rotinas, crises emocionais ou a exaustão diante de interações aparentemente simples.
Sem um diagnóstico preciso, não há acesso a terapias específicas, apoio psicológico adequado ou compreensão social. Em vez disso, essas mulheres são muitas vezes medicalizadas de forma inadequada, recebendo prescrições para tratar os sintomas, mas não a raiz do problema. A falta de compreensão de si mesmas contribui para o surgimento de comorbidades como ansiedade, depressão, transtornos alimentares e pensamentos autodepreciativos. O impacto se estende a todas as esferas da vida: acadêmica, profissional, familiar e afetiva.
Além disso, o diagnóstico tardio — muitas vezes apenas na vida adulta — também representa a perda de oportunidades de intervenção precoce, adaptação escolar e fortalecimento da autoestima. Sem saber que são autistas, muitas crescem com a sensação de que há algo de errado com elas, o que pode culminar em sérias crises de identidade.
2. Características do Autismo Feminino
Um Jeito Silencioso de Ser Autista
O autismo em mulheres e meninas muitas vezes se apresenta de maneira mais sutil e interiorizada do que nos meninos. Enquanto os critérios tradicionais buscam sinais visíveis e comportamentos mais extremos, as meninas costumam “se esconder à vista de todos”, apresentando traços que são constantemente interpretados como traços de personalidade, timidez ou mesmo perfeccionismo.
Isso não significa que sofrem menos — significa apenas que sofrem em silêncio.
Camuflagem Social: O Peso de Ter Que Ser Alguém que Não É
Uma das características mais marcantes em mulheres autistas é a camuflagem social (masking). Trata-se de uma habilidade desenvolvida, consciente ou inconscientemente, para esconder os traços autistas e se adaptar às expectativas sociais.
Essas meninas observam e imitam o comportamento de colegas, memorizam padrões de conversa, copiam gestos e expressões faciais e tentam a todo custo evitar chamar atenção. A camuflagem pode ser tão bem feita que, à primeira vista, passam por pessoas extremamente educadas, inteligentes, sensíveis e articuladas. No entanto, por trás dessa “máscara” existe um esforço constante, um gasto de energia emocional e cognitiva imenso, que muitas vezes leva ao esgotamento profundo no final do dia.
Além disso, a necessidade de mascarar seus traços acaba por criar uma desconexão com sua verdadeira identidade. Muitas mulheres relatam não saber quem realmente são, já que passaram a vida toda tentando agradar os outros ou se adaptar ao mundo ao redor.
Interesses Específicos, Mas Aceitáveis
Outro aspecto importante é a forma como os interesses restritos — traço clássico do espectro — aparecem nas meninas. Enquanto meninos podem demonstrar interesse por mapas, trens ou sistemas complexos, as meninas podem ter paixões intensas por animais, livros, astrologia, cultura pop, personagens específicos, mitologia, maquiagem ou séries de televisão. Por serem temas mais “aceitáveis” ou comuns entre garotas, essas obsessões não são vistas como parte de um comportamento atípico, quando, na verdade, são tão intensas e sistemáticas quanto os interesses de meninos no espectro.
Hiperempatia e Sensibilidade
Ao contrário do estereótipo que associa autismo à frieza emocional, muitas mulheres autistas apresentam hipersensibilidade emocional. Elas sentem profundamente a dor alheia, captam tons emocionais sutis e se afetam com a injustiça, tristeza ou sofrimento dos outros — ao ponto de ficarem emocionalmente sobrecarregadas.
Essa hipersensibilidade também se estende ao ambiente. Barulhos, luzes fortes, cheiros intensos ou tecidos ásperos podem causar desconforto extremo. Ainda assim, como são ensinadas desde cedo a “aguentar firme” ou “não fazer escândalo”, muitas ignoram seus limites e internalizam o sofrimento.
Comunicação e Relações Sociais
Mulheres autistas podem desenvolver linguagem verbal fluente e até sofisticada, o que contribui ainda mais para que não sejam identificadas como neurodivergentes. Porém, a comunicação social vai além das palavras: envolve compreender contextos, ironias, jogos de poder e expressões faciais — aspectos que continuam sendo desafiadores.
Nas interações sociais, é comum que busquem conexões profundas, mas tenham dificuldade em manter amizades superficiais ou lidar com grupos. Muitas relatam sentir-se deslocadas, mesmo estando “inclusas”. Há também um padrão de relacionamentos intensos e instáveis, marcados por idealizações, desilusões e dificuldades em estabelecer limites claros.
