A UNIÃO ESTÁVEL DE BERTOLEZA E JOÃO ROMÃO EM “O CORTIÇO”

 

 

Raimundo Nascimento Gama[1]

 

 

RESUMO:

O presente trabalho tem por objetivo precípuo apresentar, dentre os vários conflitos narrados na obra “O cortiço”, de Aluísio de Azevedo, a situação das personagens João Romão e Bertoleza e as possíveis soluções, embasadas na legislação atual, posto que, embora os problemas apontados sejam fictícios e a obra tenha sido lançada em 1890 e a história tenha se desenrolado no século XIX, sem precisão de datas, os fatos ainda se apresentam atuais, ante o rigor científico que caracteriza o naturalismo, que tinha como método representar a realidade como forma de fazer uma crítica contundente e coerente de uma realidade corrompida, ante a mistura de raças composta de desvalidos. O Cortiço, como obra literária que é, não pode ser compreendido como documento histórico, mas não há como negar que as relações sociais ali representadas de modo fictício se faziam presentes na realidade brasileira. É dessa realidade que se vale o presente trabalho para tratar das possíveis soluções jurídicas do caso específico do casal, no que diz respeito à convivência e aos direitos de herança de João Romão a partir da morte de Bertoleza, destacando este dos demais problemas originados na convivência de pessoas de etnias várias, com culturas diferentes, aglutinados num mesmo espaço, com necessidades e objetivos diferentes umas das outras, ante a ineficiência do Estado em promover a Justiça, uma vez que o ranço e os efeitos maléficos da escravidão imperavam, e a palavra de quem tinha influência ou detinha poder valia mais do que a própria Lei.

PALAVRAS-CHAVE: Casamento; Concubinato; Herança; Trabalho; União estável.

1 INTRODUÇÃO

Nos idos de 1890, época de lançamento da obra “O cortiço”, de Aluísio de Azevedo, o país recém saído da Monarquia e engatinhando na República, concomitantemente com o fim da escravidão, apresentava um quadro social com desigualdades contundentes de tal forma que era possível e facilmente não tão somente identificar desvalidos e afortunados, mas, também, exploradores e explorados, haja vista que a cultura escravagista, apesar da sua extinção por força da Lei Áurea sancionada pela Princesa Isabel, a Redentora, ainda imperava e perduraria por muitos anos.

É nesse campo de controvérsias e conflitos que se alicerça o presente trabalho, buscando aqui apresentar um dos problemas narrados no romance como se realidade fosse, para que assim ganhem ares de cientificidade jurídica, objeto deste trabalho, e suas soluções no campo jurídico, posto que a obra se apresente a serviço de um argumento do autor na intenção de justificar sua tese de como o meio, a raça e a história determinam o homem, ou seja, torna-o produto do meio, e o levam à degenerescência, porquanto não há aqui o intuito nem vontade de deixar que a intenção do autor domine o trabalho, principalmente no que se refere à sua proposta de mostrar que a mistura de raças em um mesmo meio deságua na promiscuidade e na degradação humana, pois este não é o propósito desejado, mas sim encontrar na legislação vigente e em obras de doutrinadores, as soluções para alguns embates surgidos nos conflitos entre algumas personagens em face das suas relações sociais.

Busca-se, em verdade, extrair dos problemas apresentados na obra, aquele no quais se possa delinear soluções previstas no ordenamento jurídico brasileiro atual.

2 NARRADOR, TEMPO, ESPAÇO E ENREDO.

O Naturalismo, tendência marcante do Realismo, procurava direcionar a literatura a se integrar no grande movimento da ciência. Vale ressaltar que no século XIX houve um desenvolvimento científico sem precedentes e que o modelo de conhecimento proposto pela ciência gozou de prestígio notável.

A literatura realista procurava basear-se numa observação pormenorizada da realidade. O Naturalismo, além de observação minuciosa, esforçava-se em fundamentar-se num método científico, aplicando aquilo que o romancista Francês Émile Zola (1840-1902) chamava “documentos humanos”. O romance era visto como uma “experiência” em torno do comportamento individual e social.

Os naturalistas eram deterministas porque acreditavam que o comportamento humano fosse determinado por um triplo condicionamento: o condicionamento da raça (o fator biológico, genético), de meio (o fator social) e de momento (o fator histórico), que em verdade era a subordinação da vontade humana a um determinismo social, moral ou ideológico.

