Pesquisas e evidências detectadas recentemente apontam o aparente súbito e expansivo interesse que as pessoas estão demonstrando pela figura dos anjos. Uma pesquisa realizada no Brasil em 1992, pela Agência Saldiva & Associados, mostrou que 91% das pessoas entrevistadas acreditam em anjos da guarda. Nesses quase dez anos que se passaram, o que se viu foi a incidência do tema apresentado em várias narrativas, da literatura às novelas, seriados de tevê e verdadeiros sucessos mundiais de filmes de longa metragem.

Mas afinal, o que pode responder por essa crescente busca do transcendental em nosso mundo de hoje?Seria essa procura a significação de um mundo em crise, com todos os seus valores e crenças em questionamento? Representaria esse fenômeno um renascimento do pensamento mágico em contrapartida ao colapso ideológico, político e econômico mundial?Identificaria essa tendência a sinalização de que a humanidade despertou para as evidências da dimensão espiritual da existência traduzida por Sócrates? Estaríamos, tanto quanto nossos antepassados, buscando respostasno imaginário mitológico para tentar solucionar as assimetrias de um mundo por demais paradoxal, agressivo e conflitante?

O interesse das pessoas pelofenômeno, evidenciadopela pesquisa, não significa uma tendência à novidade sobre o assunto ou mesmo um ressurgimento desse mito. Pode estar assinalando a presença de signos invariantes nasmais diversas crenças religiosas, que teriam nelesuma identidade comum e permanente.

É bem verdade que cientificamente não se pode provar a existência ou a inexistência de anjos e outros seres de natureza espiritual. Pode-se, porém, supor que o aparente resgate atual da figura angélica no imaginário humano tenha a significação da permanência de inúmeras experiências filosófico-religiosas do passado da humanidade. Referências à interferênciados anjos são encontradas nos mais antigos textos mitológicos e religiosos. É nessa concepção que se apoiam todos os mitos e todas as religiões. Algumas revelaçõesangélicas constituem marco para fundação de religiões. Toda a história do Cristianismo foi pontuada por fenômenos considerados mágicos antes mesmo do nascimento de Jesus, anunciado a José pelo Anjo Gabriel, que vai registrar a mais histórica das confirmações de gravidez que o mundo teve notícia.

A fé popular banalizou a figura desses seres, transformando-os em serviçais sempre disponíveis às menores necessidades ou caprichos humanos. Mas essa singular característica de mensageiros divinos os diferencia de outros seres de naturezaespiritual e que podem serinvocados em outras crenças religiosas. Há, portanto, a evidência de uma hierarquia espiritual presente no mito.

Os mitos estão presentes em todas as configurações religiosas e se mantêm diacronicamente em todas as culturas, atendendo aos mesmos objetivos de superação da assimetria imposta pela realidade. A codificação da mensagem religiosa tem sua primeira identificação com esse signo cultural.

Identificar esses elementos mágicos mantidos pelo imaginário, estabelecer uma possível identificação de signos invariantes que possam estar presentes nas mais diversas manifestações religiosas, é o que proponho. Analisar alguns textos escolhidos entre as seitas religiosas midiatizadas de hoje, os textos apostólicos de ontem, buscando ainda encontrar correlações desses signos naspráticas xamanísticas. Quem sabe, encontrar nesses signos possíveis responsabilidades pela preservação- e aparente vivificação - do mito na atualidade midiatizada de hoje.

O MITO NA TV

É madrugada; hora em que amigos, consultórios médicos e igrejas não estão disponíveis. É hora também em que as dores da almaestão mais exacerbadas, a angústia e a solidão assumem dimensões quase que insuportáveis. O simples sintonizar da TV pode significar um providencial auxílio terapêutico e a minimização dos sintomas da dor existencial.

Sintonizados à Igreja Universal do Reino de Deus pela Rede Record, somos colocados em contato com milhares de pessoas que se aglomeram em um imenso auditório. Juntos, assistimos a mais um espetáculo religioso midiatizado eletronicamente. O apresentador - invariavelmente de muito boa aparência e com bom domínio de oratória - interpreta um texto bíblico. O auge da sua explanação serámarcado pela propagação de um estado de excitação coletiva. Nesse momento, quase todos os presentes, contaminados pela fé, estarão sendo libertados de todos os males espirituais que os afligeme que os conduziram até ali. O líder espiritual estará reafirmando nessa hora a credibilidade no seu papel de privilegiado intermediário entre o Bem e o Mal- um eficiente elo entre o mundo físico e o metafísico. Pela imposição das suas mãos, invocações e imprecações ao mundo espiritual, ordenará - em nome de Deus - que os espíritos abandonem os possuídos, promovendo curas. Alguns dos telespectadores poderão ter- se sentido contaminados por essa ação midiatizada da fé.