3. O Impacto do Diagnóstico Tardio
Uma Jornada Solitária
Para muitas mulheres, o diagnóstico de autismo só chega na vida adulta — às vezes, após anos de sofrimento psíquico e sensação de inadequação. Outras o descobrem apenas depois que seus filhos (geralmente meninos) são diagnosticados, e então passam a reconhecer em si mesmas características semelhantes.
O diagnóstico tardio, por um lado, traz alívio. Ele permite dar nome ao que antes era apenas angústia difusa, culpabilização e tentativas frustradas de se encaixar. É o momento em que, pela primeira vez, muitas mulheres entendem que não estavam “quebradas”, apenas foram lidas de forma errada.
Mas esse alívio vem acompanhado de luto: o luto pelo tempo perdido, pelas oportunidades que não tiveram, por todas as vezes que foram chamadas de “estranhas”, “problemáticas”, “complicadas”. Há também a raiva — pelo descaso dos profissionais de saúde, pela falta de escuta, pela invisibilidade sistemática que enfrentaram.
Consequências Emocionais e Psicológicas
O atraso no diagnóstico geralmente deixa marcas profundas. Não saber o porquê de se sentir diferente ou inadequada pode gerar:
- Ansiedade crônica, pela constante tentativa de prever e controlar ambientes sociais;
- Depressão, causada por um sentimento contínuo de fracasso ou exclusão;
- Síndrome do impostor, comum entre mulheres autistas de alto desempenho que vivem com a sensação de estarem sempre fingindo ser algo que não são;
- Despersonalização e confusão de identidade, resultado de anos mascarando seus traços e ignorando seus próprios limites;
- Autolesão ou pensamentos suicidas, em casos mais graves, especialmente quando o sofrimento interno não é validado ou acolhido.
Impactos na Vida Profissional e Pessoal
Sem o diagnóstico e sem apoio adequado, muitas mulheres passam a vida lutando para manter empregos, relações e até a própria autoestima. O mundo profissional, com suas exigências de comunicação informal, trabalho em grupo, e normas não ditas, pode ser extremamente hostil.
Na vida pessoal, enfrentam dificuldades para formar vínculos duradouros, interpretar dinâmicas familiares ou manter relacionamentos saudáveis. Muitas são vítimas de relacionamentos abusivos, por não perceberem sinais de manipulação ou por não conseguirem impor limites claros.
Oportunidade de Reconstrução
Apesar dos desafios, o diagnóstico também representa uma oportunidade de reconstrução pessoal. Ao entender sua neurodivergência, a mulher autista pode começar a fazer escolhas mais conscientes, respeitar seus limites, encontrar espaços mais acolhedores e desenvolver relacionamentos mais autênticos.
O processo pode ser lento, mas é libertador. Envolve se redescobrir, se aceitar e, muitas vezes, recomeçar — agora com mais verdade e menos culpa.
4. Caminhos para a Inclusão e o Reconhecimento
A Importância da Escuta e da Representatividade
Reconhecer as mulheres autistas é, antes de tudo, um ato de escuta e empatia. É necessário ouvir suas vivências sem preconceitos, aceitar que o autismo pode se manifestar de formas sutis, camufladas e silenciosas. A representatividade é outro passo essencial: ver mulheres autistas em posições de fala, em espaços acadêmicos, profissionais e culturais, quebra estigmas e amplia o entendimento da sociedade sobre o espectro.
Precisamos de histórias reais sendo contadas — por elas, com suas palavras, em seus tempos. Quando meninas autistas veem outras mulheres neurodivergentes vivendo com autenticidade e sendo respeitadas, elas passam a compreender que também podem ocupar espaços e se expressar de maneira legítima.
Formação de Profissionais e Revisão dos Critérios Diagnósticos
A mudança começa na formação de quem atende, acolhe e diagnostica. Psicólogos, psiquiatras, educadores e demais profissionais da saúde e educação precisam ser capacitados para identificar os sinais do autismo em meninas e mulheres. É urgente revisar os critérios diagnósticos, que ainda hoje são baseados em padrões masculinos.