Num terreno fértil de infortúnios e miséria visíveis e verificáveis surge “O Cortiço”, obra narrada em terceira pessoa, com narrador onisciente, atendendo aos propósitos do movimento naturalista, e com poder absoluto na estrutura do romance, posto que o enunciador do discurso entra no pensamento das personagens, julga e tenta provar as influências do meio, etnias e do momento histórico, como se cientista fosse.

Em sintonia uníssona com a doutrina naturalista, Aluisio de Azevedo, considerado o iniciador do Naturalismo na literatura brasileira, relata a vida em uma habitação coletiva de pessoas pobres na cidade do Rio de Janeiro no século XIX, sem precisar datas, marcando com o rigor científico do método naturalista a representação da realidade, comparando-a a uma estrutura biológica, que cresce e se desenvolve, aumentando as forças daninhas e determinando o caráter moral de quem habita seu interior. Tal afirmativa pode ser confirmada na narrativa:

Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.  (AZEVEDO, 1997 p. 8)

Em princípio, o narrador busca manter imparcialidade, como que se apartasse, assemelhando-se a um deus, do mundo que ele criou, mas a sua conduta de representar a realidade de maneira objetiva denuncia uma posição ideologicamente tendenciosa, afastando sua pretensão inicial.

Dois são os espaços explorados na obra. O primeiro é o cortiço, representado pelo amontoado de casebres onde vivem os pobres, junto à pedreira e à taverna do português João Romão, espaço que o narrador define como a representação da mistura de raças e a promiscuidade das classes baixas. O segundo, ao lado do cortiço, é o sobrado do comerciante Miranda e de sua família, que representa a burguesia ascendente do século XIX. São espaços fictícios enquadrados no cenário do baixo Botafogo, explorando a exuberante natureza local como meio determinante.

A obra principia com a saga de João Romão, dono do cortiço, da taverna e da pedreira, em busca do enriquecimento, explorando empregados e se utilizando até do furto para conseguir atingir seus objetivos. João Romão tem ao seu lado sua amante, Bertoleza, que o ajuda de domingo a domingo, trabalhando sem descanso. Os moradores do cortiço são inquilinos de João Romão, trabalham em sua pedreira e fazem compras em sua taverna, o que significa que dele dependem para tudo, e que ele os explora ao máximo.

Embora vivesse com Bertoleza, escrava supostamente alforriada, João Romão, à medida que ia enriquecendo, pensava em se casar com Zulmira, filha de Miranda, a fim de adquirir melhor condição social.

Embora não tratado neste trabalho, há que se destacar um episódio importante do livro que é o aparecimento de Jerônimo e sua mulher Piedade no cortiço. Jerônimo, português “sério", conservador, apaixona-se por Rita Baiana, típica mulata sensual, namorada de Firmo, capoeirista morador de outro cortiço do Cabeça-de-gato. Os rivais se enfrentam sendo que Jerônimo é ferido com uma navalhada. Depois, arma uma emboscada e assassina Firmo.

Há, também, um confronto entre o Cabeça-de-gato e o cortiço de João Romão, sendo que neste confronto um incêndio é provocado e fica claro, no final do livro, que a destruição gerada só trará melhorias e prosperidade ao cortiço de João Romão, agora mais próximo de Zulmira e livre de Bertoleza.

João Romão que passou por privações para enriquecer, quando viu o seu vizinho recebeu o título de barão, entendeu que não bastava ter dinheiro, era preciso, também, ter uma posição social reconhecida, freqüentar ambientes requintados, usar roupas finas, adquirir cultura, participar ativamente da vida burguesa. São narrativas que evidenciam a inveja de João Romão do seu vizinho Miranda, o comerciante português com quem travou disputa acirrada por conta de uma braça de terra que este último desejava comprar-lhe para aumentar o seu quintal.

A rivalidade entre João Romão e o seu vizinho Miranda, morador do sobrado próximo do cortiço de João Romão, evidencia que a história tem como personagens não pessoas humanas, mas tipos sociais. João Romão representa a ganância, a inveja e a vontade de vencer na vida a qualquer custo, vendo em Miranda a imagem do homem bem-sucedido, que ao mesmo tempo o incomoda e desafia.