Mas este não será o único programa religioso que se manifesta através da mídia atualmente e queprocurareafirmar suas verdades no encalço denovos adeptos, utilizando-se de recursos de alto poder simbólico.

Há poucos anos[1] atrás se podia sintonizar à Rede Mulher e assistir outro programa de caráter religioso que apresentava, inusitadamente, a figura de certo padre vidente, também durante a madrugada, que, sob a assinatura de uma certa "Igreja Católica das Missões", estaria fazendo previsões, curase orações em benefício dos telespectadores. Interpretaria, à luz da sua proclamada paranormalidade, alguns casos enviados ao programa através de cartas.. Um copo d'água -que deveriaser duplicado na casados telespectadores- servirá de veículo para queo padre videntefaça sua intervenção no mundo dos espíritos e promova curas.Antes porém terá lido cartas que lhe reafirmarão a credibilidade.

Os testemunhos emitidos pelas cartas veicularão a credibilidade emprestada àquela seita e àquele mediador entre o telespectador que sofre e as forças espirituais causadoras do desequilíbrio. Nesse contexto também estará explícitoque a dor sentida é conseqüência da falha dequem sofre tendo como causa seu mau proceder ou a sua ignorância das verdades contidas naquela religião.

Como nos demais e ortodoxos textos religiosos, a conversão de novos adeptos, os quais passarão a adotar um novo código de referências religiosas, implicará na subseqüentenegação de valores e crenças anteriores.

Tentativas de convencimentos, símbolos de significados transcendentes, testemunhos e liderança carismáticasão alguns dos signos identificados nesse texto.

3. O MITO NO NOVO TESTAMENTO

Estamos em Jerusalém e é o dia da comemoração judaica de Petencostes que serealiza50 dias após a Páscoa. Oano é o mesmo da crucificação do Cristo e são nove horas da manhã.Cento e vinte homens estão reunidos em um templo religioso. O fenômeno relatado por Lucas em Atos dos Apóstolos marca o início da propagação do cristianismo.

Repentinamente aqueles homens ali reunidos serão surpreendidos e lhes cairá do céu um ruído, como de um vento impetuoso, que encherá toda a casa onde estão sentados. E lhes aparecerãoumas como línguas de fogo, as quais distribuir-se-ão , para pousaremsobre cada um dos presentes. Nesse instantetodos ficarão cheios do Espírito Santo e começarão a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem." O apóstolo Lucas registra que quando o ruído foi ouvido, ajuntou-se ali uma expressiva multidão "testemunha" de um acontecimento sem precedentes: todos falavam em muitas línguas, através do fenômenoconhecido comoxenoglassia. Perplexos, perguntavam-se uns aos outros: o que queria aquilo dizer?

Pedro, o líder espiritual daquela comunidade, argumentará que o fenômeno presenciado por todos não poderia ser atribuído a uma possível embriaguez dos seus discípulos, porque "ainda é a hora terceira do dia".

Os registros de Lucas informam que "os que receberama palavra foram batizados, e foram admitidas naquele dia quase três mil pessoas;e perseveraram na doutrina dos Apóstolos,na comunhão, no partir do pão e nas orações." Refere-se ainda sobre a disposição dos bens dos admitidos, que eram repartidos na comuna e distribuídos conforme a necessidade de cada um: "E todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum, e vendiam as suas propriedades e bens e os repartiam por todos, conforme a necessidade de cada um.".

Após o discurso de Pedro, reafirmando sua liderança, interpretando e justificando o fenômeno ocorrido, relata Lucas, houve a conversão de cerca de três mil novos adeptosà recém criada comunidade cristã. Pedro os orienta, nessa ocasião, serpreciso que passem por um ritual de iniciação, despojando-se de suas antiga crenças, para quepossam ingressar em um novo código religioso. Antes porém, há a necessidade de quese arrependam do passado, recebam o batismo, como símbolo das promessas do futuro- daqueles imbuídos de autoridade para procederem tal cerimônia - para que sejam considerados preparados parareceberemodom do Espírito Santo. A partir da adoção de uma nova fé, estariamtransformados então em novas criaturas, no falar, no agir eno modo de viver. Esperava-se dessa conversão aconquista e o posterior testemunho das virtudes cristãs de abnegação, humildade, bondade, desapego, amor ao próximo e cumplicidade.