Mais do que ferramentas, é necessário um novo olhar: mais atento às nuances, mais sensível às diferenças de gênero e menos pautado por estereótipos. O autismo não tem uma “cara” única — ele é múltiplo, diverso e exige escuta ativa e respeito às individualidades.
O Papel da Escola, da Família e da Comunidade
A inclusão não é responsabilidade exclusiva da pessoa autista. Ela é, sobretudo, um compromisso social. Escolas precisam repensar seus métodos pedagógicos e acolhedores, famílias devem ser orientadas sobre os sinais que muitas vezes são confundidos com “birra” ou “drama”, e comunidades devem construir espaços onde o diferente não seja excluído, mas acolhido com naturalidade.
Empatia, paciência e abertura ao diálogo são pilares fundamentais para essa transformação. Toda menina ou mulher tem o direito de ser compreendida em sua singularidade, sem precisar se moldar para caber em padrões excludentes.
Para Além do Diagnóstico: Uma Vida com Autenticidade
O diagnóstico é um ponto de partida, não um rótulo limitador. O caminho para a inclusão também passa por permitir que essas mulheres sejam quem são — sem disfarces, sem máscaras, sem medo. É sobre dar espaço para que expressem seus interesses, suas formas de ver o mundo, suas particularidades sensoriais e emocionais.
A verdadeira inclusão acontece quando deixamos de exigir adaptação total da pessoa ao mundo e começamos a adaptar o mundo para acolher todas as formas legítimas de existência.
5. A Importância do Diagnóstico Correto
🔍 Nomear é Libertar
Para muitas mulheres autistas, receber o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista é como encontrar uma peça perdida de um quebra-cabeça que sempre pareceu incompleto. Finalmente, suas experiências, sensações e formas de ver o mundo passam a fazer sentido. Nomear o que se sente e vive é, antes de tudo, um ato de validação e libertação.
Durante anos, muitas delas enfrentam um percurso tortuoso marcado por rótulos inadequados, tratamentos frustrantes e sentimentos persistentes de inadequação. Um diagnóstico correto pode interromper esse ciclo de sofrimento silencioso e abrir portas para um cuidado mais assertivo, inclusivo e respeitoso.
💬 "Por que só agora?"
Essa é uma pergunta comum entre mulheres diagnosticadas na vida adulta. A resposta está na forma mascarada como o autismo frequentemente se manifesta nelas. Comportamentos socialmente aceitos, como o perfeccionismo, a hiperadaptação, a sensibilidade emocional e a introspecção, muitas vezes são confundidos com traços de personalidade, em vez de sinais de neurodivergência.
Além disso, a expectativa social de que meninas sejam comunicativas, empáticas e "boazinhas" leva muitas a desenvolverem desde cedo mecanismos de camuflagem social, ou seja, um esforço consciente (ou não) para imitar padrões esperados de comportamento, mesmo à custa do próprio bem-estar mental.
🧠 Impactos Positivos do Diagnóstico
1. Autoconhecimento e Reorganização da Identidade
Saber que se está no espectro ajuda muitas mulheres a reinterpretarem suas experiências de vida sob uma nova ótica, agora com mais compaixão por si mesmas.
2. Redução do Sofrimento Psíquico
Ao compreender suas necessidades sensoriais, emocionais e cognitivas, torna-se possível desenvolver estratégias para evitar situações de sobrecarga, ansiedade ou burnout.
3. Acesso a Apoios e Acomodações
Com o diagnóstico, a mulher pode acessar recursos legais, terapias específicas, grupos de apoio e medidas de inclusão no ambiente escolar, universitário e profissional.
4. Fim da Hipermedicalização Indevida
Muitas mulheres passam anos utilizando medicações para transtornos que não correspondem à sua condição real. O diagnóstico correto ajuda a rever essas condutas.
5. Fortalecimento de Relações
O entendimento das características do autismo pode melhorar os vínculos familiares, afetivos e sociais, pois permite que os outros também compreendam seus limites e necessidades.
🚧 O Caminho Ainda é Cheio de Barreiras
Apesar dos avanços, o acesso ao diagnóstico de autismo feminino ainda é marcado por desafios. Muitas profissionais da saúde ainda não estão preparadas para identificar os traços mais sutis e camuflados do espectro em mulheres.
Por isso, é fundamental promover formações continuadas para profissionais, ampliar a discussão sobre o autismo feminino em espaços acadêmicos, escolares e sociais, e estimular uma escuta empática por parte de quem convive com essas mulheres.