O caráter determinista da historia tem como símbolo a personagem Pombinha, moça "pura" e de boa conduta moral, que, por ser fruto daquele meio sórdido e animalesco, acaba se prostituindo.

Assim, sucintamente, a obra de Aluísio de Azevedo é aqui apresentada, extraindo-se dela a história de João Romão e Bertoleza para ser estudada e solucionada à luz do nosso ordenamento jurídico atual, em que pese o tempo decorrido até aqui, mas considerando a atualidade dos problemas relatados em “O Cortiço”, onde o autor é realista devido à sua corrente literária, chegando a ser técnico e cientifico no que faz, não descrevendo, por exemplo, seus personagens com emoção, mas que consegue trazer à sua obra clareza, precisão, e coerência utilizando uma linguagem rebuscada, necessária para que o livro caísse nas graças dos leitores nobres de sua época.

3 OS CONFLITOS EM “O CORTIÇO”

Dentre os vários conflitos apresentados em “O Cortiço”, neste trabalho será tratado o caso de Bertoleza, explorada por João Romão, seu amante, que após conseguir o que queria, ludibriando a companheira com documentos falsos que atestavam sua alforria, posto que ela fosse escrava, buscou livrar-se dela para se casar com Zulmira, a filha do comerciante Miranda.

3.1 O CASO BERTOLEZA E JOÃO ROMÃO

Quitandeira e vizinha de João Romão, Bertoleza perdeu seu companheiro quando este trabalhava duramente. Escrava, que pagava de jornal[2] ao seu dono a quantia de vinte mil réis (20$000) com o lucro que obtinha com a venda de seus quitutes, tornou-se confidente de João Romão, depositando-lhe tamanha confiança ao ponto de entregar-lhe suas economias, com as quais pretendia pagar sua alforria, para que ele as guardasse. A confiança depositada em João Romão e a maneira como este se “avizinhava” de Bertoleza pode ser entendida na informação de Azevedo:

 Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.

E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão.

Quando deram fé estavam amigados. (AZEVEDO, 1997 p. 1)

Bertoleza, analfabeta, de boa índole e de boa fé, não se apercebeu da armação feita por João Romão, seu novo companheiro, quando este lhe disse que havia comprado a sua alforria. Aproveitando-se do fato de o dono de Bertoleza ser cego e velho, acreditava, não iria ele, o velho cego, à procura da escrava e, porquanto, não haveria o que temer, portanto os arranjos feitos com documentos falsos não representariam perigo algum, fato que sua companheira desconhecia. Entretanto João Romão somente se viu tranqüilo após a morte do velho cego, pois acreditava que seus herdeiros jamais se dariam ao trabalho de procurar a escrava, como se vê no seguinte trecho:

Não obstante, só ficou tranqüilo de todo daí a três meses, quando lhe constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois pândegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela parte. “Ora! bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto tempo!” (AZEVEDO, 1997 p. 2)

Prova da labuta árdua de Bertoleza e da convivência em regime de união estável é apresentada por Azevedo:

Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo o mês de alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado. (AZEVEDO, 1997 p. 2)

O resultado dessa união foi o acúmulo de riquezas por João Romão, com a máxima ajuda de Bertoleza, que trabalhava com afinco e sem descanso, de domingo a domingo.  O pagamento por tanto trabalho e tanta dedicação João Romão fez-lhe com a traição, delatando-a aos antigos senhores, herdeiros do velho cego. Traída por João Romão, Bertoleza, ao ser ameaçada de voltar ao cativeiro, suicida-se com uma faca de cozinha. Assim resume-se a saga de Bertoleza.

3.1.1 O CASO BERTOLEZA À LUZ DO DIREITO CIVIL ATUAL

Desconsideremos aqui o fato de Bertoleza ser escrava, porquanto sem direito a propriedades, posto que a Lei 2.040/1871 (Lei do Ventre Livre) reconhecia como patrimônio de escravos apenas pecúlios formados de acordo com art. 4º e seu § 1º, que assim determinava:

Art. 4.º - É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O govêrno providenciará nos regulamentos sôbre a colocação e segurança do mesmo pecúlio.