Uma análise semiótica dos relatos de Lucas em Atos dos Apóstolos mostrar-nos-áoutras significações do testemunho para a conversão de novos adeptos. A própriaconversão de Paulo na estrada de Damasco - quando convocado pelo próprio Cristo ao apostolado cristão- dever-se-á toda a propagação do cristianismo em terras estrangeiras. Será Pauloo fundador e o ordenadorde todas as igrejas cristãs nascentes. Um judeu que transitará da sua cultura religiosa e adotará integralmentea crença cristã. De perseguidor dos cristãos, transformar-se-á em um dos mais importantes apóstolos do cristianismo, pelo qual morrerá crucificado. Também será ele mediador e realizador de prodígios que converterão mais e mais novos adeptos. E utilizará o recurso da palavra, na organização das novas comunidades cristãs, imprimindo-lhesunidade doutrináriae princípios éticos de conduta, através de suas epístolas.

AS ASSIMETRIAS DO MUNDO GERANDO AS CONCEPÇÕES MÍTICAS

Credita-se à base que fundamenta o surgimento da cultura, o momento em que o homem passa a tomar consciência de suaexistência e começa a deparar-se com os perigos das savanas e atender a necessidade primal de compreender o mundo que o cerca.A busca irrefreável pela sobrevivência vai-lhe conduzindo a produção de pensamentos que lhe forneçam a explicação simbólica da realidade. As fronteiras entre o que é real e imagináriodiluem-se através do pensamento mágico,que quer solucionara angústia da assimetria que esta realidade lhe impõe. Os mitos são concebidos então, e dão a explicação plausível e possível para o pensamento simbólico característico desse momento. Esse arquê aparece também em nossa sociedade com a mesma força com que surgira naquele homem primitivo.

A morte, a dor, o sofrimento são situações reais e que independem do tempo e doconhecimento. Sofre o homem primitivo, sofre o homem civilizado, o culto e o inculto; o pobre e o rico. A necessidade de aquietar-se existencialmente acompanha o homem em toda sua história. Hoje, as mesmas angústias assomam a criatura humana e os mesmos questionamentos do passado se lhe impõe. A morte continua sendo o grande enigma inexplicável e incompreensível, tal como sempre foi. Única verdade a ser esperada. As dores, o sofrimento, muitas vezes não encontram explicações pela racionalidade. É então quando o homem de hoje, tal como o de ontem, buscando minimizar suas angústias, volta-se para a crença no sobrenatural e busca o conforto da religião. Porém, a necessidade do testemunho, de "ver" a transformação parece ser uma necessidade também primal. Ele não só quer ser curado, consolado, aquietado como também quer - porque precisa - ver como tal fenômeno pode acontecer com ele. Origina-se daí, a importância dos testemunhos, das provas concretas.

Freud, ao elaborar uma hipótese sobre o papel da consciência da morte no surgimento da cultura, afirma que"a própria morteera para o homem primitivo, certamente tão inimaginável e irreal como para cada um de nós ainda hoje".E que, a partir da conscientizaçãoda morte, o homem se rebelou contra esse fato:

"Assim fez acordos, aceitou a morte também para si próprio, mas contestou o significado da destruição da vida. Ao cadáver da pessoa amada ele atribuiu o sentido de espíritos, juntamente com o seu sentimento, a sua consciência de culpa ou de satisfação que estava mesclada com o luto. Isto teve como conseqüência o fato de que estes espíritos, então criados, tornaram-se maus demônios diante dos quais se teria que temer.(...) A recordação duradoura dos mortos, tornou-se o fundamento da suposição de outras formas de existência, e deu a ele a idéia de uma continuidade da morte aparente".[2]

O mito é para Platão, mais do queuma simples probabilidade, é uma reminiscência; um modo de expressar certas concepções que escapam ao raciocínio, e foi através dele que desenvolveu sua Teoria do Mundo das Idéias.

Argumentos como estes nos revelam que poderíamos encontrar as mais variadas interpretações, seja no campo da filosofia ou da ciência, sobre o surgimento do mito como a gênese da própria cultura humana.

Os mitos são textos criados pelo homem como recurso para a manutenção de sua sobrevivência física e psíquica. A codificação da mensagem religiosa tem sua primeira identificação com esse signo cultural. Os mitos estão presentes em todas as configurações religiosas e se mantêm diacronicamente em todas as culturas, atendendo aos mesmos objetivos de superação da assimetria imposta pela realidade.

Embora não saibamos com clareza o que seja consciência e, muito menos, o que signifique a consciência de si mesmo, tem-se vaga idéia de que a percepção da individualidade demarcaria - dialogando com a percepção da morte - o surgimento da segunda realidade e, por conseguinte, das primeiras criações mitológicas.

A Semiótica da Cultura entende que a informação adquirida no período de uma vida só pode ser transmitida por intermédio de textos sensorialmente transmissíveis pela herança cultural, descartando qualquer outra possibilidade, já que a transmissão genética e biológica contidas na primeira realidade não é o meio adequado paraque essa transmissão se constitua. Ela se preocupa com a análise desses textos culturais, numa arqueologia das mensagens ocultase mantidas no imaginário cultural, buscando identificar por qual intermédioessas estruturas arcaicas psíquicas, constantes em toda a humanidade, mantiveram- se no decorrer da historicidade, alcançando todas as culturas e chegando até os nossos dias.