❤️ Diagnosticar não é rotular, é oferecer acolhimento
Mais do que um laudo, o diagnóstico deve ser visto como uma ferramenta de empoderamento e inclusão. Ele abre caminhos para que mulheres autistas deixem de apenas sobreviver no mundo e possam, de fato, viver com dignidade, liberdade e pertencimento.
6. Recomendações para Famílias e Profissionais
👨👩👧 A Rede de Apoio é Fundamental
A jornada de uma mulher autista pode ser mais leve e significativa quando ela é acompanhada por uma rede que a compreende, respeita e apoia. Famílias e profissionais têm papel essencial nesse processo. Contudo, é preciso desfazer mitos, preconceitos e expectativas irreais que frequentemente recaem sobre essas mulheres.
A seguir, apresentamos recomendações práticas, embasadas em experiências clínicas, relatos e pesquisas, que podem auxiliar no cuidado e convivência com meninas e mulheres no espectro.
📌 Para Famílias
1. Acolha sem julgamento
Evite comparar a filha, irmã ou parente com outras pessoas. Cada mulher autista é única, com um jeito singular de se expressar, sentir e compreender o mundo.
2. Escute o que ela tem a dizer
Mesmo que ela tenha dificuldades em se expressar verbalmente, há outras formas de comunicação que precisam ser reconhecidas: olhares, gestos, interesses repetitivos ou mesmo silêncios.
3. Respeite os limites sensoriais e emocionais
Muitas mulheres autistas são sensíveis a ruídos, cheiros, luzes, texturas ou toque físico. Entender e respeitar esses limites é um ato de carinho e empatia.
4. Evite forçá-la a "ser como os outros"
Tentar "normalizá-la" pode gerar sofrimento, ansiedade e sentimento de inadequação. Incentive sua autenticidade.
5. Incentive a autonomia com apoio estruturado
Criar rotinas, oferecer explicações claras e dar suporte em mudanças são formas de ajudar no desenvolvimento da autonomia sem gerar sobrecarga.
6. Busque conhecimento e formação
Participar de grupos de apoio, ler sobre o autismo feminino e dialogar com outras famílias pode ampliar o repertório de cuidado e compreensão.
📌 Para Profissionais da Saúde, Educação e Assistência Social
1. Atualize-se sobre o autismo feminino
Os traços do espectro em mulheres muitas vezes não seguem o “modelo clássico” descrito em manuais. Formações específicas são essenciais.
2. Adote uma escuta sensível e não patologizante
Muitas mulheres chegam ao consultório cansadas de serem rotuladas como “difíceis” ou “problemáticas”. Escute suas vivências com empatia e respeito.
3. Evite interpretar a camuflagem como ausência de sofrimento
A mulher autista pode parecer sociável, mas estar esgotada por dentro. A aparência não deve ser o único critério de avaliação.
4. Inclua a família no processo, mas respeite a autonomia da mulher
Se ela for adulta, deve ser ouvida e incluída em todas as decisões que dizem respeito à sua vida.
5. Atenção às comorbidades
Depressão, ansiedade, distúrbios alimentares e TDAH são comuns em mulheres autistas e merecem ser avaliados com cuidado, sem reduzir tudo à “personalidade difícil”.
6. Promova um ambiente de inclusão verdadeira
Seja no consultório, na escola ou no trabalho, é importante adaptar a comunicação, respeitar rotinas e oferecer alternativas acessíveis à realidade da pessoa autista.
💡 Humanizar o cuidado é essencial
Tanto no ambiente familiar quanto profissional, o que mais transforma a vida de uma mulher autista é a presença de pessoas que a veem para além do diagnóstico. Aquelas que conseguem enxergar a beleza da diferença, oferecer suporte com gentileza e estimular o florescimento de seu potencial único.
7. Conclusão: Por uma Inclusão Real
🌈 Ver e Reconhecer é Incluir
Falar sobre o autismo feminino é, acima de tudo, romper com o silêncio e com as distorções históricas que mantiveram tantas mulheres à margem do entendimento e da empatia. É reconhecer que há diferentes formas de ser, sentir e viver o mundo — e que todas elas são legítimas.