§ 1.º - Por morte do escravo, a metade do seu pecúlio pertencerá ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmitirá aos seus herdeiros, na forma da lei civil. Na falta de herdeiros o pecúlio será adjudicado ao fundo de emancipação, de que trata o art. 3.º

Como se vê na obra de Aluisio de Azevedo, Bertoleza era “amigada” com João Romão, porquanto a união deles não era reconhecida, à época, uma vez que somente o casamento realizado pela Igreja Católica tinha valia. O casamento, uma vez consumado, era indissolúvel enquanto vivos fossem os cônjuges, sendo que somente a viuvez o dissolveria.

Em que pese o fato de João Romão ser solteiro, porquanto livre para casar-se com quem bem quisesse, inclusive com Bertoleza, a hoje designada união estável, por força da Lei nº 9.278/96, não era reconhecida à época, sendo o amasio considerado como situação irregular do casal, era o “viver em pecado” [3], pois não tinha o casal as bênçãos da igreja católica, porquanto não cabia qualquer obrigação de amparo ou divisão patrimonial entre os conviventes.

O art. 226, § 3º, da Constituição Federal trata do reconhecimento da união estável:

Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

À luz do Direito Civil vigente, Bertoleza mantinha união estável com João Romão, conforme prescreve a Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, regulando o § 3º do art. 226 da Constituição Federal:

Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.

O documento legal retro mencionado preceitua em seu art. 2º deveres e direitos comuns aos conviventes, tais como: respeito e consideração mútuos; assistência moral e material recíproca; guarda, sustento e educação dos filhos comuns.

Diferentemente do concubinato, a união estável tem proteção legal do Estado, e nesse sentido o STF é taxativo:

“Companheira e concubina. Distinção. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. (...) A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. (...) A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina.” (RE 590.779, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10-2-2009, Primeira Turma, DJE de 27-3-2009.).

 Verifica-se, ainda, que Lei da União Estável (9.278/96) assemelha-se, para fins de regime patrimonial, ao casamento em regime de comunhão parcial de bens, como bem se vê em seu art. 5º:

Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.

Ainda sobre a união estável, como fonte elucidativa:

União de fato, lícita e permanente entre homem e mulher, ou vida em comum, sem casamento, entre homem e mulher desimpedidos para contrair matrimonio. Desde a CF de 1988, a união estável vem sendo reconhecida como lícita pela lei, na qualidade de família de fato (CF: art. 226, § 3º). Tratam da matéria os arts. 1.723 a 1.727 do CC: “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.§ 2o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável. Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos. Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil. Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.”(...). (ACQUAVIVA in Dicionário Jurídico Acquaviva, 2008 p. 842)

Excetua-se no §1º do art. 5º da Lei nº 9.278/96 tão somente o caso de aquisição de bens com produto de bens adquiridos antes do início da união estável, porém, segundo “O Cortiço”, verifica-se que tanto João Romão quanto Bertoleza tinham muito pouco ou quase nada antes do início da união de ambos e que o patrimônio foi acumulado na constância da convivência, portanto, o patrimônio pertence ao casal. Assim sendo, caso houvesse dissolução da união estável do casal, à luz da legislação vigente, o patrimônio seria dividido entre ambos. Coadunando com esta afirmação temos que:

(...) Quanto à relação patrimonial na união estável, adverte o art. 1.725 que a ela aplica-se, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens (CC: arts. 1.658 a 1.666), a menos que haja contrato escrito dispondo de forma diversa. Quanto ao concubinato, que denominava, anteriormente, a união de fato, passa a ser considerado união ilícita, em face de os concubinos estarem impedidos de contrair matrimonio (CC: art. 1.727), seja porque um deles, ou ambos, já sejam casados (concubinato adulterino), ou porque o impedimento decorre de parentesco próximo entre os concubinos (concubinato incestuoso). A legislação referente à matéria anterior ao CC (L. 9.278, de 10.5.1996) continua, ao nosso ver, em vigor, podendo ser aplicada quando o CC for omisso e referida legislação não conflitar com os dispositivos deste, v. g., o art. 9º da própria L. 9.278, que determina ser competência do Juízo da Vara de Família, assegurado o segredo de justiça, qualquer matéria relativa à união estável. (ACQUAVIVA in Dicionário Jurídico Acquaviva, 2008 p. 842)

No caso em tela, com a morte de Bertoleza, João Romão tornou-se seu único herdeiro, posto que sua companheira não tivesse herdeiros, conforme preceitua o art. 1.790 e seu inciso IV, do Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