Segundo os princípios da Semiótica da Cultura poderíamos chegar a suposição da existência de signos invariantes - identificados e comuns aestes textos religiosos - mantidos através dos códigos terciários. Esses seriam signoseficazes vivificados pelo ritual das práticas religiosas e de pronta decodificação por qualquer que seja a cultura religiosa que os adotem. A Semiótica da Cultura aponta a assertiva de que as significações mitológicas mantêm- se e reforçam- se com o passar do tempo pela transmissão desse texto pelos rituais que constituem a vivificação e atualização do mito através das práticas religiosas.

A crença em uma realidade sobrenatural, a submissão a uma liderança religiosa - a qual se atribui espontaneamente uma credibilidade - e os testemunhos dos demais adeptos vivificados pelos rituais seriam alguns desses signos invariantes transmitidos culturalmente. Atravessariam o tempo e estariam presentes nas mais variadas crenças, identificados no mito, nas práticas xamanísticas, no judaísmo, no cristianismo e que, agora, sãotrazidos aos nossos dias através da mídia eletrônica.

Os apelos utilizados pelas novas religiões midiatizadas são os mesmos de sempre. Têm como interpretantes indivíduos doentes - assim como os xamãs os tem - fragilizados em seus questionamentos (medos) existenciais, angustiados frente à polaridade da vida em correlação com a morte. Trata-se de indivíduos previamente sensibilizados a qualquer tipo de intervenção, desde que esta lhes venha aplacar suas inquietações e seus temores. Creditam aos seus líderes religiosos autoridade suficiente para que – tal como os xamãs - negociem com o mundo dos espíritos - local de origem de todos os seus males. Contam, ainda, com o testemunho de uma coletividade inteira que lhes atestama eficácia da intervenção.

 
CONCLUINDO

Fatores pré-culturais, como o medo do perigo e do desconhecido; a consciência existencial de si e o medo da morte condicionam tanto o indivíduo do passado quanto o homem do presente, impelindo-o na busca das explicações simbólicas, já que lhe é impossível agir na primeira realidade. E a morte é o pólo que mais se evidencia, por isso em todas as culturas religiosas o homem aspira pela imortalidade e para isso utiliza o padrão de superação dessa assimetria pela inversão e identificação da morte como a verdadeira vida. Todas as seitas religiosas irão formular essa afirmativa.

Ao analisar esses textos, pude identificar alguns signos míticos que se mantiveram diacronicamente nas diversas manifestações religiosas e dentre os inúmeros significados que possam traduzir, efetiva-se: (1) a necessidade da sobrevivência física e psíquica, que pode ser identificada como causa de tudo; (2) a manutenção do mito pela utilização do rito é reforçada pelo testemunho dos já convertidos; (3) a convicção de que através de um símbolo mantido pela prática dos rituais pode-se alterar o corpo biofísico e com isso chegar à cura é um signo de significativa relevâncianas culturas religiosas elencadas; além, é claro, (4) do imprescindível testemunho dos iniciados, e vulneráveisadeptos, para que se configure a credibilidade na eficácia do mito.

A presença dos elementos mitológicos e a crença em uma realidade transcendente; a autoridade e a credibilidade que se empresta ao líder religioso; os rituais que possibilitam o testemunho - ver para crer - nas diversas concepções religiosas só são possíveis porque se valem de signos de alta significação no imaginário cultural da humanidade e, por isso, sãomantidos nos textos religiosos da história do homem.

Como o homem do passado, o homem de hoje, confrontado pela mesma complexidade e perplexidadesobre o real, volta-se na busca das explicações míticas para que se lhe aquietem as angústias e lhe auxiliem na superação da assimetria que o ato de viver lhe empresta quotidianamente.

As seitas religiosas midiatizadas apresentam, no entanto, um novo elemento textual.Pela primeira vez a prática religiosa utiliza-se de um meio artificial e distante para a vivificação dos seus rituais de convencimento e, ainda assim, alcançam os seus objetivos de conversão. Além, é claro, da estratégica distribuição geográfica dos seus templos, sempre disponíveis, para que possam preencher a brecha que o contato físico com as lideranças religiosas possam trazer pela frieza e distanciamento da mídia. Nesses ambientes, os fiéis encontrarão a acolhida necessária à individualização dos seus problemas, proporcionando também a preservação e a manutenção dos invariantessignosda fé.



[1] O programa foi veiculado (e pesquisado)no período 1996.

[2] Freud,. Apud Bystrina,Pré-Print, CISC-PUC/SP, 1995.