Durante anos, o modelo masculino de diagnóstico, comportamento e intervenção silenciou as vozes femininas no espectro. Isso não só dificultou o acesso a tratamentos adequados, como também feriu subjetividades, gerou sofrimento psíquico e invisibilizou talentos, histórias e identidades.
Por isso, incluir de verdade vai além de aceitar. Incluir é compreender. É respeitar os limites e valorizar as potências. É transformar os espaços sociais — escolas, universidades, locais de trabalho e instituições — em ambientes acolhedores para todas as formas de existência.
✨ O Caminho da Autenticidade
Mulheres autistas não precisam ser moldadas para caber em padrões neurotípicos. Elas precisam de liberdade para serem quem são, sem máscaras, sem medo, sem julgamento. Precisam ser vistas em sua totalidade — com seus silêncios, intensidades, singularidades e modos únicos de perceber o mundo.
A camuflagem, muitas vezes adotada por sobrevivência, deve dar lugar à autenticidade, ao conforto de ser aceita e compreendida em sua inteireza. Isso só é possível quando há conhecimento, empatia e políticas públicas comprometidas com a diversidade neurobiológica.
🤝 Um Compromisso Coletivo
Essa mudança de paradigma exige o envolvimento de toda a sociedade: educadores, profissionais de saúde, familiares, gestores públicos e a comunidade em geral. É preciso desmistificar o autismo, romper com os estereótipos e reconhecer que existem tantas formas de ser autista quanto de ser humano.
Ao visibilizar o autismo feminino, abrimos espaço para que essas mulheres deixem de apenas sobreviver e comecem, enfim, a viver com dignidade, liberdade e pertencimento.
8. Glossário
Este glossário reúne termos importantes utilizados ao longo do material, com o objetivo de facilitar a compreensão de conceitos fundamentais sobre o autismo feminino.
Autismo / Transtorno do Espectro Autista (TEA)
Condição do neurodesenvolvimento caracterizada por dificuldades na comunicação social, padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades. O espectro abrange diferentes níveis de suporte e manifestações variadas.
Camuflagem Social
Estratégia adotada, muitas vezes de forma inconsciente, por pessoas autistas (especialmente mulheres) para parecerem “neurotípicas”. Inclui imitação de comportamentos, expressão emocional mascarada e esforço constante para se adequar socialmente.
Diagnóstico Tardio
Termo utilizado quando o autismo é identificado apenas na adolescência ou idade adulta. É comum em mulheres, devido ao mascaramento dos sintomas ou à leitura equivocada dos sinais.
DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição)
Publicação da American Psychiatric Association que estabelece critérios diagnósticos para transtornos mentais, incluindo o TEA. O DSM-5 unificou diferentes subtipos de autismo em um único espectro.
Neurodiversidade
Conceito que reconhece as variações neurológicas humanas como parte da diversidade natural da espécie. Propõe que condições como autismo, TDAH e dislexia são formas legítimas de funcionamento cerebral — e não doenças a serem curadas.
Neurotípico
Pessoa cujo desenvolvimento neurológico segue padrões considerados “comuns” pela sociedade. Termo usado em contraste com “neurodivergente”.
Neurodivergente
Pessoa cujo funcionamento neurológico difere do padrão típico, incluindo autistas, pessoas com TDAH, dislexia, entre outros.
Sensibilidade Sensorial
Reação exacerbada (ou diminuída) a estímulos sensoriais como luz, som, toque, cheiro ou textura. É comum em pessoas autistas e pode afetar sua rotina e bem-estar.
Comorbidade
Presença de duas ou mais condições de saúde ao mesmo tempo. No caso do autismo, é comum que ocorram comorbidades como ansiedade, depressão, TDAH e transtornos alimentares.
9. Bibliografia
A seguir, apresentamos uma seleção de obras, artigos e publicações que embasaram e enriqueceram a construção deste material. A bibliografia contempla estudos científicos, livros de referência e fontes confiáveis que tratam do autismo, com especial atenção às especificidades do autismo feminino.
Livros:
- Attwood, Tony. O Guia Completo da Síndrome de Asperger. Artmed, 2010.
- Grandin, Temple; Scariano, Margaret M. Uma Menina Estranha: Autobiografia de Temple Grandin. ARX, 2006.
- Simone, Rudy. Aspergirls: Empowering Females with Asperger Syndrome. Jessica Kingsley Publishers, 2010.
- Singer, Judy. Neurodiversity: The Birth of an Idea. Judy Singer, 2016.
