À Lareira
Por Custódio Grenho | 12/03/2025 | LiteraturaOs seus dedos percorreram sem pressa as dorsais dos volumes que se encontravam na estante, pararam subitamente sobre um título que dizia “cartas que não escrevi”, retirou-o da prateleira e voltou novamente para junto dela, antes de se voltar a sentar olhou-a nos olhos sorriu e disse:
_ Lembrei-me que um dia me disseste que gostavas de ouvir da minha boca um pequeno texto que te tinha escrito no dia anterior?
Acho que chegou o momento!
Depois sentou-se junto dela, abriu o livro, com o indicador, folheou algumas páginas, voltou a sorrir e disse:
_ Escuta! Acabei de fazer uma escolha! Acho que vais gostar de ouvir o que encontrei.
Tossiu afinando a garganta, franziu o sobrolho, ajeitou os óculos e leu em voz alta ….
“Amar é.”
Ela reconheceu imediatamente naquelas palavras o título de um pequeno texto que ele lhe escrevera há uns anos atrás e que julgava perdido para sempre. Olhou espantada as páginas do livro que ela julgava não existir e que ele segurava entre os seus dedos, sorriu incrédula enquanto dos seus lindos olhos negros escapavam lágrimas de felicidade.
Ele visivelmente comovido voltou a tossir para disfarçar o embaraço pelo travo que sentia na voz, e continuou a sua dissertação.
..."Amar é venerar e rezar a um deus que não é o nosso só porque o outro acredita nele.
É acreditar poder caminhar sobre o gume de uma espada de olhos vendados por cima de um abismo, e deixar-se guiar unicamente pela voz de quem ama para fazer essa travessia.
Quem ama, acredita que pode andar descalço sobre as brasas sem se queimar.
Eu Amo-te!
Posso portanto venerar e rezar a esse deus que não é o meu só porque tu acreditas nele.
Acredito poder caminhar sobre o gume da espada de olhos vendados por cima do abismo. Acredito e estou preparado para que a tal voz me guie nessa travessia… e sei que posso caminhar sobre as brasas sem me queimar. Pois quem ama acredita sabe e sente que o amor é tão absurdo que é a única coisa que parece fazer sentido.”
Cada um de nós tem impressas recordações que não se apagarão nunca, que depois de inscritas nas profundezas da memória aí permanecerão enquanto restar em nós um sopro de vida.
Poderão esconder-se temporariamente. Desaparecer durante anos, mas um dia regressarão, frescas e invariavelmente tão precisas e detalhadas como no instante em que ocorreram.
Há expressões gestos, aromas, sons, lugares, que nos remetem o pensamento para recordações que julgávamos para sempre esquecidas.
São recriações de momentos que marcaram as nossas vidas. Registos que fizeram de nós o que somos; As dúvidas, os medos, as vitórias e derrotas, as alegrias e as tristezas... Tudo o que realmente importa.
Talvez a nossa essência resida nesses ecos do passado a que chamamos recordações e que compõem as nossas memórias...
Ainda antes de terminar a leitura apercebeu-se de que ela escutava embevecida, bebendo de olhos fechados cada palavra sua, enquanto esboçava um sorriso de felicidade como há muito tempo não lhe via.
Ele sorriu e continuou a leitura.
Quando por fim terminou, pousou o livro sobre uma pequena mesa que se encontrava junto ao sofá para dar apoio a duas chávenas de chá, um bule e uns biscoitos. Reposicionou sobre os seus joelhos a pequena manta de angorá que ela usava sobre as pernas para se proteger do frio, debruçou-se sobre o seu rosto sorridente e beijou-o suavemente, depois recostou-se junto dela enquanto murmurou baixinho com os lábios colados ao seu ouvido:
_ O teu momento terminou meu amor. Agora é a minha vez. Sabes que adoro ver-te dormir. Vou aproveitar e ficar do teu lado até que voltes a acordar, depois envolveu-a com toda a ternura num abraço, ela abriu os olhos, sorriu, retribuiu o beijo, aninhou-se junto dele e adormeceu.