O dispositivo legal acima sofreu críticas de Zeno Veloso, no que diz respeito à sua localização e, também, no que diz respeito à sucessão entre companheiros:

  • Este artigo está mal localizado, pois integra o capítulo das Disposições Gerais da sucessão geral, e de disposições gerais não trata, como se conclui à simples leitura do dispositivo. Ele regula a sucessão decorrente da união estável, e devia estar no Título II – Da Sucessão Legítima, Capítulo I – Da Ordem da Vocação Hereditária.
  • Além disso, o art. 1.790 do Código Civil modifica completamente a sucessão entre companheiros, se comparado com a legislação até então em vigor – Leis nº 8.791/94 e 9.278/96 –, e não havia razão para mudança de atitude tão radical do legislador.
    • As famílias constituídas pelo afeto, pela convivência, são merecedoras do mesmo respeito e tratamento dados às famílias matrimonializadas. A discriminação entre elas ofende, inclusive, fundamentos constitucionais.
  • O companheiro e a companheira ficam em situação de extrema inferioridade, quanto á sucessão, diante do marido e da mulher. Note-se que a herança que pode caber ao companheiro sobrevivente é limitada aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, o que representa uma restrição de calado profundo. (VELOSO in Novo Código Civil Comentado, 2006, p. 1485)

Resta aqui verificado que a situação de Bertoleza está prevista no art. 1.790, IV, CCB, pois esta não tinha herdeiros, fato que habilita João Romão como único herdeiro dos bens pertencentes ao casal, os quais foram adquiridos na constância da convivência.

Verifica-se, também, o fato de João Romão ter delatado Bertoleza aos seus antigos senhores, levando-a ao suicídio. O fato de o herdeiro ter se utilizado de meios ardilosos para se livrar de Bertoleza, não o torna indigno de ser seu sucessor, isto porque, embora ele não pudesse prever o desfecho final e tinha consciência do sofrimento que infligiria à sua companheira, os casos de exclusão de herdeiro e legatário previstos no art. 1.814, caput e incisos I a III, CCB, não o atingem, conforme se constata no texto legal:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.

 A sanção imposta pelo texto ut supra é civil, independente de qualquer outra do Direito Penal, e fica dentro dos limites estabelecidos no art. 1.814, caput e incisos I a III, CCB, que, embora não deva a interpretação ser escrava à letra da norma, não pode o tema condoer-se com analogias e ampliações tais que fujam aos princípios ali estabelecidos, sob pena de banalização da lei e possibilidade de gerar dubiez dependente da maré de interesses e da interpretação discricionária.

Para que a sanção fosse imposta a João Romão necessário seria que se buscasse em juízo apresentar provas contundentes e irrefutáveis da sua indignidade para com Bertoleza, e, ainda, constatar se a sua atitude foi, de fato, condenável, posto que, embora ardilosamente e com um propósito definido, agiu dentro da Lei de sua época. Mesmo desconsiderando tais fatos, há que se verificar, entretanto, que não cabe enquadramento nos limites do art. 1.814, caput e incisos I a III, CCB, nenhum dos atos praticados por João Romão que o impeçam de habilitar-se como único herdeiro de Bertoleza, posto que a atitude de João Romão não se constituiu nenhum crime ou ato desabonador ante os olhos da justiça, e neste sentido a Constituição Federal, em seu art. 5º, é clara:

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Pode-se, entretanto, do ponto de vista ético e moral, repudiar a conduta de João Romão, mas não atribuir a este qualquer antijuridicidade que o impeça de tornar-se herdeiro de Beroleza.

4 CONCLUSÃO

A obra de Aluisio de Azevedo traz vários exemplos de conflitos surgidos com o aparecimento do cortiço, a partir da reunião de pessoas várias, com culturas e objetivos diferentes e divergentes entre si. É rica em detalhamento de situações diversas de suas personagens, cujos problemas serão sempre atuais enquanto a miséria permear as relações sociais.

Conflitos não aparecem de repente, não surgem do nada, são processos construídos pelas partes envolvidas numa relação social, cabendo ao Direito, quando provocado, a solução daqueles que por si só não se resolvem, na mais justa medida possível.