- Lai, M.-C., Lombardo, M. V., Auyeung, B., Chakrabarti, B., & Baron-Cohen, S. (2015). Sex/gender differences and autism: setting the scene for future research. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, 54(1), 11-24.
- Hull, L. et al. (2020). Development and validation of the Camouflaging Autistic Traits Questionnaire (CAT-Q). Journal of Autism and Developmental Disorders.
- Mandy, W., & Lai, M.-C. (2017). Towards sex- and gender-informed autism research. Autism, 21(6), 643–645.
- Bargiela, S., Steward, R., & Mandy, W. (2016). The experiences of late-diagnosed women with autism spectrum conditions: An investigation of the female autism phenotype. Journal of Autism and Developmental Disorders, 46(10), 3281–3294.
- Gould, J., & Ashton-Smith, J. (2011). Missed diagnosis or misdiagnosis? Girls and women on the autism spectrum. Good Autism Practice (GAP), 12(1), 34-41.
- Green, R. M., Travers, A. M., Howe, Y., & McDougle, C. J. (2019). Women and autism spectrum disorder: diagnosis and implications for treatment of adolescents and adults. Current Psychiatry Reports, 21(4), 22.
- Eaton, J. J. (2018). Autism in Heels: The Untold Story of a Female Life on the Spectrum. BenBella Books.
Artigos e Estudos Científicos:
- Lai, M.C., Lombardo, M.V., & Baron-Cohen, S. (2014). Autism. The Lancet, 383(9920), 896-910.
- Hiller, R. M., Young, R. L., & Weber, N. (2016). Sex differences in autism spectrum disorder based on DSM-5 criteria: Evidence from clinician and teacher reporting. Journal of Abnormal Child Psychology, 44(4), 675–683.
- Mandy, W., & Tchanturia, K. (2015). Do women with autism who have eating disorders differ from those with eating disorders alone?. European Eating Disorders Review, 23(6), 454–462.
- American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5).
Documentos Oficiais e Guias:
- American Psychiatric Association. DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição. Artmed, 2014.
- Organização Mundial da Saúde. Classificação Internacional de Doenças (CID-11).
Fontes Online e Materiais Complementares:
- Revista Autismo. https://www.revistaautismo.com.br
- Associação Brasileira de Autismo – ABRA. https://abraautismo.org.br
- TEA Brasil – Transtorno do Espectro Autista. https://teabrasil.org
Nota Final | Sobre a Autora
A construção deste material nasceu da vivência, da escuta e, sobretudo, da urgência de ampliar os olhares sobre o autismo feminino — esse campo ainda tão silenciado, invisibilizado e, por vezes, negligenciado. Ao longo destas páginas, buscamos lançar luz sobre trajetórias interrompidas pelo preconceito, diagnósticos tardios e falta de acolhimento, mas também sobre a potência e a pluralidade de meninas e mulheres autistas.
Agradeço imensamente a você, leitora ou leitor, que chegou até aqui. Ao dedicar seu tempo a este tema, você também contribui para uma sociedade mais justa, sensível e inclusiva. Que este material seja uma semente de reflexão, empatia e transformação.
Sobre a Autora
Andrea Dias é autista, educadora, psicanalista e especialista em Autismo e Neuroprocessos, além de apaixonada por inclusão. Mestranda em Educação, com foco na transição entre os segmentos educacionais com ênfase na inclusão, é especialista em Cidadania e Cultura (UNICAMP), Administração Escolar, Educação Especial (DI e TEA), Conselhos Escolares, Africanidades (UNB) e Psicanálise.
Possui graduação em Pedagogia e História, e atua como Neuropsicopedagoga, com formação abrangente em neuroaprendizagem e neurociências aplicadas à educação. Também é professora universitária autônoma em cursos de graduação e pós-graduação, palestrante, coordenadora e orientadora de cursinhos para concursos públicos.
Sua experiência inclui as funções de supervisora, diretora, vice-diretora, coordenadora pedagógica e docente na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC/SP). Atuou como responsável pelos anos iniciais e intermediários do Ensino Fundamental e pelo PNAIC na região de Itaquaquecetuba.
Viveu intensamente a realidade do Programa de Ensino Integral (PEI) e se dedica diariamente à formação docente, à escuta ativa de estudantes e à defesa intransigente da educação como direito de todos.