A posição da Ordem dos Advogados do Brasil em relação à Administração Pública, segundo o STF

Os Conselhos Profissionais começaram a ser criados quando da ascensão de  Getúlio Vargas à presidência, com a Revolução de 1930, iniciando-se com a Ordem dos Advogados do Brasil (instituída pelo decreto nº 19.408, de 18 de novembro de 1930), que teve, como primeiro presidente, Levi Carneiro, um dos constituintes mais ativos na Assembléia que elaborou a Constituição de 1934. Desde a origem, a posição dos órgãos de classe em relação ao Estado tem apresentado um movimento pendular, oscilando entre o enquadramento ora como pessoas jurídicas de direito privado não estatais, ora como pessoas jurídicas de direito público, integrantes da Administração Pública federal.

As Constituições de 1937, 1946 e 1967 autorizavam as associações profissionais a exercerem funções delegadas pelo Poder Público, em especial no âmbito do Ministério do Trabalho. A Constituição de 1988, ao disciplinar o tema não trouxe, em seu texto, definição quanto à posição dos órgãos de classe, pois se limitou a fixar, em seu art. 21, XXIV, que a fiscalização do trabalho era da competência da União, não fazendo qualquer menção sobre a possibilidade de delegação a pessoas jurídicas de direito privado.

As decisões do Tribunal de Contas da União e do Poder Judiciário resolveram a controvérsia, assentando que, como eram dotados de poder de polícia, todos os Conselhos deveriam ser enquadrados como autarquias, integrantes da Administração Pública federal indireta. Em conseqüência, estariam submetidos à fiscalização dos órgãos de controle e deveriam observar as regras do direito público, como a necessidade de licitação, para contratação de serviços, e a necessidade de concurso público, para a contratação de pessoal.   

A Ordem dos Advogados do Brasil, no entanto, refutava esta concepção, defendendo que não integrava a administração pública. A questão foi levada ao  Supremo Tribunal Federal, pelo Procurador Geral da República, que argüiu a inconstitucionalidade da última parte do § 1º, art. 79, da Lei 8.906/94. A referida norma assegurava aos empregados da OAB o direito de opção entre o regime celetista e o regime estatutário fixado pela Lei 8.112/90, e, aos que aderissem a primeira opção, teriam direito a uma indenização por ocasião da aposentadoria. Para o PGR, esta disposição contrariava a moralidade pública, e a OAB, sendo uma autarquia,  estava adstrita aos princípios da administração pública, inclusive o do concurso público. O litígio foi julgado em 08.06.2006, na ADI 3.026/DF, tendo por Relator o Ministro Eros Grau.

            O Relator, em seu voto, considerou que a Constituição atribuiu à Ordem dos Advogados do Brasil, prerrogativas que as diferenciavam dos demais Conselhos Profissionais, cujas funções estavam limitadas a finalidades corporativas e de fiscalização profissional. Primeiro, por ser a OAB dotada, em conformidade com o inciso VIII, art. 103, CF/88, da competência para atuar diretamente no controle de constitucionalidade. Segundo, por ser responsável pela regulamentação da atividade profissional dos advogados, considerados como função essencial à promoção da justiça.

            Em face desta configuração, o Relator considerou que a OAB era uma entidade ímpar, em nosso direito, diferente das demais autarquias, como destacado em seu voto: 

Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. A OAB não é uma entidade da administração indireta da Administração Pública. A ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como “autarquias especiais” para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas agências.

 

Para o Relator, por ser, a OAB, dotada de prerrogativas diferenciadas, ela não se enquadraria no rol de entes integrantes da Administração Pública, inexistindo, também, qualquer vinculação a órgãos públicos, como destacado em seu voto: 

 

Por não consubstanciar uma entidade da administração indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer de suas partes está veiculada. Essa não vinculação é formal e materialmente necessária.

            A posição defendida pelo Relator geraria várias conseqüências relevantes, dentro do direito administrativo. Primeiro, porque teríamos uma pessoa jurídica de direito privado não integrante, direta ou indiretamente, da administração pública, mas dotada de poder de polícia, ou seja, exercendo uma atividade típica de Estado. Segundo, porque, ao ser totalmente independente, não ostentando qualquer vínculo com o setor público, a OAB não estaria sujeita à supervisão ministerial e à fiscalização dos órgãos de controle, em especial, o controle contábil, financeiro e orçamentário operacional e patrimonial exercido pelo Tribunal de Contas da União.

            Terceiro, porque não estaria obrigada a promover licitação para suas contratações. Quarto, porque seus empregados estariam sujeitos à CLT, e não ao regime estatutário, assim como, não haveria a obrigação de promover concurso público para a seleção de seus funcionários.    

A Corte seguiu o voto do Relator, entendendo que a OAB estava submetida a um regime especial, diferente inclusive dos demais Conselhos Profissionais. Para os demais Ministros, tratava-se de uma entidade ímpar, “sui generis”, um “serviço público independente não passível de enquadramento em nenhuma categoria regular prevista em nosso ordenamento, nem integrante da Administração Pública Indireta da União”.

            Uma questão controversa residia nas anuidades pagas pelos advogados, cujo entendimento corrente fixava que elas possuíam natureza tributária, o que configuraria ser a OAB custeada com recursos públicos. A Corte, no entanto, entendeu que as anuidades pagas pelos advogados não tem natureza tributária, sendo que o título executivo extrajudicial previsto no artigo 46, § único, Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) se submete ao processo de execução comum, regulado pelo CPC, não se lhe aplicando a Lei 6.830/80, que rege o processo de execução fiscal.

Ao final, o acórdão trouxe a seguinte ementa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. §1º DO ARTIGO 79 DA LEI N. 8.906, 2ª PARTE. SERVIDORES DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. PRECEITO QUE POSSIBILITA A OPÇÃO PELO REGIME CELETISTA. IMPOSIÇÃO DOS DITAMES INERENTES À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA. CONCURSO PÚBLICO (ART. 37, II, CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). INEXIGÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO PARA A ADMISSÃO DOS CONTRATADOS PELA OAB. AUTARQUIAS ESPECIAIS E AGÊNCIAS. CARÁTER JURÍDICAO DA OAB. ENTIDADE PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO INDEPENDENTE. CATEGORIA ÍMPAR NO ELENCO DAS PERSONALIDADES JURÍDICAS EXISTENTES NO DIREITO BRASILEIRO. AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DA ENTIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 37, CAPUT, DA  CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. NÃO OCORRÊNCIA.

  1. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer de suas partes está vinculada. Esta não vinculação é formal, e materialmente necessária. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional.     

            Com esta decisão, para muitos polêmica, o STF institui uma cisão entre os Conselhos de Fiscalização Profissional. De um lado, a OAB, posicionada totalmente fora e sem qualquer vinculação à administração pública. De outro, todos os demais conselhos, mantidos como equiparados a autarquias federais, submetidos ao regime jurídico público e colocados sob a fiscalização do Tribunal de Contas da União. Em síntese, pessoas jurídicas congêneres, mas submetidas a regras muito diferenciadas.