Alguns momentos de mudanças nos olhares etnográficos: um diálogo com Professor Doutor Jorge Carvalho.

Antônio Eustáquio Ferreira

Andressa Matos Ferreira

Detectada uma crise na epistemologia, sobretudo para antropólogos, no que diz respeito ao objeto de estudo da Antropologia. Façamos uma reflexão. Para tanto, nomeio o objeto de estudo da referida ciência, como “objeto/leitor”, uma vez que alguns elementos sempre considerados como objeto de estudo da antropologia agora têm voz, leem e produzem conhecimento. Também nomeei de “sujeitos/autores” aqueles que pensam ser os únicos produtores de conhecimento e imaginam habitar igualmente o único lugar de produção: o primeiro mundo. Contudo, Carvalho lança seu olhar etnográfico para o Brasil, lembrando um debate, no qual participou na Universidade de São Paulo, em 1994. Nos remete à percepção de que alguns objetos de estudo da antropologia puderam falar: no caso, os pais-de-santo, índios, capoeiristas, líderes sindicais, feministas se empenharam em “devolver o olhar de autoridade, do saber moderno e deslocado, da Europa e dos EUA para o Brasil” (p. 115). Lembraram um dado interessante sobre a “baixíssima presença” de negros e índios ou de seus descendentes diretos e, em geral, de estudantes das classes menos favorecidas da população brasileira, nos cursos de pós-graduação. Seria um desafio significativo entendermos aqui objetos estudando objetos. No entanto, Carvalho nos alerta sobre a questão. Nos ensina que o “lugar descentrado já não é mais ocupado por ninguém e o desafio colocado é o de como legitimar o saber acadêmico a partir dessa base comutativa de olhares”. Ora, um diálogo é constituído de emissor, receptor e mensagem, mas pressupõe uma discordância por parte do receptor e ainda do emissor, para compreensão e continuidade. Caso contrário, seria um monólogo. Até então os “sujeitos/autores” mantinham um monólogo com seus “objetos/leitores” – se é possível esse fenômeno. Carvalho exemplifica com o caso de George Marcus. Este, “ao mostrar as limitações críticas da proposta ensaística de Geertz”, não o “retira do lugar de ‘sujeito-suposto-saber’. Porque implicaria em retirar-se também. Em momento algum o “sujeito/autor” pode ser destronado de seu lugar, sobretudo em se tratando de discussão entre pares do mesmo espaço de poder. O que poderia ocorrer seria um prolongamento das ideias, ainda que com algumas resistências, que funcionariam mais como escoras das estacas que sustentam a base de tal lugar.

O que mais chama a atenção na narrativa de Jorge Carvalho e que nos ajuda a compreender as posições dos “sujeitos/autores” e “objetos/leitores” e suas possíveis falas, discutidas ao longo do texto, mas com outras denominações, foi seu contato com a agrônoma Noemi Porro, ocorrido em 1996 na Universidade da Flórida. Um diálogo sobre o trabalho desenvolvido pela pesquisadora em um assentamento de quebradeiras de coco de babaçu, de Olho D’água dos Grilos de Monte Alegre, no Maranhão. Seriam gravações de relatos de mulheres – sempre consideradas “objetos/leitores” de estudos – suas falas evidenciavam a luta por um espaço e exclusivamente para mulheres. Atentos a uma narrativa longa, identificaram, em alguns pontos, onde também quero me deter, que na fala de uma relatora havia indícios de seu posicionamento em um lugar de sujeito num período de tempo, sobre o qual apenas ela poderia falar. Denunciava a desconstrução do lugar privilegiado exclusivo dos “sujeitos/autores”. Noutro ponto, o autor explicita que se trata de um texto em português brasileiro e que “fala do mundo no ano de 2001, ao mesmo tempo que fala de 1970 e também 1870”. Portanto, agora seria um outro instrumento tendo voz, um texto dito subalterno e produzido por mulheres. A produção do “objeto/leitor” mediando o diálogo com o “sujeito/autor”. O Professor Jorge submeteu o texto a um exercício na Universidade de Brasília, no Departamento de Antropologia, com estudantes interessados na questão. Mas o que ele queria explicitar seria algo para reforçar o que venho expondo em relação à possibilidade da existência de uma fala do que nomeei de “objeto/leitor”, que estes estariam incomodando os “sujeitos/autores”. Carvalho ainda explicitou que: “Se falarmos como o colonizador – e eu o denomino como “sujeito/autor”, nos desterritorializamos e passamos a participar de uma comunidade internacional que é fantasiada como sem fronteira”. Uma armadilha para que os “objetos/leitores” não percebam e não consigam identificar os limites das fronteiras, que evidentemente já estão mais que claros, mas para quem? Porém, quando tais limites parecem não mais existir evidencia-se a complexidade para desconstrução de tais fronteiras e lugares, dissimulando e deixando os considerados “objetos/leitores” confusos com relação à sua localização, se dentro ou fora das fronteiras.

A globalização mundial, supostamente sem fronteiras, seria, num sentido: descentralizado, inclusive dos “sujeitos/autores”. Carvalho retoma a narrativa das mulheres quebradeiras de coco, na qual demonstra o simples ato de uma delas para fazer “falar” o “objeto/leitor”. Vale ser conhecida. Desta forma, finalizo e presenteio o leitor com o coque que ganhei:

“Assim, a mulher deu um coque na cabeça da juíza: tocou no juízo da juíza, mandou a juíza tomar juízo. Ao invés da arma de fogo, usada pelos homens para eliminar homens e mulheres e não os transformar em seres humanos melhores, a quebradeira de coco abriu o coco da mulher poderosa sem quebra-lo. Como o toque do polegar do mestre zen na cabeça do discípulo, que tanto fascinou a Victor Turner quando descreveu o toque do mestre de cerimônia do Chihamba na cabeça ‘os neófitos’ ndembu, houve ali uma abertura do terceiro olho, uma passagem a um plano superior da humanidade, que é o exercício da fraternidade, da solidariedade e da justiça. Foi esse o coque que recebi ao entrar em contato com esses relatos. Dou um coque em vocês que me leem (p.141)".