O enfoque do presente trabalho foi direcionado à questão da união estável existente entre Bertoleza e João Romão e ao direito de sucessão deste, observados os preceitos legais vigentes, posto que a sua companheira morreu sem deixar herdeiros.

A união estável, considerada como entidade familiar e reconhecida pela Constituição Federal de 1988 como tal, recebendo proteção do Estado, é uma opção de composição familiar adotada por muitas pessoas e existe há muito tempo em nossa sociedade, porém antes era discriminada por que não atendia ao requisito básico para a composição da família que era o casamento. Assim sendo, desmerecia qualquer proteção do Estado, sendo negado aos conviventes em tal situação qualquer direito que cabia aos casados, pois tal tipo de relacionamento era considerado proibido, contrário à lei e à moral.

Percebe-se que a união estável tem o significado de relacionamento entre homem e mulher sem o vínculo jurídico do matrimonio, e que a formação de uma sociedade conjugal independe de normas pré-estabelecidas, bastando existir o interesse de foro íntimo, inerente e respeitante ao casal.

A proteção do Estado surgiu a partir dos anseios sociais, com a Constituição Federal de 1988, regulando a situação existente e fundamentada em elos de afetividade e informalidade entre homem e mulher, tendo a lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, de forma sucinta, tratado especificamente dos direitos dos companheiros em relação aos alimentos (art. 1º), sucessão hereditária (art. 2º) e meação (art. 3º), exigindo, como pré-requisito para tal reconhecimento, o prazo mínimo de cinco anos, se o casal não tivesse filhos antes desse prazo. Este mesmo documento legal previa a meação dos bens adquiridos pelo esforço comum do casal, porém após a morte do companheiro, significando dizer uma meação post-mortem, omitindo os casos de dissolução da sociedade. A Lei 9.278/96 teve maior amplitude no que diz respeito à sucessão hereditária, corrigindo falhas da Lei anterior, tendo ambas as leis seus pontos principais sintetizados no Novo Código Civil, instituído pela Lei 10.406/02.

O art. 1.725 do Código Civil preceitua que o regime de bens dos companheiros será o regime legal, ou seja, regime da comunhão parcial de bens, salvo se as partes firmarem contrato de modo diverso. Assim, existem direitos sobre os bens adquiridos por mútua colaboração, do mesmo modo que o regime de bens cessa quando finda a sociedade conjugal, seja pela ruptura da sociedade ou pela morte. Havendo rompimento da união, caberá o direito de meação sobre os bens comuns.

Se assim o é, no caso de Bertoleza e João Romão, este herdará o patrimônio da companheira na sua totalidade, posto que assim esteja em consonância com o art. 1.790, IV, do Código Civil.

5 REFÊRENCIAS

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola, 2005.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucema, 1999.

BRASIL. Código Civil Brasileiro. disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm. acesso em 16/09/2010, às 15:00 h

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. acesso em 16/09/2010, às 15:00h.

BRASIL. Novo Código Civil comentado. Coordenação Ricardo Fiúza. – 5. ed. atual. – São Paulo: Saraiva, 2006.

BRASIL. Vade Mecum. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes – 7. ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2009.

Dicionário Eletrônico Houaiss. Versão monousuário 3.0 – junho 2009. Copyright Ó 2001..2009. Instituto Antonio Houaiss.

Dicionário jurídico Acquaviva. Organização Marcus Cláudio Acquaviva. – 2. ed. – São Paulo: Riddel, 2008.

LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. – 6. ed. – São Paulo: Atlas, 2001.

SANTOS, José Wilson dos, BARROSO, Russel Marcos Batista. Manual dos trabalhos acadêmicos: artigos, ensaios, fichamentos, relatórios, resumos e resenhas. – Aracaju: Sercore, 2007.



[1] Graduado em Letras Vernáculas, Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB – Campus XXII, Euclides da Cunha – Bahia e Acadêmico do Curso de Bacharelado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES, Paripiranga - Bahia.

[2] Gíria que designava o pagamento por dia de trabalho pelos escravos aos seus donos, cuja legalidade encontrava amparo no art. 4º da Lei nº 2.040, de 28/09/1871 (Lei do Ventre Livre).

[3] Termo comumente empregado, à época, para assim designar as relações entre homens e mulheres que não casados na Igreja Católica.